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Contos-->MARAVILHOSO ANJO DA MORTE -- 09/08/2003 - 00:59 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


I – O AFOGAMENTO - Nada poderia ser mais agradável para José Carlos do que aquele sol de meio dia em Ipanema a queimar-lhe a já bronzeada pele de seus 17 anos. A areia fina e macia, os olhos fechados, concentrava-se nas sensações auditivas que lhe traziam o murmúrio repetitivo das ondas em consonância com o permanente borborigmo das falas jovens de toda aquela gente reunida em adoração à preguiça a que se permitia num esplendoroso domingo da zona sul carioca. E quando os abria....ah, que delícia! Acima de sua cabeça, corpos dourados de sinuosa geometria, salpicados de salgadas gotículas, exibidos por ingênuo despudor, em irrequieta movimentação juvenil, os sulcos das nádegas consistentes denunciando, uma vez acessíveis aos olhos, a superação dos limites, esta convidativa a generosa e farta imaginação, desencadeando, então, a conexão entre elétricas correntes a percorrerem-lhe os sentidos, num exercício legalmente cabível à sua juventude. Como era bom aquele ponto em frente ao castelinho. Insuperável em relação a qualquer outra praia do Rio de Janeiro. O cheiro jovem era mais marcante. A ousadia atingia o clímax. O sol parecia estar mais próximo. O calor certamente ultrapassava a pele e invadia o corpo, produzindo ebulições eticamente indescritíveis. O culto à ociosidade não significava, porém, inércia, e o rapaz levantando-se pois, lépido, inaugurou uma corrida com destino à água, fazendo-o de modo propositadamente sensual, como numa passarela, com fins de levantar os olhares da ala feminina. Todo aquele mar, verde aqui, azul mais além, as ondas acenando-lhe e oferecendo-lhe sua agressiva e estimulante massagem e seu generoso frescor. O mergulho furando o espesso paredão de água, o garoto penetrando, num segundo, no maravilhoso mundo da submersão, os ruídos, momentaneamente desaparecidos retornavam quando da subida à tona, apontando assim, como que num negligenciado aviso, para a observância de um limite a existir entre as duas esferas. E o mar, então, com sua imponência atirava-o novamente em direção às areias. Uma gostosura a instigá-lo a novas incursões cada vez mais atrevidas, cada vez mais distantes da areia, um absurdo desafio à superioridade de seu oponente, a quem, por responsabilidade de sua meninice desejava integrar-se.

De repente, o maior dos traiçoeiros viu chegado o momento da agonia do insolente desafiante e não lhe permitiu mais comandar os próprios movimentos. A cada braçada, as águas puxavam-no em direção ao fundo. Permitiam-lhe, por um único segundo, que subisse e mal começava o ar a adentrar-lhe as narinas, traziam-no cruéis de volta ao fundo. O desespero foi tomando enormes proporções. A briga pelo ar e pela vida a impelirem vigorosos e rápidos movimentos, impotentes porém frente ao impiedoso gigante. O esgotamento não tardou, socorrendo-o a generosa inconsciência. Escureceu. Apareceu, então, uma pequena luz que crescia lentamente. E uma claridade se impôs. José Carlos tinha agora uma enorme sensação de paz e à sua frente iniciou-se o aparecimento de um vulto que, progressivamente foi ganhando nitidez. Tinha diante de si, agora, o rosto de uma jovem lindíssima. Feições como que desenhadas para um conto de fadas. Os cabelos bem negros e encaracolados, ornamentados com flores de cores muito vivas que exalavam aromas nunca antes por ele experimentados. Um sorriso cheio de ternura e confiança. Ouvia-se uma música suave e carregada de paixão, como no momento mais melodioso de uma ópera de Tchaikowski e o rosto da inebriante ninfa se aproximou ainda mais do dele, segurando-o com suas mãozinhas delicadas e beijando-o, fazendo com que o afogado semi-desfalecido aprofundasse em seu deslumbramento entre as bolhas aquáticas e os indiferentes peixinhos que o rodeavam. A moça agora se afastava. Ele tentou segura-la prendendo suas mãos mas ela distanciou-se ainda mais, desaparecendo lentamente e junto com ela a claridade. José Carlos nadou em direção àquela luz que se esvaecia e subitamente se viu de costas na areia, rodeado por curiosos e com alguém a lhe apertar o ventre, outros segurando seus braços. Refez-se e passou os dias e as noites seguintes relembrando com entusiasmo e perplexidade os momentos fascinantes de sua visão.

II – O ACIDENTE - Vinte e um anos se passaram e a cena que fora aos poucos se apagando já não ocupava um minuto sequer dos pensamentos de José Carlos. O tempo cheio de ocupações mal lhe permitia se entregar a divagações. Estava casado e com dois filhos. Negociante, viajava muito e o convívio familiar ficava desfalcado, acarretando um distanciamento da mulher e das crianças. Tinha consciência daquilo e, no afã de melhorar substancialmente suas economias e assim sobrar tempo para o lar, trabalhava mais ainda, instalando-se um círculo vicioso difícil de remover da sua vida. Na medida em que corria o tempo, os meninos crescendo e suas aspirações cada vez mais difíceis em função de crises econômicas constantemente repetidas a afetar o sistema financeiro e dificultar os negócios, as expectativas iam sendo demolidas e uma cruel frustração se encarregava de torna-lo progressivamente mais infeliz. O acidente aconteceu quando retornava de carro para o Rio, vindo de uma difícil negociação em São Paulo. O cliente, oportunista, barganhara muito, o que resultou numa enorme demanda de tempo e ainda, resultados inferiores às suas expectativas. Já era noite quando pegara a estrada, pois preferira descartar, por alguma razão, uma estadia naquela cidade. Uma hora e pouco de viagem e o sono já começava a dar sinais. Seguidos bocejos e as pálpebras pesadas atormentavam-no. Deveria ter parado para tomar um café, mas estava ansioso para chegar em casa e descansar. Aumentou o volume do rádio, cantou e falou consigo mesmo em voz alta, mas nada apagava o irresistível desejo de dormir que crescia alimentado pelo avanço da madrugada e pelo ronco e trepidação do motor. Repentinamente, viu-se fora do carro caminhando e, percebendo que estava sonhando, acordou assustado, com o veículo correndo pelo acostamento e jogando-se contra a traseira de uma carreta que ia devagar por sobre ele.

E vinha, novamente, depois de 21 anos aquela mesma luz seguindo a escuridão que descera junto com o terrível estrondo da colisão. Dessa vez flutuava e sobre um pano de fundo azul, envolvida por uma aura dourada, a mesma menina dos negros cabelos encaracolados. Vestia um manto cor de anil que cruzava com outro carmim e deixava nu um dos seus ombros, a pele branca e delicada destacada sobre as angelicais mãozinhas que, repetindo o gesto anterior, acariciava seu rosto e dele se aproximava para brinda-lo com um beijo. Vozes femininas de um coral enfeitavam aquele instante de fascinação e delírio, numa ária plena de serenidade compondo perfeitamente com o semblante doce e sorridente daquela aparição. Como antes, a maravilhosa visão foi se apagando, com a menina retrocedendo seus passos e ele, desesperadamente tentando manter entre os seus os dedos da deslumbrante criatura. E toda aquela cena foi se transformando. Ouvia agora um bip sonoro e irritante, luzes amarelas fazendo com que lhe doessem os olhos e a cabeça. Tentou levar as mãos a ela e percebeu que seus punhos estavam atados, aquela tentativa de movimento, conjugada com uma elevação do tronco causando-lhe imensas dores que se faziam também sentir na perna direita e no peito. Um forte ardor cortou-lhe súbito a garganta e visualizou diante de si, tubos monstruosos nas mãos de alguém que vestia um azul desbotado e respondia a quem lhe chamava de doutor. Entendeu, desesperado, que estava numa UTI. Uma forte queimação começou a arder-lhe o estômago e um pânico instalou-se, permanecendo até o momento em que a voz carinhosa de uma enfermeira, chamando-o pelo nome, tranqüilizou-o, informando que estava fora de perigo e comunicando-lhe minuciosamente o que lhe havia acontecido.

III - O INFARTO - José Carlos restabelecera-se fisicamente com rapidez, ficando refém, entretanto, de algumas seqüelas que vieram piorar a sua situação no trabalho, pois padecia de constantes crises de cefaléia e de momentos de ausência que, embora de curta duração, interferiam nas suas funções, uma vez que o impediam de dirigir novamente e de estender por mais tempo um encontro com clientes. O período em que ficou na inatividade, por outro lado, agravou ainda mais as suas economias, aliando-se àquilo, o desfalque no bolso por conta das despesas médicas e hospitalares. Foi obrigado, pois, a uma redução progressiva de seu padrão de vida, o que afetou mais ainda a cordialidade no âmbito familiar. Sentia-se infeliz e tinha motivos para isso. Afinal, a sorte não fazia questão de ser sua companheira. Solitário, não era do tipo que sabia angariar amigos, embora fosse bom e generoso. Muito sério, sequer lhe passava pela cabeça buscar na companhia de outra mulher, a compensação pelo isolamento que, propositadamente ou não, a esposa lhe dispensava. Dessa vez, a visão que tivera durante o acidente perpetuara-se em sua lembrança. Pensava naquilo com freqüência e sentia-se bem, tomando-o até mesmo como um bálsamo e conforto nos momentos de depressão. Seis anos consumiram-se rapidamente e nada de bom acontecia para mudar a vida do nosso amigo. Pelo contrário. A filha engravidou de um desconhecido que passara em sua vida como um relâmpago, sumindo pelo mundo como lebre perseguida a se esconder na toca. Ficara o neto para sustentar e tomar o já tão escasso tempo da esposa, a inútil da filha, sem trabalho e sem vocação materna a procurar substitutos para ocupar, com a mesma efemeridade, o lugar do apavorado que se refugiara. O garoto sempre envolvido em arruaças só lhe trazia dissabores, as reclamações contra ele chegando de todos os cantos da cidade. Em função daquilo, José Carlos colecionava delegacias policiais. Não havia nada que o distraísse. O noticiário, eterno retransmissor de desgraças, contribuía para o crescimento de sua angústia. A televisão, o mais barato e acessível veículo de lazer de que dispunha, pelo saco de vulgaridade em que se transformara, passou a lhe causar aversão. O mundo enfeava e lhe parecia apodrecer dia a dia. Até mesmo as crianças já não lhe inspiravam emoção, mas somente piedade, pois há muito vinham sendo distorcidas e corrompidas na sua peculiar inocência pela mídia mercantilista e irresponsável. As mulheres, num modismo a desbotar-lhes sua natural meiguice e ternura metamorfoseando-se vulgares e sem graça, por feminismos equivocados. Corrupção, incompetência governamental, desonestidade, egoísmos, crueldades, corações e mentes a retrocederem numa infeliz inversão de sua evolução natural, o individualismo cada vez maior em detrimento da solidariedade, as novas gerações como que infectadas por vírus oncogenéticos a codificarem crescimentos de cânceres da alma, permitindo-se prever a transformação em lenta agonia de uma humanidade com os dias contados.

Era com essa amargura que José Carlos iniciou sua manhã naquele dia. Dormira mal, incomodado com um estranho mal estar na área do estômago. Nauseado, saiu para trabalhar. Caminhava lento pela Rua Uruguaiana, para ter acesso à Praça Mahatma Ghandi e não tinha pressa, sentindo-se como alguém com o dobro de sua idade. Uma sensação de cansaço. O ar curto. Um suor a lhe molhar as camisas. As pernas iam progressivamente ficando mais pesadas. Uma dor fina no peito combinada com a náusea intensificava-se. Os prédios girando. A magnífica arquitetura do Teatro Municipal, de repente, pareceu crescer e tombar sobre ele e de repente, as calçadas do Amarelinho, como que desgrudassem do chão subiram, batendo forte em seu rosto, um último ruído sendo audível sob a forma de um baque forte, o Sol apagando-se então. A luz aparecia pela terceira vez, José Carlos já familiarizado, esperou pela graciosa dama, que surgia agora rodeada de anjos tão bonitos quanto ela, entoando em coro, harmonioso canto. O sorriso irradiava, então, uma confortante luminosidade, muito maior do que nas outras ocasiões. Cores de todos os matizes, perfumes de todas as fragrâncias, sons os mais alegres e envolventes decoravam aquela maravilhosa alucinação. Abriu-se um espaço em que, incompreensivelmente, não havia horizontes nem limites. Toda a beleza das imagens e dos sons se incorporava diretamente a seu espírito pois dispensava os órgãos materiais para intermediá-los. E assimilava, deste modo, ao lado das mais belas obras que já existiram, os mais esplendorosos concertos de Chopin, Bach, Vivaldi, Mozart, enfim tudo aquilo de que ele gostava na vida. Sentia também com uma força imensurável, a presença de pessoas que amara e que se foram, fazendo regredir uma saudade que por muito tempo maltratara seu coração. E agora, repetindo os rituais anteriores, a linda mulher estendeu-lhe as mãos e pela primeira vez não se afastou. Puxou-o docemente para ela, abraçou-o e caminhou conduzindo-o à presença de Deus no mundo da perfeição.

Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br
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