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Contos-->Toda diferença fazdiferença -- 06/08/2003 - 16:43 (Clodoaldo Turcato) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Toda diferença faz diferença


Depois do assalto em Porto Alegre e toda a graça, fomos para a casa de um estancieiro amigo chamado Juca Bornal, vulgo Juca Pirama. Juvenal já tinha superado o ocorrido e dois dias depois se mostrava animado. Ele sempre fora bonachão, adorava uma novidade e conhecer o interior de Bento Gonçalves o deixou na ponta dos cascos.
Chegamos pela manhã. Ao nos ver na porteira, Juca Pirama ergueu os dois braços para o alto e pregou o grito.
_ Ora vivas! Mas a que devo tamanha surpresa de meu mui guapo amigo?
E deu-me um quebra costelas tão forte que senti dores pelo dorso. Estendeu a mão para Juvenal que estava quieto ao meu lado.
_ E aí gaudério, qual a tua graça?
Juvenal não entendeu a pergunta; mesmo assim devolveu:
_ Achei...achei muita graça. Graça por demais!
_ Como? – indignado.
_ Graça...muita graça mesmo – repetiu
Nesse desentender todo, Juca Pirama olhou para mim.
_ O que este cuiudo tá dizendo, tchê!
Me mantive sério, embora a situação merecesse uma gargalhada.
_ Ele apenas não entendeu seu jeito de falar seu Juca.
_ É um cabeça de restolho mesmo.
Agora foi Juvenal que ficou sem entender.
_ O que ele falou?
_ Ele está pedindo seu nome – contornei
_ Ah! Juvenal dos Santos – apertando a mão de Juca Pirama.
_ Bueno, Juca Bornal, seu criado.
Depois do atípico encontro inicial que gerou dúvidas de ambos os lados, por conta das gírias locais, fomos levados pelo gaúcho para a sede da estância.
_ Vamos até o rancho para um amargo. Garanto que não saboreias mais o amargo em sua terra.
_ Que que é isso? Sabes que mantenho a tradição do chimarrão, seu Juca.
_ Ah! é. E encontras a erva?
_ Não da mesma que tens por aqui. Tenho tomado umas caúnas brabas....
_ Bueno! Mas vai recordar o que é bom. A boa erva-mate cevada de acordo. Coisa de gaúcho.
Juca Pirama era o típico campesino. Mantinha as expressões e os jeitos dos tropeiros da costa sul, divisa com o Uruguai. Arredio à cidade, a ela pouco ia, passando a maior parte do tempo cuidando do gado. Mesmo grosso, era um companheiro leal e divertido; todas as vezes que o visitei guardei as melhores impressões.
Como todo gaúcho, vangloriava-se das coisas do Rio Grande : seu chimarrão, seu churrasco, seu cavalo, sua puína... eram melhores que de outros lugares. Do vinho ele não comentava nada, não que não gostasse, mas era coisa de italiano, não de gaúcho.
_ Gaúcho bebe caña!
Mas esta exaltação era despretensiosa, mais com o intento de agradar o visitante do que desprezar outras culturas. O seu mundo era o da tradição; seu conhecimento reduzido a terra, não saberia dizer, talvez, o nome do Governador do Rio Grande do Sul, ou o Presidente da Republica . Guardava como modelos Getulio Vargas e Leonel Brizola – o resto é resto! Juca era raro. Difícil encontrar na ignorância tanta sabedoria. Eu o admirava, e toda vez que passa por Porto Alegre esticava até a Estância Redomão.
E lá estávamos desfrutando da hospitalidade de Juca Pirama. Juvenal mantinha-se calado, ouvindo nossa conversa, afinal mal compreendia a gíria gauchesca. Sentamos em uma sacada ampla e, imediatamente, a cuia começou rodar, servido por uma guria esbelta que fez brilharem os olhos de Juvenal. O meu compadre deu tanta bandeira que até Juca percebeu.
_ Esta é Berenice, minha afilhada. Veio lá da fronteira para estas bandas. China linda, não é amigo Juvenal?
Pego de surpresa pelo china, não sabia se dizia sim ou não. Titubeou e, vendo seu aperto, interferi:
_ Muito bonita mesmo amigo Juca. Eu ainda não a conhecia...
Juvenal, que não gostava de ficar para trás, resolveu dar sua contribuição à conversa e sapecou:
_ É uma bela rapariga.
O Juca arregalou. Olhou-me incrédulo. Seu visitante recém apresentado já se dava à intimidade de chamar sua afilhada daquilo?
_ Ah! Xirú, o que falaste?
Juvenal não entendeu. Tinha feito um elogio à moça e recebia aquele bigode fechado. Mal sabia meu compadre que a expressão rapariga é usada no Sul para prostitutas. O que era elogio em Minas era ofensa no Rio Grande. Estava armada a confusão, agravado pelo fato de que china em Minas quer dizer prostituta e no Sul é usado para designar mulher. Assim Juca se sentiu ofendido e Juvenal desentendido. Mais uma vez interferi.
_ Calma amigo Juca. Meu amigo aqui vem de Minas Gerais onde rapariga é usado para chamar uma mulher de bonita. É um elogio.
_ Mas bá tchê, e tem isso, cambiado desse jeito?
_ É amigo Juca; e lá China é usado para ...
_ Puta!
_ É isso...
_ Quer me dizer o amigo que se na terra de vocês ( olhando para Juvenal) me chamarem de fresco levo como agrado?
_ Não, não. Fresco lá é como aqui – apressei-me em esclarecer.
_ Mas que indiada esquisita seu!
_ Costumes de cada lugar amigo Juca – ponderei.
_ Bueno. O amigo Juvenal que desculpe a grosseria; não leve com desfeita, apenas pensei que estive faltando ao respeito com Berenice. Mas vejo que é um índio guapo, apreciador do que é bom. Além de que, toda a chinoca que se preze gosta de uma delicadeza, respeitosa evidentemente. Não é assim minha flor- virando-se para a moça.
_ De certeza padrinho.
_ Entonses, aperte os ossos amigo Juvenal, Vejo que foste apenas delicado, nada de maldades – e deu um aperto de mãos vigoroso, que devolveu a calma para o ambiente.
O resto da manhã passamos de bate papo. Juvenal manteve-se atento e se uma expressão desconhecida surgisse ele me consultava antes de responder. Cada indagação do compadre arrancava risos de Berenice, que estendia olhares nada inocentes para o lado de Juvenal. Eu saquei a menina, mas me fiz de desentendido.
Um incidente grave ocorreu quando foi servida a primeira cuia de mate a Juvenal. Ele nunca tinha bebido chimarrão e imaginou que fosse frio. A sua primeira intenção foi recusar, como fazia em minha casa toda vez que eu o convidava. “Beber essa coisa amarguenta. Tá doido?” Mas recusar seria mais uma gafe, logo quando a jeitosa Berenice oferecia com tanto zelo.
_ Aceitas uma cuia, amigo Juvenal? – pergunta a já intima senhorita.
_ Claro...
_ Ora viva! Vejo que não é ruim de todo. Sabes apreciar o que é macanudo. Bebes mate na casa do amigo Claudio ? – perguntou um animado Juca Pirama.
_ Não, não. Na minha casa mesmo. Tenho lá os apetrechos todos.
_ Mas que xirú! Veja minha prenda que a gente não deve medir um homem de supetão. O gaudério aprecia o amargo.
_ É padrinho, é um guapo.
_ Um bagual esse Juvenal. E churrasco gordo?
_ Gosto bastante.
_ Com dois dedos de graxa? – perguntou a prenda.
_ Não, não, sem graxa. Melhor limpo.
_ Eu gosto é de carne gorda. Me lambuzo de cabo a rabo, num gozo só...
_ Esta chinoca é igual à falecida: quando se atraca num naco de carne vai até o osso – completou Juca.
Imaginemos o que passou pela cabeça de meu incausto compadre, principalmente em “me lambuzo de cabo a rabo, num gozo só”; e em “quando se atracava num naco de carne ia até o osso”, dita, no primeiro caso com um fundo malicioso, que levaria a uma segunda interpretação sem muito esforço.
_ Mas beba logo, senão esfria. Além de que não é microfone, tchê! – seguiu Juca Pirama.
Foi aí que se deu o banzé. Juvenal chupou na bomba. Como acontece com todo iniciante, queimou o céu da boca. Para quem nunca bebeu chimarrão é recomendável que inicie devagar, com água morna, evitando assim queimaduras. A bebida exige técnica para esfriar a água antes de engolir. A impressão inicial é horrível; gosto amargo afugenta alguns precipitados, mas com algum tempo o sujeito se habitua e aprecia.
Assim estava meu amigo no primeiro gole: boca queimada. Mas ele não poderia demostrar dor ou repugnação, afinal tinha dito e redito que era uma fera em mate. Qualquer gesto errado me levaria consigo. Mas ele agüentou. Fez a cara mais séria desde que eu o conhecera, fugindo de um touro bravo no potreiro do Lau. Juca e Berenice estavam fixos nele, aguardando a opinião à respeito. Eu certo de mais uma mancada, preparava uma desculpa. Mas ele não deu mole, engoliu seco e sem cara feia.
_ Mas que erva boa, amigo Juca.
_ É de Palmeiras. Erva buena, sim senhor!
Eu me contive calado, só imaginando quão grande esforço fez meu compadre para segurar.
E assim ficamos o resto da manhã de papo. Muitas bolhas depois, Juvenal já chimareava direitinho.
Estávamos na quinta-feira e minha intenção era retornar a Porto Alegre no mesmo dia. Manifestei minha intenção ao Juca que de imediato retrucou:
_ A las pucha tchê! Mas nem que a vaca tussa. O amigo mal chegou e já te bandeias? Parece cachorro magro que enche o bucho e zap.
E não teve jeito. Juca Pirama tinha programa um churrasco para o sábado em comemoração à Revolução Farroupilha – coisa de Maragato – e eu não poderia ficar de fora: convidado especial dele. O Juvenal ficou alegre, afinal estava bem amigo de Berenice.
Na sexta-feira passamos andando a cavalo pela estância, que era enorme. Juca Pirama era um homem abastado. Mesmo com pouco instruções tinha angariado uma pequena fortuna em terras e gado, fruto de sua habilidade nata em bem administrar.
À noite nos reunimos ao redor do fogão à lenha para mais chimarrão, pinhão e quentão. Nosso anfitrião nos abrilhantou com um desfile de músicas regionais, tocadas maestricamente com sua gaita-a-ponto. Berenice também soltou a voz em algumas guarânias e rancheiras. Após o primeiro ato, Juca solicitou nossa contribuição ao sarau. Eu nunca cantei nada, mas Juvenal não se fez de rogado e despejou seu repertório de samba canção, fato que gerou boas risadas.
Foi por demais agradável, encerrando com alguns duetos. A derradeira foi a canção Me chamam de grosso, de Gildo de Freitas – um estrondo!
Acordei cedo. Para minha surpresa Juvenal estava saindo da estrebaria, com um balde cheio de leite, acompanhado de Berenice. Juca Pirama era madrugador, como todo o campesino. No canto do galo já estava às voltas com os afazeres. Mesmo com uma dezena de empregados fazia questão de cumprir os horários com rigor.
Encontrei-o no chiqueiro limpando esterco.
_ Buenos dias vivente! Como foi a sestiada?
Agradeci ao amigo pela noite serena no colchão revestido com palha de milho. O dia teria muito trabalho na preparação da festa. A vaca já estava abatida ainda de manhã, juntamente com alguma ovelhas. Eu observava à distância aquela trabalheira toda. Juvenal não desgrudava de Berenice que por sua vez metia a mão na massa tal igual aos campeiros. Meu compadre, que não era chegado a trabalho, mas se achegava bem em uma confusão, tentava seguir os demais.
Tudo ia bem para meu amigo até que por volta das onze horas chegou na estância um rapaz muito bem vestido, todo arrumado, dirigindo um Santana. A sua chegada causou alvoroço em Berenice, correu para o chegado e sapecou um beijo, bem diante do nariz de Juvenal. Era seu namorado.
_ Este é Ariovaldo, meu namorado – apresentou-nos.
De Juvenal saiu um “prazer” murcho. Por essa ele não esperava. Seu desgosto pelo moço ficou claro. Sua disposição para o labor cessou naquela hora, vindo a se fixar ao meu lado, mascando um gomo de cana.
_ O que você esperava? Que uma menina daquelas não tivesse ninguém? – perguntei.
_ Ué? E o que tem isso? Não, não estava pensando que eu...
_ Não, nem imaginei. Era eu que estava babando.
Ao meio-dia a churrasqueira estava forrada. Os convidados foram chegando, formando um povaréu só. Juca Pirama parecia um serelepe de tão faceiro. Cumprimentava a todos do mesmo jeito, adultos e crianças, sempre com a mesma alegria contagiante.
Olhando para ele, concluí estar diante de um homem feliz. E olha que ele sempre foi assim, desde que o conheci, nunca tinha mudado. A única vez que o viram chorar foi quando da morte de sua esposa. Eu acredito que tenha sido mesmo. Até sua esterilidade não o entristecia. A falta de filhos era compensada com as inúmeras adoções que fizera durante sua vida.
O almoço sairia somente pelas duas da tarde, enquanto isso as rodas de carteado se formavam. As senhora preferiam canastra ou pife, os jovens o truco e os velhos ficavam com a bisca mesmo. Foi servido a tradicional caipira ( cachaça com açúcar e limão). Quem não gostasse que bebesse cana pura. A cerveja ficava para o almoço, nunca antes. Isso era rigorosamente respeitado.
Como eu era desconhecido, não me enturmei e fiquei a parte conversando com um casal de colonos alemães. De repente ouvi um gritedo e a bela Berenice aos berros.
_ Papai, seu Claudio, corram para a churrasqueira que o Ari e seu Juvenal estão se pegando!
Saltei do banco e fui para direção indicada, seguido de Juca Pirama. Lá chegando defrontei com Juvenal esmurrando o Ariosvaldo, que, em vão, tentava revidar. Eu não sabia o que fazer. Os presentes não interviam e a coisa ia ficando preta. Juca Pirama não hesitou: num golpe só separou os briguentos que foram beijar o solo.
_ O que se passa, seus galo índio? Parem com essa peleia e já!
Ninguém se moveu. Juca tornou enfurecido:
_ O que se passa? Ari, explique-se agora!
O jovem, cabisbaixo, respondeu:
_ Esse filho de uma égua desrespeitou sua casa com modos de arcaide.
_ E o que o senhor Juvenal fez que te embrabeceu tanto?
_ Saiba senhor Juca que por três vezes o maldito guspiu meio copo de caipira. Na primeira agüentei; na segunda achei que era brincadeira; mas na terceira vi que era desfeita e da grossa. O senhor sabe que não levo desaforo pra cassa. Inda mais de um mineirinho come bostas desse.
Mais uma vez a diferença de costumes pregara uma peça em meu compadre. É habito no Nordeste e em algumas regiões de Minas Gerais o sujeito cuspir ou derramar uma pequena quantidade de pinga, logo no primeiro gole. Já no Rio Grande do Sul a caipira é servida em um único copo que é repassada de mão em mão, bebendo-se coletivamente, ao contrário de outros locais onde a caipira é servida em copos individuais. Juvenal ao receber o copo das mãos de Ariosvaldo efetuou seu ritual e reteve a bebida, tomando sozinho. Todo estranharam em principio, porém pediram outro copo. Juvenal terminou o seu e pegou um segundo, mesmo gesto. No terceiro Ariosvaldo foi tirar satisfações. Como Juvenal já estava com ele pela garganta, para o confronto foi um passo.
_ Are, mas que porquera! Um furduço desses só por isso. Ariosvaldo largue mão de encrencas. Deixe o amigo Juvenal com seus jeitos. Cachaça tem de sobra; é minha, paga com meu dinheiro. Se houve ofensa foi a minha pessoa tu não tens nada que tomar minhas dores, eu ainda sou macho suficiente para cuidar de minha casa.
Esse era o Juca Pirama, sem meias palavras.
Explicações dadas, ficamos até o final do dia festando. Juvenal passou a beber cerveja, que se bebe do mesmo jeito em qualquer lugar do Brasil. Ao meu conselho, ficou distante de Berenice e Ariosvaldo.
Partimos à noite para Porto Alegre. O amigo Juca ficou entristecido com nossa partida. Eu de certa forma fiquei aliviado, afinal o número de mal entendidos tinham sido suficientes para dois dias. Mais um dia na estância poderia causar a Terceira Guerra Mundial.
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