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Cronicas-->Ser Covarde Ainda é a Melhor Opção -- 08/02/2003 - 00:58 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ser Covarde Ainda é a Melhor Opção

Carlos Canhameiro

Noite quente, ele dormia descoberto e completamente nu em sua cama. Não
poderia dizer se tratar do sonos dos justos mas o merecido repouso após um
longo - porém sempre do mesmo tamanho - dia de trabalho. Seu quarto ficava
no andar superior da casa, onde havia ainda mais um quarto - que hospedava
um amigo - e um banheiro. Exatas três horas da manhã, o quarto um breu, ele
foi despertado por um som extremamente alto vindo da sala, que ficava no
térreo. Levantou-se de sobressalto e, como é de costume nessas situações,
não tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Alguns segundos depois
sentiu um formigamento se espalhar pelo corpo, o medo o invadira. A música
continuava a explodir pelas caixas de som. Ele não reconhecia o que tocava e
antes que o medo o dominasse, correu para a porta, fechou com menos cautela
do que a necessária para a situação e desesperadamente levou a mão em
direção à fechadura no intuito de trancar a porta. A mão passou batida pelo
buraco da chave. Lembrou-se imediatamente que a chave estava do outro lado
da porta - adotara a mania de trancar a porta do quarto quando saia para
trabalhar, motivado por uma desconfiança infundada de que seu parceiro de
moradia andava a furtar-lhe seus preciosos chocolates. Odiou-se por tamanha
mesquinharia. Encontrava-se em situação difícil: abrir ou não abrir a porta
para pegar a chave que ficara do outro lado. Abriu, o som parou em seguida,
o sangue esfriou-se num átimo. Só tornou a respirar depois que completou a
segunda volta com a chave, trancando definitivamente a porta. O chaveiro de
ferro com formato de uma caveira estilizada balançava devido a brusquidão do
movimento, batendo na madeira e produzindo um som similar a passos.
Correu a mão no interruptor e não houve luz. Apertou mais algumas dezenas de
vezes até se concluir que não havia energia elétrica ou a làmpada estava
queimada. Naquele momento, poderia jurar que ouvia alguém subir os degraus
que davam acesso ao andar superior. Respirava com dificuldade, seus pêlos
estavam ouriçados, suas pernas tremiam. Lembrou-se do telefone, caminhou
vagarosamente - suas olhos ainda não estavam acostumados com a escuridão -
até a mesa de trabalho que mantinha no quarto. Tateou cuidadosamente o tampo
da mesa. Identificou a agenda, o mouse do computador, a base do telefone,
porém, o gancho não estava lá, havia esquecido no banheiro quando tomou
banho - esperava a ligação de uma pessoa importante. Ao constatar a ausência
do telefone, levou descuidadamente a mão até a cintura, mas no meio do
trajeto, derrubou o porta-canetas que produziu barulho suficiente para
acordar um batalhão. Se fosse cardíaco, estaria estirado no chão junto com
as canetas e clips.
Tentou racionalizar a situação em meio aos espasmos corporais. Poderia olhar
através da janela. Quando chegou perto dos vidros e pensou em abrir a
persiana, o som voltou com toda a fúria anterior e a luz do quarto se
acendeu. Correu para cama, pisou numa caneta no caminho que furou-lhe o pé e
se escondeu sobre o edredon, formando um pequeno amontoado de tecido.
"Alguém ouviria o som... É só uma queda de energia", pensava
incessantemente, ou o amigo estava a pregar-lhe uma peça, ou os vizinhos
chamariam a polícia... A música cessou novamente quase ao mesmo tempo em que
os cachorros começaram a latir e arranhar a porta de ferro. Breu. O
desespero apoderou-se de suas vísceras, gritou repetidamente o nome do
amigo, até perder o fólego. Os cães passaram a rosnar. Ele, transpirava
duplamente, pelo calor do edredon sobre seu corpo encolhido e tenso e pelo
frio que maceravam suas veias.
A luz vacilou novamente mas logo apagou-se por definitivo. O som suspirou
mas cessou também em seguida. Ele rezava o que lembrava e o que podia. Pedia
aos deuses, aos filhos dos deuses e aos santos - disse milhares de nomes,
nunca faltariam santos para os nomes. Acreditava estar imerso em um
pesadelo, mas a realidade da situação não o deixava enganar-se. Estava
acordado e sentia o sangue escorrer do corte que se formara em seu pé.
O silêncio perdurou muitos minutos. O calor era insuportável debaixo do
cobertor. Quando ameaçou espichar a cabeça para fora o telefone tocou.
Escondeu-se novamente e ouviu a secretária eletrónica de mensagem cómica -
que não vinha a calhar para a situação - atender à ligação. Era seu amigo
dizendo que não dormiria em casa, que ligaria no dia seguinte no celular
dele, que deveriam mudar o recado da secretária eletrónica que o atual já
havia perdido a graça e que ele se cuidasse. "A ironia - pensou - presta um
favor ao desespero". Após o termino da mensagem a noite prosseguiu quente e
calada. Aos poucos foi se libertando do edredon, respirando mais aliviado e
se acomodando melhor na cama. O temor ainda estava em primeiro plano e a
desconfiança o consumia. Resolvera ficar deitado até amanhecer. Acordaria às
cinco e sabia que passaria o resto da noite acordado, mas era o preço a
pagar pela covardia assumida. Não levantaria para verificar a situação.
Após algumas dezenas de minutos, envergonhou-se da fraqueza, da falta de
coragem. Pensou no irmão que há tempos já teria descido a escada e colocado
a limpo o quiproquó e em todos os filmes de terror que aconselhavam a
manutenção da cobardia. "Quem seguir: irmão ou Hollywood?", e acabou por
decidir pelo irmão, que era mais pautado na realidade. Deixou a segurança da
cama, parou diante a porta, girou lentamente a chave, segurou a maçaneta,
pressionou-a para baixo e abriu num único movimento. Pode ver que alguém o
esperava frente ao batente. Antes que pudesse se entregar ao pavor completo,
uma espátula prateada perfurou sua garganta, atravessando o pescoço e
aparecendo a ponta na nuca. Arregalou os olhos, não conseguiu identificar
quem era, o dilatar da pupilas pelo golpe fatal fizera apenas que percebesse
tratar de um homem. Ainda pode sentir a làmina ser girada para direita e
para a esquerda. Desabou no chão, agonizou alguns segundos e lamentou não
ser ainda mais covarde. O despertador anunciava cinco horas.
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