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Contos-->DEPRESSÃO -- 11/08/2003 - 20:57 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A chuva surpreende Ana Maria no caminho pro banco. Se ainda fosse uma vigorosa chuva de verão, daquelas que provoca correria nas ruas e termina rapidamente, dando a vez ao Sol que surge depois encabulado por trás das nuvens a dissiparem! Não. É daquelas do tipo enjoado, recorrente, em dias de céu todo nublado e cinzento, os pingos finos como pequenas agulhas a nos atingirem desconfortáveis o rosto e os braços. A mulher agora ainda mais amarga do que quando saiu de casa.
_ Se essa porcaria de conta de luz não vencesse hoje, poderia ter, pelo menos, ficado em casa. Parece que vivo para pagar contas. Há quanto tempo não compro nada.
Refere-se às coisas supérfluas, gostosas e prazerosas, às quais, todo ser humano deveria ter direito. Mas todo o dinheiro que ganha só dá para o essencial, pois o que deveria sobrar é destinado às taxas, aos impostos, às multas, etc.. Em realidade, nem para isso, porque há muito, vem socorrendo-se do “especial”, confeccionando uma bola de neve, sabe-se lá no que vai dar e os juros consumindo toda a esperança de ter um dinheirinho só seu, para fazer dele o que quiser. E passa direto pelas vitrines, para não ter que padecer com sonhos impossíveis. Avista, na esquina, Natanael parado sob a marquise, a rir e a conversar com um casal, aquele jeito debochado de sempre.
_Devem estar ridicularizando alguém. Aquele desocupado não sabe fazer outra coisa.
E blasfema agora contra uns meninos gazeteiros que lhe esbarram, à correria, jogando-lhe água das poças nas pernas. Desejaria poder botar as mãos neles. E como é longe de sua casa aquele “raio” de banco. As calçadas em guerra de guarda-chuvas. Ora um ventinho frio, ora um calor insuportável. Até o tempo está contra ela.
Finalmente o banco. Lotado. A fila do caixa eletrônico é imensa. Que fez a Deus, pra merecer aquilo? A velha senhora da vez demora, perdida entre os botões. As pessoas cochicham e oferecem ajuda. Ana Maria não agüenta:
_Não sabe mexer nessa joça, pede pra alguém, droga!
Chega a sua vez, mas que droga, o banco não tem convênio com a CERJ. Tem que ir à maldita casa lotérica e encarar outra imensa fila cheia de retardados de ambos os lados do balcão. No caminho, nervosa, quase tropeça num cachorro magro que revira uma lata de lixo. Diabo de animal. Lamenta a ausência da “carrocinha”. A chuvinha enjoando. Os guarda-chuvas se digladiando. Que ódio de toda essa gente!
_Por que não seguram os seus rabos em casa?
No caminho para a casa lotérica, passa defronte a uma joalheria. O balconista, um rapaz vistoso, alvo de elogios e suspiros das mulheres do local, está à porta e ela nem se atreve a dirigir-lhe um olhar mais direto. Ele jamais lhe daria um segundo qualquer de atenção. Com tantas menininhas não perderia tempo com balzaquianas. Chega à loteria e, na fila, observa um casal de adolescentes que se entrega perdido em exibidos apertos e beijos ruidosos.
_Não existe mais vergonha. Por onde anda a mãe dessa vadiazinha?
Separa, agora, o dinheiro que acabou de retirar do “caixa” e faz as contas de quanto pagará de juros por ele. Quase chora.
_Quando isso vai acabar, meu Deus?
E pensa nos meninos, o casal de pré-adolescentes que dela dependem, cheios de querências e de necessidades peculiares à sua idade. E pensa na sua impotência. Não tem como investir mais em horas de trabalho em seu ateliê de costura. Está no limite. A pensão do ex-marido, coitado, mal dá para o café matinal diário. E onde estará aquele traste agora? Há quantos dias não dá notícias? Parece que não só o casamento, mas também a amizade “já eram”. E olha, numa tortura final, para o espelho da parede paralela à fila.
_Quem terá colocado ali aquela desgraça? Provavelmente alguém que me detesta.
E vê seu corpinho redondo, judiado por quarenta anos mal cuidados, as rugas parecem que se saltam para fora, tamanhas.
_Odeio você, oh tempo, que cruel roubou minha elegância, minha jovialidade, minha alegria. Que me transformou nesse pedaço de ruínas, infeliz, sem propósitos, sem projetos, espremida até pelo ar que respira. Que metamorfose é essa da qual tanto se orgulha por ser autor e que me torna eis que desprezível ser que lastima do próprio sangue que as carnes irriga?
Uma lágrima desce, gelada. Ah, se pudesse! Daria fim imediatamente aos seus dias tristes e carregados de azedume. Acaba de fazer o pagamento. Segura, sem muita vontade, o recibo e quase à porta de saída, sentindo-se desacelerada com os pensamentos e abandonada como folha seca ao vento, demora para perceber que alguém a cutuca os ombros. É Joel, o homem do jogo do bicho. Costuma aborda-la na rua para falar dos resultados. Precisa parar com mais essa mania de perder dinheiro.
_Parabéns Dona Ana. O Pavão deu na cabeça.
Ainda um pouco aérea, não entende muito bem. Afinal não é assídua no hábito de jogar. Aceita palpites e dessa vez, não sabe bem porque, fez um jogo alto.
_Deu quatro milhas. Pode passar lá e botar a mão na bolada.
_Não é brincadeira, Seu Joel?
Com quatro mil reais pode cobrir o especial e ainda sobra um pouco para programar as despesas do mês que entra e para presentear os meninos. E quem sabe comprar aquela blusa pela qual se encantou? Está se sentindo pouco a pouco mais leve. Repara agora que a chuva cessou. Acha até um pouco engraçado aqueles guarda-chuvas se fechando nas mãos de um povo tão aflito quanto ela. O cachorro magro estava agora explorando outra lata, buscando ainda uma fonte de sustentação pra viver.
_Pobre animalzinho, se tivesse espaço em casa, talvez eu o acolheria.
Olha, agora encorajada, uma vitrine e não só pode cortejar, com mais descontração, as tentações das prateleiras, como também vê por outro ângulo a sua silhueta na reflexão da mesma.
_Até que, com um pouco de dieta e de academia, um jeitinho melhor com as “bases” no rosto, eu não assustaria tanto.
À frente da joalheria, o coração ensaiando uma disparadinha, a coragem ajuda e um “oi” sai quase involuntariamente, ao que o requisitado jovem responde com simpatia e com um beijo no ar. Um segundo que rejuvenesce Ana Maria em dez anos. E olha que Natanael continua na sua vadiagem em confabulações regadas a gargalhadas com o mesmo casal.
_Pensando bem, é melhor o som das risadas do que de lamentações.
Os gazeteiros passam de novo por ela, alardeando.
_Acho que a vida seria muito chata não fosse a agitação das crianças.
E no outro lado da calçada, parado sob outra marquise, o mesmo casal meloso da loteria. O “show” continua e Ana Maria diferente, pensa:
_O amor é belo!
E pensando assim, por que não dar uma ligadinha para o pai dos seus filhos? Afinal precisam conversar sobre o que tem em comum. E quem sabe não “rola” um relaxante e revigorante “affair”?

Julho de 2000 Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br
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