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Contos-->O FIDALGO -- 24/08/2003 - 21:27 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




O FIDALGO

João Ferreira
24 de agosto de 2003


O Fidalgo é um sujeito muito conhecido no Norte de Portugal e sobretudo no Porto, onde mora. Tem vários casarões solarengos no Minho e Trás-os-Montes. Herdou veigas e lavouras, quintas no Douro e latifúndios no Alentejo e dispõe de vultuosas somas de dinheiro nos bancos. Tem numerosas empresas e está ligado pelos laços de família a um sobrenome muito conhecido no pequeno país ibérico. Para todos, ele é simplesmente o Fidalgo. Embora nele estejam concentrados muitos Manuéis, muitos Antônios, muitos Joaquins, muitos Pedros e muitos Garcias, ninguém o conhece pelo seu nome verdadeiro. Para todos, ele é e será sempre o Fidalgo.
Dizem que até o Diabo o conhece.
É um quarentão, de boa aparência. Pelo lado hereditário é um privilegiado e seria um bom personagem à altura das páginas camilianas de Novelas do Minho. Os trabalhadores de suas herdades no Douro tiram o chapéu quando ele vai visitar as quintas no tempo da poda ou das vindimas. Cumprimentam-no respeitosamente e dizem bom dia, senhor Fidalgo. Ele retribui os cumprimentos e pergunta: “então como vai ser este ano”? Vai haver muito ou pouco vinho? Como é que é, o que é que os senhores acham? E eles fazem lá suas previsões, mas falam cabisbaixos, agarrados ao cabo da enxada, ou então, de tesoura na mão, quando estão podando, ou de mochila quando estão sulfatando. O senhor Fidalgo preza muito as quintas da região do Douro e é neste negócio dos vinhos do Porto que fatura grande parte da grana que tem nos bancos. Exporta vinho fino para o Reino Unido, para a Bélgica, Alemanha, França e Luxemburgo e para o Principado do Mônaco, e também para os Estados Unidos da América e para o Brasil. Aproveita a circunstância de haver muitos trabalhadores e garçons portugueses por essa Europa fora. Sabe que eles trabalham em empresas de construção e de serviços. Sabe que outros labutam na rede de supermercados ou servem em restaurantes, e sobretudo em confeitarias. Na Suíça, no Luxemburgo e na França, de uma maneira especial. São porta-vozes naturais dos costumes gastronômicos lusos e apreciadores das bebidas finas de Portugal. O Fidalgo sabe disso e é por essa razão que insiste em manter suas quintas em nível de produção qualificada, de olho no mercado capitalista europeu. É um faturamento essencial no complexo geral de suas empresas e é por isso que ele vai muitas vezes ao Douro visitar suas quintas.
Destas propriedades saem grandes quantidades de barris e pipos de vinho do Porto que são carregados e embarcados nos tradicionais barcos rabelos. Os rabelos descem mansos, devagarinho, de velas enfunadas, Douro abaixo, até Vila Nova de Gaia, onde a mercadoria é descarregada para os armazéns especiais do Fidalgo, aguardando a hora da comercialização.
Mas há outra faceta na vida do Fidalgo, que importa conhecer. Ele se diverte muito e gosta de o fazer longe da cidade onde mora. É em Lisboa que ele se diverte. Um seu amigo de farra disse-me um dia: “Ele gosta de se divertir pra caramba!”
Quando se desloca a Lisboa, prefere viajar em seu Ferrari vermelho. Não utiliza comboio rápido nem Foguete nem outro. Nem o avião. Só quando se desloca ao Alentejo, é que usa um pequeno Dornier para sobrevoar suas herdades.
Não tem compromissos de família. É um sujeito singular. Um autêntico marialva. Um libertino, simplesmente um libertino. Um devasso, bem à século XVIII. Pela auto-estrada Lisboa-Porto dirige em alta velocidade sempre de olho na polícia rodoviária. Quando chega à capital costuma ir diretamente se hospedar no Hotel Ritz, junto ao Parque Eduardo VII. É um gosto que adquiriu de seu pai. É ali que faz o esquema para sua diversão. Seus gastos são astronômicos e as aventuras são as de um verdadeiro magnata estróina. Luxuosos restaurantes, casinos, viagens, diversões as mais variadas. Tem um iate na baía de Cascais próprio para se divertir nos fins de semana. Reúne uma turminha de amigos mais chegados e sempre tem uma saída para o mar. Leva dois cozinheiros, três garçons de sala. Entre os amigos que o acompanham, a maior parte são mulheres.Elas o cercam, o adoram e o amam. São partícipes de seu dinheiro, de suas gastronomias, de suas mariscadas e de suas mordomias. O clima sempre é de festa e de celebração. São risos, gritinhos, grandes almoços. Na última vez que saiu para o mar, forneceu até a receita que foi consumida no iate. Como cocktail os garçons serviram uma caipirinha à brasileira. Como entrada, meloas com gambás. Depois sopa de mexilhões e amêijoas. Como pratos fortes, bacalhau dourado e peito de peru recheado e, para finalizar, encharcada como doce, na sobremesa. Para não falarmos dos aperitivos, dos whiskis, dos licores, dos cafés e dos champanhes... grandes almoços, grandes ceias, grandes comemorações, vinhos, jogos, muitos prazeres. Quando está um dia bonito, segue pela costa portuguesa acima. Passa vaidoso e soberano como se fosse um navegador dos tempos de ouro, ladeia as ilhas Berlengas, e segue até à Figueira da Foz. Em alto-mar não olha o céu nem se preocupa em se interrogar sobre os mistérios do universo. É um puro consumidor epicurista. Gosta do imediato. Do prazer. E de modo especial do prazer que as mulheres que lhe dão. Elas têm a arte de o dominar, de o possuir, de o extorquir. Faz parte da festa. Mas ele cultiva com habilidade a galanteria e sabe dosar as vertentes de sua vida mundana. É um dublê do Jacinto de “A cidade e as Serras”, de olho nas fantasmagorias descritas por Eça de Queirós no quarto 202, em Paris. Um Príncipe do pedaço de cetro na mão. É um Fidalgo, no sentido imediato e profundo da palavra. Filho de algo. É Alguém. Tem poder e o poder se afirma num estilo de vida que se escolhe!. Sempre bem acompanhado, ele faz questão de se exibir, esquecendo por momentos, seus negócios e sua vida empresarial nos vários pontos do país, com alguns prejuízos na contabilidade..
Apesar de todo o fausto de poder, dinheiro e fama, este Fidalgo tem uma singularidade em sua vida que precisa de ser revelada.
Para onde quer que ele vá, há um personagem que o acompanha sempre de perto. Não é do seu séqüito nem de suas amizades. Aparece só nos lugares aonde se desloca o Fidalgo. É um sujeito estranho. Um sujeito que mostra muito interesse em fazer levantamentos de toda a vida do ricaço. Um sujeito que por vezes mostra a cara e outras vezes não. É como se se escondesse. Dizem uns que ele tem aspecto horrível. Quase de monstro. Assim como se não fosse criatura deste mundo. Mas outros dizem que até é um mancebo ajeitado. Fica muito interessado nos negócios e nas diversões do Fidalgo. Comporta-se como se fosse um espião geral de sua fortuna. E fica muito interessado em suas saídas para o mar. Nos tempos que correm alguém já pensou que ele seja membro de uma quadrilha. Pensam até que esteja planejando algum sequestro. O seqüestro do Fidalgo. Mas talvez não. Na verdade, todos temem e sabem os riscos que dá um seqüestro. A gente sabe que é uma viagem escura e ninguém pode garantir como termina um sequestro, mesmo quando há muito dinheiro no meio. Este tal sujeito pesquisa e faz sondagens estranhas sobre a vida e o comportamento do Fidalgo. Os assessores mais próximos do Fidalgo já o alertaram sobre isso. Mas o Fidalgo não vive para a preocupação nem para o medo. Como bom libertino aproveita a vida e seu pensamento vai para a diversão. Quer estar bem e gozar sua liberdade.
A única pista sobre a possível identificação desse sujeito foi-me dada há dias por um senhor anônimo que encontrei em Lisboa. Apenas como conjuntura hermenêutica. Foi mais precisamente no cais de Alcântara, junto à doca onde muitos batéis flutuavam devido às ondas que vinham do mar.
Esse sujeito dizia-se descendente do ourives e dramaturgo Gil Vicente. Tinha em casa muitos livros e peças de seu antepassado. Confessou-me que não é espírita. Mas me confidenciou alguma coisa que parece ter algo de verossímil, tendo em vista a situação que analisamos. Pelo menos é algo digno de atenção. Vejamos o que me sugeriu. Logo no início, ao olhar o sujeito, começou por me dizer: -repare bem na cara daquele fulano que está se aproximando do cais. Veja como ele caminha, preocupado, com um criado carregando sua bagagem? Agora, veja ao lado. Um personagem estranho. Parecido com aquele que sempre andou espiando a vida do fidalgo. Há ali batéis e barcos de todos os tipos. Não há, mais além, um barco de dimensões maiores, com pessoas vestidas de branco? Veja. Na proa, há o comando de uma personagem que parece um anjo. Veja agora como o Fidalgo está acompanhado do criado e entra em contato com a pessoa vestida de branco do barco de que lhe falei. Veja ainda como ele fala ríspido com seu antigo espião?
Depois destas observações, disse-me o sujeito que eu encontrei, que a vida do Fidalgo é um feeed-back do Fidalgo-personagem da Barca do Inferno de Gil Vicente. Em pouco tempo, comecei a achar lógica em tudo o que me dizia. Fazia sentido até porque eu conhecia a vida do Fidalgo das quintas do Douro e tinha lido o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente.Passei a achar nas duas séries narrativas uma verossimilhança, uma lógica. De um lado, aquele personagem era alguém de grana graúda. Trouxe alguém carregando sua bagagem. Um criado especial portando uma cadeira para ele. Mostrando-se prevenido para a hipótese de uma viagem longa!
Além de tudo, além da grana, dos criados e dos haveres, o Fidalgo aparentava solidão e uma certa insegurança. Bem estampada no rosto. De longe se percebia que ali no cais não estava muito seguro. Procura desesperadamente um batel e não sabe qual tomar. Procura um transporte e não sabe para onde vai. Agora tragicamente vencido pela doença da Sida, nas esquinas da vida dissoluta...com o Diabo lhe indicando a "maré de prata", um cara destes só pode ir para a Ilha Perdida...
Entre o Barco da Glória e a Barca do Inferno, o Fidalgo não encontra no anjo nem sequer a ajudinha de uma prancha que o embarque para o Paraíso. O anjo lhe cobra sua vaidade, sua tirania, sua presunção e soberba, seu desprezo pelos pequenos, seu poder devasso ... Agora que diz adeus à vida ,sopra em seu espectro um ventinho que mata. O Fidalgo se despede do Banquete da vida em que se deteve durante um tempo. Quem mandará nele daqui para a frente é seu espião...aquele que tem todas as suas fichas, toda a escritura de sua tirania... material que irá apresentar no tribunal da Ilha Perdida!
Ao apagar das luzes, na noite da Ribeira do Cais, o Fidalgo tornava-se definitivamente o passageiro ideal para embarcação demoníaca. No fundo, a verdade manda que se diga que o Fidalgo, mesmo sem saber, havia fretado esta embarcação havia muito tempo...

João Ferreira
24 de agosto de 2003
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