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Contos-->MÃE-BIJAGÓ -- 03/08/2003 - 21:40 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




MÃE-BIJAGÓ

Jan Muá
3 de agosto de 2003


Naquela hora, os irãs já dormiam no seio da floresta.
O negrume da noite concorria para dar paz aos animais adormecidos.
Na tabanca viam-se fogueiras coletivas e danças alegres. O ouvido se deliciava com os harmoniosos cânticos locais, acompanhados de atabaques. As bajudas e os rapazes jovens movimentavam-se em coreografias típicas da terra.
Tudo fazia da noite africana um murmúrio cheio de mistério aninhado no lençol da escuridão. Não havia energia elétrica. O mistério da noite era invadido pela luz quente das fogueiras. Só a alegria dos costumes tribais e dançarinos dos jovens trazia para este momento uma história ampla da tribo.
Por toda a ilha de Canhabaque, de um modo geral, a vida mostrava assim seu grito e sua expressão.
Mas mais além, no recanto de uma palhota humilde, havia uma mulher bijagó de 43 anos que estava matutando em sua cabeça a maneira prática de resolver o fim de seu casamento.
Desde os quatorze anos, tempos em que era uma linda bajuda, sabia que a sociedade africana em que vivia dava toda a prioridade à mulher. Os relatos dos velhos da tribo contam que era tradição na sociedade bijagó permitir à mulher toda a iniciativa nos principais momentos da vida. Trata-se de iniciativas inerentes ao sistema de um matriarcado. Essa tradição resumida em relato simples mostra essencialmente que a mulher é independente para decidir sua vida com autonomia. Isso, segundo os relatores das tradições, vem de tempos imemoriais. A tradição espalhou-se por todas as ilhas do arquipélago bijagó. Em todos os tempos. Antes, durante e depois dos tempos do Imperador papo Seco.
Segundo a tradição, a mulher tem entre os bijagós toda a liberdade de decisão e de comportamento. Sem interferência de pais ou de qualquer elemento da família. Tanto no que se refere a assuntos pessoais, quanto no que toca assuntos familiares e sociais, incluindo iniciação sexual, casamento e autoridade doméstica.
Mãe-bijagó fora uma moça bonita.
Sempre viveu no interior da ilha de Canhabaque, em meio rural e agreste. Toda a sua conduta se apoiou nas formas ancestrais ditadas pelos grandes da tribo.
Com 14 anos ganhou sua independência, arrumou seu namorado e trabalhava numa roça para tirar seu sustento. Pegava marisco nos baixios da costa marítima, colhia azeite dendê e vinho de palma. Tinha arroz na roça. Viveu cinco anos solteira Aproveitou para se preparar para a vida familiar.
Casou com Nino, seu segundo namorado, de quem gostava, disposta a organizar a família e a cuidar dos filhos que viessem. Foi mãe de dois rapazes. Agora estavam crescidos e independentes e ela voltava à sua rota original. Era uma criatura sozinha colocada perante a problemática do mundo. A tribo, a ilha, a floresta, o mar, a vida, a comida, a sobrevivência, o culto aos irãs, seriam as referências básicas de ora em diante.
Não era mais bajuda, não era mais a mãe imprescindível. Tivera até aquela data a colaboração fiel de seu companheiro. Ele fora um justo aliado na economia doméstica e no afeto. Plantava arroz de sequeiro nas clareiras da floresta, colhia coquinhos e trazia mariscos do mar para ela. Quando levava a azagaia para o mato conseguia de vez em quando uma cabra do mato. Nessa altura, se reuniam os amigos e os parentes para uma refeição especial de festa.
Agora, a idade estava avançando. Sua vida voltava à individualidade no seio da comunidade. Já falara com o jambacosse, orientador espiritual do sistema animista da ilha. Sua vida teria outra feição. Se juntaria a outras nharas, sempre requisitadas para serviços, orientação dos jovens, festas e grandes manjares cozinhados nas festas da tribo e da parentela.
Mãe-bijagó tinha tudo na cabeça. A maneira prática de como fazer. Tal qual aconteceu naquele dia quando tinha 14 anos e a tribo a tornava autônoma para escolher seus passos de menina livre rumo à iniciação sexual e vida autônoma, agora terminava um ciclo de vida.
Mãe-bijagó irá cumprir seu novo destino.
A maneira como separar-se de seu companheiro não era, na tradição bijagó, baseada numa conversa, num acordo. Não. Era baseada na lei radical do matriarcado. Como senhora absoluta de sua auto-determinação, ela não comunicaria a seu parceiro que a vida a dois iria terminar. Cumpriria apenas um simbólico costume ritual. Colocaria, na entrada da porta, os pertences importantes de Nino: objetos de pesca, de caça e de campo.
Naquele dia determinado, quando Nino voltasse do mato para dirigir-se à palhota como sempre costumava fazer, iria encontrar na entrada de sua antiga moradia todos os instrumentos de um trabalho que foi de dedicação econômica à família.
Chegou o dia. Olhando a frio o gesto matriarcal, tomou em mãos esses objetos e rumou ao encontro de outro destino.
Não seria mais o companheiro de Mãe-bijagó. Mas continuaria a ser um homem da tribo. Buscaria a sobrevivência no núcleo da comunidade e da parentela. E logo seria um grande da tribo a ser respeitado por seus conhecimentos e por sua idade.

_________________
GLOSSÁRIO BÁSICO

Bajuda = moça, menina jovem e adolescente
Bijagó= nome de uma tribo animista da Guiné-Bissau, que ocupa o arquipélago bijagó, na costa ocidental de África
Irã= nome derivado do crioulo guineense para designar os demiurgos, ou seres intermediários entre o homem e o ser supremo. Corresponde ao termo brasileiro “orixá”.
Jambacosse= feiticeiro, pajé
Nhara= senhora de idade, mulher indígena de idade
Palhota= palhoça, construção rudimentar feita na base de terra batida e pau a pique, coberta por palha ou ramos de palmeira.
Tabanca= nome crioulo empregado para designar “aldeia indígena” na Guiné-Bissau.

Jan Muá
3 de agosto de 2003
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