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Humor-->Tragédia em um só ato -- 29/01/2003 - 01:00 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Tragédia em um só ato


Arnaldo Gentil Manha chegou no serviço às 9:00 da manhã. Alguns de seus colegas já estavam lá, arrumando suas coisas em suas mesas. Ele cumprimentou-os e se sentou em sua cadeira. Mais um dia de trabalho... Arnaldo não tinha uma vida agitada, vivia seu dia-a-dia sempre na mesma rotina.
Sua ocupação era de analista de sistemas. Ficava lá, em sua mesa, em seu computador, o dia inteiro. Outras dezenas de homens e mulheres faziam a mesma coisa em mesas ao seu redor. Era uma firma que trabalhava com venda de computadores. Uma distribuidora. O prédio era até que meio grande, com cinco andares. Ele ficava lá embaixo, no primeiro. Abaixo dele só estavam recepcionistas, faxineiros e secretárias.
Mas Arnaldo estava acostumado com esta vida que levava há anos.
O gerente, Quintino Peixoto, andava de lá pra cá o dia inteiro reclamando dos funcionários e dando sermões nos mesmos. Pode-se dizer que ele abusava de sua função, que era superior à deles. Além disso era o maior puxa-saco do diretor da firma, Benefício Xavier Dobrado. Daí vinha o nome da firma, Dobrado Computadores.
Benefício era um homem baixo, magro, e de temperamento elevado. Olhos arregalados, uma enorme testa franzida, poucos cabelos na cabeça penteados para trás e gestos rápidos e ágeis. Ele procurava praticidade total no trabalho. Odiava erros por parte dos funcionários. Ele tinha a pressão muito alta, qualquer imprevisto ou problema causava-lhe aflição e ele se irritava. Todos procuravam servi-lo sempre. Era muito exigente e extremamente cuidadoso com seus pertences. Era também egoísta. Certa vez chegou a ter um ataque cardíaco durante um dia de trabalho, por causa de um funcionário descuidado.
Porém, naquela manhã, Benefício parecia estar mais calmo do que de costume. Isso porque aquele era um dia especial. Pretendia reunir o pessoal na sala de reuniões para mostrar-lhes algo.
Era uma reunião somente para os seus puxa-sacos mais superiores, de modo que os analistas de sistema não estivessem presentes. Arnaldo não estaria presente.
A secretária de Benefício saiu pelas salas dos convocados, dizendo para se encontrarem na sala de reunião dali a cinco minutos. Todos imediatamente começaram a ajeitar gravatas, cuspir chicletes, arrumar cabelo, etc, pois sabiam que era um encontro com Benefício, um homem exigente. Só se ouvia “Como estou? Como estou?” “Aham! Arham!” “É pra levar a pasta? Hein?” por todas as salas dos últimos andares.
Lá no primeiro andar chegou a notícia de que iria haver uma reunião. “Quem vai?” “A gente também? Quem” “Que sala? Ah, a gente não” “Aham! Arham!”
Arnaldo estava completamente perdido. As pessoas passavam na sua frente, pisavam nele, não deixavam ele terminar o trabalho. Ele não sabia se ficava lá ou se ia para a reunião. Será que era reunião geral? Ou só para os manda-chuvas? Arnaldo, inseguro, cutucou o colega do computador ao lado.
- Mauro! - O Mauro em questão estava tão compenetrado na tela do computador que não percebeu Arnaldo - Mauro. Ô Mauro.
- Hã?! - assustou-se Mauro, um nerd de vinte e tantos anos e hacker nas horas vagas.
- Mauro, essa reunião é para todos ou não? A gente também tem que ir?
- Hã... - Mauro, com os óculos tortos no rosto e um pedaço de bolacha no canto da boca, ficou um tempo pensando - Hã... - Nada ainda - Ah, não sei, vamos ver se tem na Internet.
Arnaldo bateu no ombro de Mauro amigavelmente. Aquele era um caso perdido de internauta. O jovem Mauro provavelmente não dormia há dias. A Internet se tornara seu segundo lar.
Arnaldo, desorientado, foi falar com outro colega, Wilson. Este não era nerd, mas entendia muito de computador e qualquer outro aparelho.
- Ei, Arnaldo - disse Wilson - A gente também têm que ir à reunião. Eu ouvi alguém dizer.
- Sério?
- Claro! Vai indo, senão não dá tempo. Eu vou logo atrás.
- Tá - Arnaldo saiu correndo da sala, e Wilson, satisfeito, foi para o computador deste. O fato é que no computador de Wilson estava sendo executado um programa, e ele estava entediado de esperar aquilo acabar, então quis se distrair com algum jogo no computador de alguém. No caso, o de Arnaldo.
Arnaldo subia as escadas freneticamente, para chegar a tempo.
Enquanto isso, os verdadeiros convocados entravam e se acomodavam na sala de reuniões, onde estava Benefício, sentado. Em cima da enorme mesa, perto de Benefício, havia um objeto coberto com um pano. Provavelmente o motivo da reunião.
Quando todos já estavam sentados, esperando Benefício falar, este abriu a boca para começar a falar, mas não pôde prosseguir. Neste exato momento ouviu-se uma batida rápida na porta. Bateram de novo. Todos os homens e mulheres voltaram suas cabeças para a porta. Benefício ficou olhando para a porta, sério. Virou-se para a secretária e disse:
- Não vá abrir a porta. Deixe o atrasado entrar sozinho. Entre! - gritou ele.
A porta se abriu bem devagar, e só se ouvia na sala o leve som do ar condicionado. Na fresta da porta, foi surgindo a cabeça de Arnaldo, olhos arregalados e cabelos revirados devido à correria.
Ele entrou devagar, olhando para os presentes, fechou a porta e se dirigiu à mesa, vagarosamente. Olhava com medo para Benefício, e não percebeu que o bebedouro estava em seu caminho. Deu uma cotovelada neste, que caiu como que em câmera lenta no chão. Aquilo durou uma eternidade. Parecia que enquanto o bebedouro estava no ar, caindo, tinha-se tempo para pegá-lo. Mas o choque pelo qual as pessoas passam neste período é demorado, então só se dão conta realmente quando o objeto já está no chão.
A água se esparramou por todos os lados, molhando principalmente Arnaldo. Ele ficou olhando para o desastre, desesperado. Benefício tinha o olhar fixo em Arnaldo, e suas veias do pescoço estavam prestes a estourar. Suas pálpebras tremiam, assim como a cabeça de Arnaldo girava.
Benefício não dizia nada, então a secretária foi providenciar a limpeza da sala. E Arnaldo, na maior cara-de-pau, porém morrendo de medo, se sentou na mesa. Todos olhavam para ele, que não sabia onde enfiar a cabeça. Abriu a pasta e deixou a tampa cobrindo seu rosto.
Benefício conseguiu se acalmar, afinal, este era um dia importante.
Resolveu tirar o pano do objeto.
Era um vaso. Sim, um vaso. Benefício olhava para o vaso com um brilho nos olhos, demonstrando imenso respeito.
Todos esperavam para ver o que ele iria dizer. Benefício se levantou da cadeira e começou a falar.
- Senhores - sua voz era grave - Eu os reuni aqui hoje para que compartilhem comigo um sentimento muito profundo e de extrema importância.
Arnaldo foi se servindo do café que estava na mesa.
- Como vocês sabem, meus antepassados eram ingleses. Uma linhagem extremamente respeitosa e tradicional de ingleses.
Arnaldo colocou o café no copo. Pegou o pote do açúcar.
- Esta linhagem vem do tempo dos reis da Inglaterra. Meus descendentes eram nobres. Eram da corte. E sempre zelaram pela conservação de seus bens. Eu tenho um orgulho imenso desta tradição. Este vaso foi ganho por um antepassado meu daquela época. Foi dado por um imperador oriental ao Lorde George Dobrado, meu ancestral. Ele era um homem muito poderoso, que conquistou seus bens com muito esforço e trabalho. Já velho, deu o vaso para seu filho, o Conde Victor Dobrado. Este guardou o vaso em seu castelo, defendendo-o de invasões, bárbaros e saqueadores. Então, quando estava à beira da morte, deu-o para sua sobrinha, Margaret Dobrado. Esta, andou por centenas de cidades pelo mundo inteiro procurando comida e um lar. Nunca desistiu de sua luta. Cresceu perambulando ruas em busca de emprego. E sempre com seu vaso. Recebia muitas ofertas de compra do vaso, mas nunca o vendeu, nem por grandes somas, por causa do respeito que tinha pelo que lhe fora dado. O vaso foi passando por dezenas de pessoas, que o guardaram com igual respeito. Chegou intacto até o século vinte, nas mãos de Frank Dobrado, político inglês. Deu-o a seu filho, Benjamin Dobrado, que seria meu bisavô. Este lutou na Primeira Guerra Mundial contra aqueles que queriam se apossar de seu território. Ele certa vez preferiu perder um braço em uma explosão a perder o vaso, que voltara para pegar em um campo minado. E assim o passou a seu filho e meu avô, Charles Dobrado. Este lutou na Segunda Guerra contra a Alemanha nazista, pilotando aviões! Quando foi parar em um campo de concentração nazista, certo de que seria morto, deu um jeito de enviar o vaso a seu país através de um avião-correio. E este chegou até seu filho, meu pai, na Inglaterra. Meu pai sofria muito com o desemprego e a crise da guerra, quando ainda era jovem. E acabou indo lutar contra os socialistas, defendendo seu país, na Guerra Fria. Na Rússia enfrentou os mais diversos perigos, como exércitos, bombas, o frio e a fome. Quando a guerra já estava no fim, ele entrou em contato comigo e disse que o vaso estava escondido em certa base inglesa, a pedido dele. Então morreu. E lá fui eu, até a base inglesa, procurar pelo vaso. Ele me foi entregue e então me lembrei da história que meu pai havia me contado sobre o vaso. Aquele vaso que estava comigo, agora. Aquele vaso que eu deveria guardar e defender de qualquer perigo. Era a maior honra que alguém poderia ter. Eu o guardo em minha casa dentro de um cofre impenetrável, em extrema segurança. E esta é uma amostra de que o homem consegue qualquer coisa quando pretende defender o que lhe pertence e defender as pessoas que ama... - Benefício estava emocionado, uma lágrima corria em seu rosto - Este vaso simboliza o orgulho e o res... - Nesta hora houve um intenso período de transe. Arnaldo estivera até agora tentando abrir a tampa do açúcar, sem resultados. Quando conseguiu, com a ajuda de uma colher, fazer força para cima e abri-la, a tampa voou rapidamente para o alto. Aquele período foi mais demorado que o do bebedouro. Todos acompanharam sua longa subida, sua longa ascensão em câmera lenta, então viram ela chegar a seu auge, seu ponto máximo, e partir com iniciativa inevitável para baixo, ganhando velocidade.
A tampa caiu em cheio na quina da borda do vaso. Este era da porcelana mais cara, logo, era bem leve, então sua queda da mesa para o chão foi iminente. Então ouve um outro período lento, o da queda do vaso. O espaço entre a mesa e o chão era bem pequeno, mas deu tempo de o vaso dar um giro lento no ar. E em seguida encontrou o carpete do chão, se transformando em milhares de cacos.
Benefício nesta hora estava falando, e permanecera de boca aberta, com a mão suspensa, como se estivesse paralizado.
A sala ficou em profundo silêncio, todos olhando para Arnaldo, que colocava açúcar em seu café, a colher tremendo, enquanto olhava apavorado para seu chefe.
O curioso é que este é um caso excepcional de prejuízo. Por exemplo: sempre há aquelas ocasiões quando crianças estão brincando e um brinquedo é fatalmente quebrado. Um boneco que se desmembra completamente, o que pode provocar traumas desde cedo na criança, pois ela está vendo à sua frente o Rambo sem cabeça, ou o Batman paraplégico. É um desastre. Mas o bom é que o brinquedo pode ser comprado pela mãe da criança que o quebrou, e dado à criança traumática. Na verdade a maioria dos pertences é assim.
As pessoas não gostam de estragar amizades ou relações familiares por causa de um objeto quebrado. Sempre se diz: “Ah, meu Deus, não se preocupa, eu vou comprar outro, eu compro outro!” e o outro responde: : “Que é isso? Acha que eu ligo? Não precisa...” “Ah, mas eu compro, pode deixar!” e finalmente: “Ah, então tudo bem. Eu aceito.” É claro que as pessoas querem reaver o que foi quebrado.
Agora vejamos o caso de Benefício. Era um objeto que simplesmente não existia mais, e que se não estivesse com ele estaria em um grande museu. E mesmo que pudesse ser comprado um novo, não poderia substituir de qualquer forma uma raridade que passou pelas mãos de dezenas de nobres ingleses do século XV e que tinha um enorme valor pessoal para Benefício. Nem mesmo algo muito cobiçado, como uma Ferrari, um iate ou uma ilha poderia repor o vaso. E quando vemos algo assim se espatifar no chão, sabemos que não há volta, nunca mais voltaremos a ter aquilo, já se foi para sempre.
As veias de Benefício vibravam com tanto fervor que os homens que estavam ao seu lado viam o sangue fluir furiosamente nas veias de suas mãos. Viam seu peito vibrar com as batidas daquele coração que já havia tido problemas, viam o suor brotar na testa de Benefício. O corpo dele sentia ondas de fervor subindo dos pés, sufocando-o. O estresse do dia-a-dia estava sempre presente nele, não podendo assim suportar muitos incômodos durante o dia. Os pêlos de suas mãos arrepiaram, o sangue coloriu seu rosto rapidamente, as pálpebras vibravam cada vez mais rápido, e os olhos arregalados olhavam para o vaso. Mas não era o vaso que ele enxergava. Ele enxergava o passado do vaso. Enxergava seu avô e seu pai, orgulhosos da família, e a cobrança pra que tivesse o mesmo zelo pelo vaso. Um vaso que agora eram milhares de pedacinhos irrecuperáveis.
Arnaldo tinha que dizer alguma coisa para melhorar a situação. E soltou:
- Alguém aí tem cola?
Afinal, todo condenado tem direito às últimas palavras.

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