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Contos-->Um dia depois -- 07/08/2003 - 18:02 (Clodoaldo Turcato) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Primeira corrida, e a cabeça doendo pra chuchu. Seriam mais cinco até o final do dia, e a cabeça doendo pra chuchu. Jardim Santo André até o Carrão naquele ônibus em cacos, depois do Santos ter levado três em pleno Morumbi; a festa toda pronta, Kaiser à vontade, certeza da Libertadores e deu no que deu: cabeça doendo pra chuchu.
Na Avenida Aricanduva pediu parada um sujeito com cara de índio. Entrou e sentou-se no local reservado para os idosos e deficientes. O motorista nem se deu conta que ele não cruzara a catraca. O carro estava vazio e àquela dor de cabeça... Robinho, caramba! Não fez nada. Quebrou o pedal...
E subiu mais gente, velhos e deficientes, enchendo o reservado. O mestiço não arredou, ficou sentadinho como se não fosse com ele.
Até que o cobrador bateu em seu ombro:
_ Ei, amigo...
O estranho virou-se:
_ Sí?
_ Você precisa levantá. Tem deficiente no carro querendo sentá.
_ Como? – tornou a perguntar.
_ Deficiente. Velhos e deficiente. O senhor precisa cede o lugar.
_ No comprendo. No hablo sú lengua.
O cara não era brasileiro. O cobrador não entendeu nada. Pacientemente recomeçou:
_ Esse aí: baanco.
_ Baanco!
_ Sim. O baanco onde tu tá sentado é dele - apontando para um homem de muletas, que mal agüentava o sacolejo ônibus e cairia a qualquer instante.
_ Del? Há, sí, el asiento és del?
_ É...
_ Ahora comprendo. El asiento és del discapacitado?
“Discapacitado!?” O cobrador não entendeu bolufas e chamou o motorista:
_ Ei, Ricardo: o que é discapacitado?
Que Diabo de pergunta: discapacitado? Sua cabeça estourando de dor e ele vinha com uma pergunta daquelas. Se limitou a responder “sei lá!”
_ É esse homem que fala enrolado todo. Tá falando discapacitado; que Diabo é isso?
O estrangeiro voltou a se virar para frente, como se não fosse com ele. E o deficiente continuou cai não cai. O motorista continuou alheio, com a cabeça doendo pra chuchu.
O cobrador insistiu:
_ Ei, amigo. Levanta! Dê o lugar para o deficiente...
_ No comprendo, no comprendo. No soy brasileño.
O cobrador já estava perdendo a paciência. Gritou para o motorista:
_ Ô Ricardo: o cara tá se fazendo de boboca.
E mais essa agora. Ele com a cabeça doendo pra chuchu e um infeliz se metendo à besta. Que hora pro Santos levar uma goleada... E o Paulo Almeida hem! Deu o amarelo pro juiz.
_ O que foi?
_ Esse argentino não qué se levantá.
_ Argentino! Argentino da Argentina?
_ Não sei.
O cobrador voltou para o estranho, que fazia que não era com ele:
_ Ei! Tu é da Argentina?
_ Si! – animado - Soy Argentino del Boca. Viva el Boca Júnior! – gritou alto vários vivas, o suficiente para que todos ouvissem, inclusive o motorista, santista fanático.
Aqueles gritos aumentaram mais ainda a dor de cabeça . Sem pensar, meteu o pé no freio, estancando em plena Avenida. A parada foi tão brusca que todos que estavam em pé ou mal colocados nos assentos, beijaram o assoalho. O primeiro a dar com a cabeça no estribo foi o deficiente, que estava cai não cai.
_ Que merda de “Biba el Boca” é esse? Vá tirá onda na casa do caralho, rapaz!
Todos olharam espantados para o motorista, que tinha se posto em pé.
_ Ô Ricardo, calma aí pô! – apaziguou o cobrador.
_ Calma o cacete! Mande esse Boca pra trás, já! – voltando para o volante.
O cobrador voltou para o Argentino, agora confirmado, que se refazia.
_ Ei, ouviu meu amigo: fica em pé.
_ No puedo...
_ Como assim?
_ Yo soy discapacitado.
_ Ô Ricardo: ele tá falando que é discapacitado. O que é isso?
O ônibus já estava andando, e o deficiente continuava cai não cai; o motorista com a dor triplicada e o argentino fazendo que não era com ele.
_ Bota esse cara pra trás.
_ Mas ele não pode, é discapacitado.
_ E o que é isso?
_ Sei lá!
_ Ele tem a carteira?
O cobrador voltou para o argentino, que já tinha sentado de novo, como se não fosse com ele:
_ Ei, tem a carteira?
_Que?
_ A carteira da SPTrans?
_ Cartera?
O cobrador fez o gesto com a mão, indicando o tamanho da carteira de passe livre.
_ Sí, la cartera...
_ Isso!
E o homem tirou a identidade do bolso, aproximando dos olhos do cobrador.
_ Não, não. Não é essa. A de passe livre.
_ No?
_ Não. O senhor vai ter que pagá. Ô Ricardo: o cara não tem carteira.
_ Então paga!
_ O senhor vai ter que pagá.
_ Pagá?
_ É. Levanta, passa a catraca, vai.
_ No, no. No tengo plata. Dinero.
_ Ô Ricardo: o cara tá sem grana.
E a dor que só aumentava. Mais essa agora, um argentino, do Boca, querendo viajar de graça no seu carro.
_ O que!
Brecou de novo, agora quando estava a uma velocidade acima dos quarenta, causando um impacto ainda maior que o anterior. O deficiente, que estava cai não cai, foi dar com a cabeça na catraca. Os passageiros que estavam nos últimos bancos foram jogados para frente: alguém bateu na traseira.
_ Desce! Seu argentino de merda.
_ Como? – como se não fosse com ele.
_ Desce já, seu safado!
_ Yo tengo cartera...
_ Não entendo sua língua enrolada – e agarrou o argentino pelo colarinho, que soube então que o negócio era com ele.
_ No puede acer así. Yo tengo cartera.
Não houve tempo para mais explicações. Quando o argentino deu por conta, estava no meio da Avenida Aricanduva, cercado de buzinas.
_ E não me apareça mais aqui!
O cobrador, que estava pasmo, tentou acalmar o amigo:
_ Ô Ricardo, calma aí, ô...
_ Calma uma ova, seu São Paulino de uma figa!
E voltou ao volante, com a cabeça doendo pra chuchu.
O argentino se reergueu, foi até a porta – que ainda estava aberta – levantou a blusa, exibiu a camisa número dois do São Paulo, e gritou em alto e bom português:
_ Seu santista filho da puta!
O motorista voltou a frear de soco, jogando mais uma vez o deficiente, que estava cai não cai, para o chão. Saiu de trás do volante e dirigiu-se para a porta, afim de pegar o argentino, que já não se sabia mais se era argentino ou São Paulino disfarçado. Mas o cobrador pulou em sua frente:
_ Ô Ricardo, não faz isso. Já tamu atrasado, no meio da rua... Dexa o sujeito pra lá.
Mesmo contrariado, voltou ao volante.
O cobrador voltou-se para o deficiente, que estava levanta não levanta, e disse:
_ Senhor, pode sentá em seu lugar – apontando para o assento vazio.
Mas, inesperadamente, ele agarrou as muletas e como um raio tomou caminho de fora, como se fugisse de um demônio.
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