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Contos-->A VIDENTE -- 21/08/2003 - 03:12 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A VIDENTE
Jan Muá
21 de Agosto de 2003



Rúbias era um exímio pintor de parede, de classe média baixa.
Muito conhecido entre os mestres de obras da cidade. Acabara de pintar um prédio comercial do seu Pedrão. Hoje iria aproveitar, após a saída do trabalho, para resolver um problema urgente que o preocupava desde há muito tempo.
André Rúbias seguiu silencioso pela quadra adiante, e levava um misterioso papel na mão procurando um endereço. O endereço ficava lá adiante, na Dabliu-Três -Sul.
Era o endereço de dona Nakata, uma vidente que pagava três reais para um garoto de 13 anos distribuir para ela uma centena de folhas avulsas de propaganda às pessoas que casualmente passavam ali pelas rua.
Rúbias não recebeu essa propaganda de ninguém. Achara na quadra onde trabalha um santinho com uma descrição dos milagres que dona Nakata operava. E ficou emocionado e cheio de fé, após ter terminado a leitura daquela folha avulsa. No papel vinha o telefone e o endereço de Dona Nakata.
Depois de quinze minutos de caminhada, estava já batendo à porta da Vidente. Um olhar doce de uma empregada tranquila o recebeu. O ambiente local era o de uma casa residencial. Um pórtico avermelhado rodeado de flores de buganvílias anunciava o prédio. Havia um ar de muita paz.
A empregada conduziu Rúbias para uma sala especial. Uma sala atapetada, com paredes forradas de panos de seda, coloridos, dando um tom indiano, como se fosse um ambiente residencial de Madrasta ou Bombaim, na Índia.
Para um atendimento ser vip, Nakata achava fundamental criar um ambiente e um ritual que pudesse levar a imaginação dos consulentes até ao mais profundo âmago de si mesmos. Vestida a rigor com roupas tipicamente místicas de gosto indiano, Nakata optava por um ambiente concentrado onde pudesse ser criada uma expectativa especial.
Sentada num largo cadeirão forrado, tinha em sua frente uma artística mesa, onde jogava os búzios. Era aqui que a vidente se concentrava e buscava as sortes para seus clientes. Fazia tudo isto num quarto penumbroso, de fios móveis e brancos de incenso volante que ambientava e aprofundava o sentido da sessão.
Com Rúbias já sentado, Nakata jogou os búzios. Misticamente, os búzios eram interpretados como ressonâncias da alma perdida na escuridão existencial.
Intuitivamente Nakata sentiu que seu cliente estava dolorosamente preso a um problema. Algo que o deixava inferiorizado. Agora já sabe que se trata de um defeito físico que ele carrega desde a nascença e o torna infeliz.
Terá de buscar por isso a forma de lho dizer sem subterfúgios.
O forte odor de incenso vagueia pelos ares. Rúbias está concentrado. Chora. Se emociona.
Nakata maternalmente o observa. E joga para ele:
-Vagamente o senhor já está sentindo a mensagem-revelação que tenho para lhe dar. Os búzios me dizem que o senhor é um galo de uma banda só...
Chocante a revelação, mas Nakata tinha alguma idéia do que poderia querer dizer isto. Rigorosamente ainda não estava clara a decifração da mensagem.Repetindo o lance dos búzios e iluminada pela angústia dos olhos comovidos do consulente, Nakata tinha chegado perto da decifração do enigma.
Interiormente, Rúbias sentiu a mensagem. Estava reagindo dentro do circuito místico que o enredava...Sua cara tornou-se vermelha parecendo um pimentão. Mas rapidamente se recompôs e entendeu que a Vidente tinha descoberto sua verdade íntima!.. a verdade que o inferiorizava e não lhe dava felicidade..
Detinha-se na brancura da toalha da mesa da vidente e fixou-se nas miçangas coloridas e nos cristais que a decoravam.
Olhando-o com ternura, Nakata explicava para ele o que era esse negócio de “galo de uma banda só”...Explicava, embora ele já soubesse o que o atormentava...
Seus pensamentos se cruzavam e suas emoções se confundiam. Deus lhe perdoasse, mas o que ele sabia há muito tempo era que nas condições em que vivia jamais poderia passear de cara erguida pelo terreiro com a força de um galo soberano. Isto, para falar linguagem que dá para entender bem onde estava sua angústia de macho!
Era por isso que isso de “galo de uma banda só” o pungia como um azar...-
Dava-lhe vontade de interromper Nakala e de lhe contar toda a sua história...
-Isso vem de nascença, disse. Nasci só com um testículo verdadeiro, acrescentou. O outro nasceu definhado. E enquanto dizia isto, chorava emocionado como uma criança... Sentia na emoção todos os problemas que carregava na sua vida familiar. Era casado e não tinha sossego só em pensar nisso. Sua mulher a toda a hora lhe jogava na cara sua insatisfação...
A vidente o confortava solícita:
-Vamos contornar isso, senhor Rúbias. Mas vou precisar muito de sua colaboração. Vamos dizer que há cura e que os resultados dependerão do senhor. Vamos desenvolver essas forças que não estão funcionando a pleno. Na vida não há nada que não possa melhorar.
-Olhe, vamos começar por uma receita preliminar. Receita, aliás, muito acessível. O senhor passa pela feira e compra rabanete, nabo e rúcula. Corta o rabanete e o nabo em fatias finas. Mistura com rúcula. E junta salsa e limão. Bate no liquidificador e bebe em jejum, assim ao natural, sem açúcar. Da seguinte maneira: a primeira dose, o senhor a toma às 4 da manhã. A segunda às cinco e a terceira às seis. A primeira voltado para nascente. A segunda voltado para poente. E a terceira, à porta de seu quarto, bem de olhos fechados. Vai tomar esta mistura durante quinze dias. Será milagrosa. Logo nos primeiros dias, suas entranhas irão reagir e desobstruirão seus canais ociosos - foi completando a Vidente.
Peça a colaboração de sua mulher. Isso vai ajudar.
Rúbias levantou-se. Olhou detidamente as cores do turbante da Vidente. Esta o fixou de olhos nos olhos. Já enredado no jogo da sorte e do destino. Disposto a levar a sério a terapia que lhe fora traçada, Rúbias cumprimentou e partiu. Era claro para ele que só se salvaria se tivesse fé.
Ainda meio atordoado, misturando búzios, videntes e Bíblia, lembrou-se por momentos das narrativas bíblicas dos milagres de Jesus na Galileia. Lembrava-se do caso da hemorroíssa, da mulher da Cananéia que foi curada por ter acreditado. Por que não poderia ele percorrer o mesmo caminho???
Assim embalado, deixou a casa da Vidente.
Já na rua, o pintor achava que teria de colocar tudo nas mãos do destino. Colaborar e deixar acontecer... Competia-lhe ajudar a construir este destino de que fazia parte.
Leve como uma criança, ouvira de outra pessoa o que há muito sabia. Neste momento, mais confortado, subiu a escada, entrou em casa e foi direto até ao espelho. Deparou-se com seu rosto, que examinou com mais atenção. Povoou aquela figura de pensamentos. Dinamizou o retrato que aparecia naquele espelho. Surgiram discursos íntimos. Discursos de monólogos interiores. Desta vez mais confiantes. Pareciam discursos de uma nova arrancada em sua vida. E como se quisesse estabelecer um diálogo entre o id e o ego que sempre se estranharam, comentou mais ou menos desta maneira, querendo ser claro para consigo mesmo:
- Imagina agora, Rúbias, se um dia chegares a ser um galo perfeito! De duas bandas, ehn???. Imagina só, o reboliço que vai haver no galinheiro!!! E ria, ria... se contemplando mais profundamente ao espelho!
A partir desse dia, Rúbias cumpriria rigorosamente a receita. Dia por dia. Para que não houvesse nenhuma dúvida, colocou-a religiosamente pendurada na parede de seu quarto. Acendeu uma velinha. E rezava uma oração a Nossa Senhora da Saúde, todos os dias.
Sentia que nascia nele outro homem. Um homem de fé. De cega fé e de esperança.
O tempo corria. Ia logo cedo ao mercado. Olhava cada quitanda, comprava o rabanete, o nabo, a rúcula e a salsa fresquinhos assim como os restantes artigos mágicos. Cuidadosamente preparava a beberagem do milagre. E bebia tudo vigiando sensitivamente a descida do remédio pela sua garganta fazendo-o acompanhar de uma súplica e de um desejo íntimo.
Buscando todas as formas de chegar onde desejava passou a participar de romarias. Primeiro foi a Nossa Senhora da Aparecida. Tempos depois falaram-lhe num centro espírita em Abadiânia, em Goiás. Foi também. Ajoelhou no galpão onde acorria a multidão esperançosa e recebeu bênçãos especiais dos médiuns numa cerimônia espírita.
Rúbias pedia aos santos a graça da normalidade triangular de seu plexus. Sabia de casos milagreiros que curaram irregularidades de nascença.
Deixava confiadamente esta tarefa aos poderes superiores.
Desde que foi saber a opinião dos búzios, todos os dias, antes de tomar banho, ia no espelho. Examinava seus documentos e observava minuciosamente tudo, à cata de novidades. Depois de um tempo, pareceu-lhe que por ali já havia novas forças ressurgindo e se redistribuindo. Um sinal inequívoco da força de sua fé. Animado, voltou à cozinha. Preparou a rúcula com rabanete, E bebeu a mistura com limão. Ruim, que só. Mas era como se ali houvesse um sinal de uma força oculta que o restaurava.
A magia de tia Nakata deu seus efeitos. As bolas de Rúbias começaram a ficar equilibradas.
Animado com a transformação, decidiu contar à esposa a nova realidade...
“A outra bola está crescendo” – foram as palavras que usou, meio constrangido, para ela. Ela riu. Era uma linguagem necessária pois achava que devia colocar a esposa a par das transformações em seu corpo... Maura nunca tinha apoiado a esperança de Rúbias. Mas parece que agora via que a tenaz determinação do companheiro podia trazer até eles uma realidade nova que beneficiaria o bem-estar do casal.
Algum tempo depois, tudo mudou naquela casa. Havia alegria nos rostos. Animação. O casal já conversava animadamente.
E lá fora na varanda, o papagaio surpreendentemente repetia a conversa que ouvira no interior da casa:
-Como vão as tuas bolinhas, Rúbias?
Maura naquele dia ouviu o papagaio e deu uma grande risada.
E com isso confirmava que todo o ambiente mudara naquela casa....


Jan Muá
Agosto de 2003
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