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Contos-->A SENHORA DOS GATOS -- 02/08/2003 - 19:54 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Eu sempre a via no “trolley-bus” em que viajávamos, quando voltava, à noite, de um curso na Rua do Catete. Aquele tipo de coletivo que teve uma curta passagem pelo Rio na década de sessenta era um misto de bonde e de ônibus, pois que movido à eletricidade e sobre pneumáticos. De fabricação italiana, fora integrado à frota carioca com a finalidade de substituir os bondes porque, sendo livres dos trilhos, causava menos impacto sobre os engarrafamentos que constituíam um grande problema de tráfego na Zona Sul. Aquela liberdade pela metade trazia certos inconvenientes, como sói acontecer também na vida de seres humanos. Com grande freqüência, os cabos (eram duplos) soltavam-se dos fios ao se aventurar o motorista a uma ultrapassagem mais alargada, paralisando o veículo e obrigando o condutor a descer para reajusta-los.

Em quase todos os dias, no ponto seguinte aquele em que eu embarcava, lá estava ela sinalizando. Era uma mulher de uns setenta anos, miúda e gordinha, com traços neuróticos e que falava sem parar. Subia as escadinhas já tagarelando e todos lhe dirigiam os olhares acompanhados de antecipadas risadas. Ginasianos, com aquela algazarra própria dos adolescentes, provocavam-na e apelidaram-na de “Marquesa”. Trazia consigo bolsas grandes contendo alimentos para a comunidade de felinos que habitavam o Passeio Público. E invariavelmente, indiferente às gozações da molecada, fazia seus discursos acerca de seu amor pelos animais. Dizia gostar muito de todos os tipos de bichos, sem distinção. Contava que alimentava até mesmo as baratas com torrões de açúcar que deixava propositalmente sobre a mesa e que ficava de longe a observar “aquelas gracinhas” a se sustentarem. E abria as bolsas para exibir as rações, levantando-se do assento e desfilando pelo corredor. Contava também sobre os riscos que corria à frente de sua missão humanitária. Afinal, o parque era muito perigoso àquela hora da noite e hospedava desocupados e principalmente tarados, dos quais, alguns já haviam tentado contra a sua honra, só não logrando sucesso porque ela estava sempre prevenida com sua sombrinha, uma excelente arma de defesa – e mostrava-a sacudindo-a no ar. Falava também de sua amizade pelos policiais da área, os quais estavam sempre prontos a atende-la nas suas horas de aperto diante dos “tarrados” , modo como pronunciava em seu falso sotaque francês.

Marquesa sempre escolhia com misterioso critério a vítima de quem se sentaria ao lado. Um dia instalou-se perto de um rapaz mulato, uns trinta e cinco anos, magro mas forte e que viajava calado e aparentemente ausente da balbúrdia que era aquele ônibus com a velha dentro. Repetiu para ele a costumeira dissertação sobre a sua admiração com relação aos bichanos e de repente, o rapaz, sem olhar para o lado, interrompeu seu silêncio e disse em alto e bom som:
_ Eu também adoro gatos.
Marquesa, maravilhada, perguntou:
_ Mesmo? Qual o tipo que você mais gosta?
_ Os bem gordinhos.
_ Eu também. São muito fofos. Você tem quantos em casa?
_ Nenhum.
_ Como? Não tem espaço em sua casa para cria-los?
_Eu não os crio. Eu os como no mesmo dia em que os caço.
A mulher, então, desesperou-se . Deitou-se a dizer desatinos contra o moço, bradando pragas e sacudindo a sombrinha. O comedor de gatos, entretanto, não se perturbava. Continuava com seu olhar dirigido à frente, parecendo orientado por seus lábios grossos e compridos sob o bigodinho fino e malandro. E prosseguia, escondendo um sorriso que se estancava nos olhos, com a descrição de sua escandalosa rotina para toda a platéia admirada e contorcida por tantas gargalhadas. Relatava com maravilhosa perfeição e riqueza de detalhes toda a sua técnica de captura, transporte, abate e preparo. Chegava a estalar os lábios ao descrever sobre o tempero e como um competente “chef”, ensinava para todos a sua deliciosa receita. E a garotada incitava divertida, empolgada com os apartes de Marquesa que não tardou a baixar a sombrinha sobre a cabeça e os braços do inconveniente. Aquele, não conseguindo mais impedir que o riso descesse até a boca, defendia-se, se deslocando mas nem de longe incomodado com aquelas fracas pancadas. E ela, então, enfiava a cabeça na janela e gritava para fora do ônibus:
_ Polícia! Polícia! Tem um “tarrado” aqui! Pega o “tarrado”. O homem saltou, rindo muito, antes do ponto final na Cinelância, onde terminava para todos os passageiros aquela comédia diária.

Durante muitos anos eu me diverti com essas lembranças. Hoje, me ocupo em desenvolver uma interpretação renovada daqueles acontecimentos. Tenho a convicção de que Marquesa obtinha, daquela forma, raríssimos momentos de centralização de atenções, coisa extremamente difícil para um idoso. De que outra forma poderia conseguir lhe fossem dirigidos olhares e posicionados ouvidos? Aquele era o seu teatro. Passava por louca uma mulher esperta e na verdade cheia de lucidez. Contracenava com ela, pelos mesmos motivos, o rapaz que de certa forma lhe caíra do céu. Passaria incógnito naquela viagem aquele homem simples, comum, qual um reles espectro humano dissolvido na grande massa de mortais sem importância que perambulam pelas ruas das cidades. E como um efeito dominó, vamos, nessa rota de reflexões, assimilando pouco a pouco sobre a generalização das simulações a que se entregam as pessoas na busca da notoriedade e da fuga do ostracismo. Por outro lado, as vemos como suporte para o alcance de metas das mais medíocres às mais ambiciosas. Há um grande tapete que se estende de norte a sul do globo terrestre, sob o qual escondem-se verdadeiras porém irreveláveis intenções. Em todos os níveis, sejam familiares, conjugais, religiosos, dos negócios, dos amantes. Do político, então, nem se fala. Nas escolas, entre os amigos, na comunidade científica, no meio artístico, nas artes e letras, nos quartéis, nos clubes, nos esportes, na História e em que a própria História oculta e revela em consonância com as conveniências políticas das épocas.


Agosto de 2000 Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br
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