Usina de Letras
Usina de Letras
144 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62192 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50598)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O ESPELHO DA FACE -- 10/08/2003 - 17:15 (Edson Campolina) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Arlindo era um menino franzino, tímido, introspecto, quase sussurrava ao falar com estranhos e sempre cabisbaixo, caminhava em passos curtos, mas ligeiros, e sem perder a observação pelas casas, ruas, e objetos. Exibia cabelos lisos, curtos, bem cortados e queimados pelo sol que também bronzeara sua pele clara, tornando-o o que seria um típico garoto de praia, mas não passava do efeito de horas de trabalho na pequena lavoura de milho do pai.


Encontrava-se naquela tarde ensolarada e seca, em cima da mureta da igreja matriz de Santa Quitéria, uma vila que acabara de se tornar cidade no interior do Espírito Santo. Ali, acompanhado de suas duas irmãs mais novas, Maria de 08 anos e Cássia de 07, todas as tardes de sábado freqüentava as aulas de canto da primeira comunhão, contrariado, mas obrigado pela mãe. Balançava suas pernas curtas caídas pelo lado de fora dos jardins da igreja e fitava uma embalagem de sorvete largada na calçada em baixo. Imaginava não quem havia saboreado, tampouco desejava seu conteúdo de outrora, mas Arlindo vagava em seus pensamentos traçando a trajetória daquela embalagem. Quem a produzira na fábrica? Como seria uma fábrica que só ouvira nos estudos da escola? Como seria aquele operário que para levar o sustento da família em casa dedicara-se com afinco seu suor na confecção da embalagem e impressão dos dizeres? E por quanto tempo e por quantos lugares não passara aquele pequeno pedaço de papel até ali chegar? Quantas mãos e pessoas diferentes? Manuseada com a atenção de homens dedicados, talvez numa distante cidade, a embalagem agora esquecida, descartada, inutilizada, decompor-se-ia e desapareceria para sempre, sem que a pessoa que degustou aquele picolé lhe desse a mesma importância de seu conteúdo.


Num rompante, erguendo sua coluna ora curvada para apoiar seus cotovelos nos joelhos, Arlindo escuta o caminhar já próximo de duas senhoras que lhe fitam e exclamam:


_ Que menino bonito, mas com uma carinha tão séria e pensativa!


Aquilo misturou um sentimento de surpresa com insegurança no menino, que até então, se achava seguro no seu mundinho individual. Ali somente seus pensamentos, suas indagações e observações eram permitidas, não entendia como duas senhoras lhe dirigiam palavras, sem conhecê-lo, e pior, invadindo seu estado de espírito e privacidade. Como alguém pode lhe dizer o que é ou está sentindo sem que lhe solicite? Arlindo, em sua inocente solidão espontânea de 09 anos de idade não podia imaginar pessoas lhe desvendarem. O elogio recebido não lhe era importante, nem dera atenção. Não lhe permitia conversar ou comentar pessoas estranhas nas ruas.


Entrou e participou, em canto baixo, quase engasgado, dos preparatórios para sua primeira comunhão. Terminada a aula, caminhou pelas ruas de paralelepípedos da pequena cidade, sempre à frente de suas duas irmãs, em direção da casa de seus pais que ficava no final de uma longa rua que terminava sem calçamento e numa roça de pastos e plantações. Mas desta vez ergueu sua cabecinha e fitava os rostos das poucas pessoas que lhe cruzavam procurando entender como aquelas duas senhoras puderam lhe perceber sério e pensativo. Mas não obstante àquele momento, Arlindo sempre se comportava comedido, sério e pensativo. Sua cabecinha nunca parava de devanear, principalmente quando trabalhando com a enxada.


Passou-se a vida e Arlindo se ocupou de trabalhar e estudar. Até que o banheiro de sua casa ganhou um armário de parede com espelho. Daqueles que se embute. Arlindo nunca havia usado um espelho, somente sua mãe tinha uma escova de cabelo prateada, muito velha, e que era guardada com carinho em cima do guarda-roupas do quarto do casal, e em seu dorso havia um espelho oval, com pequenas falhas devido à idade e ferrugem.


Numa noite, Arlindo levantou-se e foi ao banheiro para aliviar sua bexiga, acendeu a lamparina e colocou-a sobre o lavado, quando foi pegá-la para se guiar até o quarto, parou assustado frente o espelho. A luz amarela da lamparina iluminava seu rosto de maneira que se tornava um quadro retangular com uma gravura redonda e dourada no meio da escuridão refletida no espelho do armário. O menino se pôs a observar. A fraca luz o impedia de melhor definir os contornos de sua cabeça, tais como o cabelo e as orelhas. Mas o centro da face lhe chamava a atenção. Observou a semelhança do nariz e da boca com os de seu pai. Fitou os próprios olhos, suas bolinhas negras, suas sobrancelhas, o vinco entre elas, seus pelos e por último parou naquele panorama. Pensou então que seria aquele o espelho de sua face, a face de um menino “tão sério e pensativo”. A face de um menino que vivia numa pequenina casa de adobe, numa roça, que trabalhava ao sol com o pai, inteligente, observador, tímido e introspecto, que beirava a tristeza. Mas um menino que vivia numa família amável, simples, mas carinhosa e amável. Conhecia então seu arquétipo.


A partir daí, Arlindo, que levava o nome do avô paterno, que jamais conhecera, passou a se observar todas as noites no espelho, até memorizar seu semblante. E tentava comparar suas irmãs. Não pela aparência simplesmente, mas o que em seus semblantes traduzia seus comportamentos e temperamentos. Tornou-se um observador dos colegas da escola da fazenda, dos freqüentadores da igreja, dos parcos visitantes em sua casa, até mesmo do semblante das vacas, tentando identificar a diferença entre as mais mansas e mais bravas, as arredias que tinham os olhos menos brilhantes. Arlindo tentava, na verdade, traçar o perfil da personalidade de cada um pelos detalhes de seus semblantes, pelo espelho de suas faces, como pensava. Até que via semelhanças entre pessoas, principalmente na escola, colegas com o mesmo comportamento que tinham alguma semelhança no rosto, no caminhar, no falar ou no olhar, principalmente no olhar. Definia os arquétipos de todos. Começou a perceber que cada pessoa carrega sua história, suas ilusões e desilusões, sonhos e desejos, alegrias e tristezas, desventuras e sucessos, no espelho de sua face. Todos têm um espelho de sua face. Só agora Arlindo percebera, passou a entender então a exclamação daquelas senhoras há semanas atrás. Elas haviam percebido o espelho de sua face, que refletia exatamente o menino que era, e mais ainda naquele momento da mureta da igreja. Arlindo descobrira que a vida das pessoas podia ser contada a partir de suas marcas no espelho. E passou a observar as pessoas. Não deu mais tanta importância à história dos objetos. E percebeu também que, assim como os objetos, as pessoas também passam, são esquecidas, se desmancham, assim como suas comuns histórias. E sentiu-se só. Não queria simplesmente passar pela vida. Ou deixar que a vida passasse por ele.

Por
Edson Campolina.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui