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cronicas-->Ele não está aqui (He is not here) -- 08/02/2003 - 01:00 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ele não está aqui (He is not here)

Carlos Canhameiro

"Abrão, casado com Sarai, deitou-se com sua serva Agar - instigado pela própria esposa - e ela gerou Ismael. Deus mudou o nome de Abrão para Abraão e de Sarai para Sara. Já com 100 anos, Abraão teve com Sara um filho, Isaque. Em seguida, expulsou Agar e Ismael de sua casa. Deus pediu a Abraão seu filho Isaque em sacrifício mas desistiu no momento em que Abraão cumpriria o holocausto. Isaque teve dois filhos, Esaú e Jacó. Um anjo lutou com Jacó e mudou o seu nome para Israel e dele nasceu o povo judeu. Ismael gerou os árabes."
Gênesis, Bíblia Sagrada

A cada passo que dou a destruição aumenta. Não há, nem na mais remota imaginação, qualquer indício de que o lugar onde meus pés estão foi um dia algo tão complexo e confuso como uma cidade. Há corpos pelo chão, neste exato momento meu pé esquerdo está sobre parte do que foi um dia uma mandíbula. Aqui o espaço para sentimentalismos foi revogado, invadido e destruído. Pedaços de gente em decomposição e outros em carne fresca; vísceras, órgãos, ossos, tijolos, arames, cabelos, fezes, pó, madeira, membros e muito sangue misturado com restos de roupas e o que mais poderiam trajar. Neste lugar até necrofílicos não se sentiriam à vontade. Não há o que contabilizar, não há pessoas completas, apenas um quebra-cabeça com milhares de peças e sem nenhum desenho na capa para seguir. Porém, a quem interessaria a contabilidade dos mortos quando não restaram vivos para chorá-los? O que adiantaria constar nos autos que um tal Sarid morreu vítima de uma explosão provocada por um míssil, ou outro Ariel esmagado por um tanque, ou outra Rebeca, uma mulher bomba que além de explodir seu corpo levou junto dezenas de outros? Aqui todos estão na mesma condição e em cada passo é visível que a dor e a disputa estão definitivamente encerradas. O silêncio reina absoluto, não o silêncio das cidades, aquele falso em que se acredita não estar ouvindo nada mas se ouve sempre algo, que seja a própria respiração. Nessas terras não há mais respirações, o ar e o vento não grassam mais por essa área. Talvez o criador esteja envergonhado do que criou e como um dia inspirou a vida através do seu sopro, hoje o retirou por completo. Sem o fado da criação, resta apenas o silêncio.
Estão dispostos juntos, filhos da escrava e filhos do cordeiro salvo do sacrifício. Ismael e Isaque contracenam em meio ao aniquilamento de seus herdeiros. Não cabe mais a busca por culpados, Abraão há tempos não habita esse mundo, muito menos Sara ou Agar. De certo que os triàngulos amorosos geralmente culminam em infelicidades, talvez esse - presente na gênese do mundo - seja o progenitor de tal paradigma. Por mais que tenha afirmado que a procura pelos transgressores muito provavelmente se revelaria estéril, eu, que aqui caminho sobre crànios e baços - caído do céu por invejar - não me perdoaria - se o ato de perdoar fosse um predicado presente em meu coração - por não fazê-la. Culpo o fecundo, o autor, o inventor: o Criador, somente ele e não a criatura. Porque da criatura não apenas desejo sua alma e seus delitos mas também a admiro, chego mesmo a idolatrá-la; e de nada ela me vale a estar desmembrada, dilacerada, em palavras mais claras e menos complicadas - o que muito provável seja pretensão minha - nacos de gente. Se acrescentar sal de mais a um cozido, pode este queixar-se ao cozinheiro?, ou uma torta lamuriar-se contra a delicada dama por tê-la feito de damascos e não de maçãs? Cabe ao sabedor de todas as coisas - passadas, que hão de vir e que agora estão a acontecer - decidir sobre qual rumo tomar. Se pediu a Abraão o filho Isaque por que não permitiu o sacrifício sendo que mais-dias-menos-dias todos seriam sacrificados? Ou então não permitisse ao senil e ainda Abrão o direito de fornicar com sua serva. Parece-me claro que este era o desejo dele - que aqui não se dará em letras maiúsculas e nem com entonações diferenciadas - de criar nações inimigas.
Quiçá esteja eu apenas destilando ainda mais minha pérfida simpatia por ele e seja ele livre das minhas acusações, porque quem pode tudo - como é o caso já que onipotência é uma das suas qualidades - então pode escolher o futuro - falo do futuro humano porque para ele tudo é uma coisa só - que melhor aprouver ou o menos sangrento, apesar de considerar a idéia de que é justamente o oposto.
De resto, se assim foram feitas as escolhas e esses quem piso agora - destituídos da imagem e semelhança de deus - nunca passaram de joguetes nas mãos dos eternos poderosos, em nada tenho culpa. Nada criei e nada controlo. Apenas vislumbro a destruição dos brinquedos de deus, até com um pouco de inveja - o que me é muito peculiar. Duas nações prometidas agora usufruem o mesmo terreno, como sempre desejaram os prometidos e como sempre quis quem prometeu. Enfim, de mãos dadas, mãos em que agora piso, encerram-se as mortes em morte. E eu, também como títere, apresento-me nesse momento e nesse lugar para acaso alguma testemunha apareça possa assim depor, que não foi o que deus quis mas sim o que o diabo tentou.


"Abrão, sai-te da tua terra, e da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação [...] mas também do filho desta serva farei uma nação." Gn 12,1-2 / 21,13
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