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Contos-->A Busca -- 30/07/2003 - 09:24 (Paulo Da Loia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não eram doze horas ainda naquele dia ensolarado de março.
Carlos dormia após uma agitada noitada com os amigos da universidade. Todos os intensos ruídos que o movimento lá fora produzia, não incomodava-o nem um pouco. Dormia, embalado pela álcool que ingeriu.
Por indiferença ao barulho de qualquer tipo, não notou que o seu relógio de parede mexia de um lado para outro, como querendo desprender-se do prego que o colava à parede. No seu êxito, o relógio jubilava-se em flutuar nos quatro cantos do dormitório, fazendo evoluções frenéticas. Segundo após, foi seguido por outros objetos do quarto, como o espelho, o abajur, a mochila de couro negro, os pesos de ginástica e os aparelhos de barbear. Tudo movendo-se ao mesmo tempo, numa dança sincronizada, assustadora, sem sentido. A janela abriu-se subitamente, dando vazão a uma corrente de ar intensa, contrastando com o exterior que apresentava um clima seco e nenhum vento. Tais fenômenos abalariam a qualquer um, mas Carlos, adormecido, foi poupado do susto.
O lençol azul que cobria parte do seu corpo, foi retirado com certa delicadeza. O pano também participou do ritual, sendo dobrado aos poucos. Carlos virou-se na cama, contudo ainda mantinha-se inconsciente. Um calor abrasador dominava todo o cômodo a partir daí o rapaz transformava-se literalmente numa cachoeira de suor. A cama encharcava-se, o colchão parecia ser forrado de água. O termômetro que repousava diante da fotografia dos pais, marcava a máxima temperatura de sua escala. Carlos começava a debater-se como se estivesse tendo um pesadelo.
Uma voz, no início sussurrante, dizia orações ininteligíveis e uma formação púrpura, semelhante a um corpo humano adulto, aproximou-se do rapaz. Um odor azedo dominou a cena e a pronúncia tornou-se mais clara:
- Vaga pelo mundo dos pesadelos, ordinário! Sua sina é vagar. Expulso pelo seu senhor, preferiu fugir de mim. Pobre criatura ordinária. Para onde pensa que vai? Pensa que apossando desse corpo jovem livrar-se-à da pena que foi lhe imposta? Está marcado para passar a eternidade servindo-me. Teve tua chance. Foi excomungado por aquele que tão mal serviu em sua vida terrena. Roubou, matou, espoliou o seu semelhante e ainda pretendeu ser aceito por Ele? Ele que tanto preza a bondade, a obediência, a pureza. Não nego que foi corajoso procurar o perdão Dele, mas esqueceu que para tanto deveria arrepender-se em vida material e não fê-lo... agora é tarde demais. Pretensão maior foi tentar escapar de meu domínio, pobre ordinário. Mandei meus príncipes, entretanto, aquele arcanjo auxiliou-o várias vezes ... este também não será poupado, ou por mim ou por Ele. Escapuliu de meus príncipes, mas agora o combate é comigo. Veremos se terá tanta força como mostrou ter com os meus subordinados. Apiedo deste jovem e de sua alma, ele não tem nada a ver com isso. E embora seja desprovido de beleza, é trágico o que irá ocorrer com ele, você será o culpado de mais uma alma perdida e perdido estará para todo o sempre.
A formação púrpura desmaterializou-se rapidamente. A temperatura voltara ao normal, o vento cessara, os objetos retomaram aos seus lugares, menos o lençol e o relógio, que despencaram do ar: o primeiro caiu no rosto de Carlos e o segundo espatifou-se no chão num grande estrondo. Carlos ergueu-se assustado, olhou o relógio caldo e notou a cama molhada, ficou perplexo.
Carlos de Almeida Rodrigues, era um feliz rapaz trabalhador que vivia sozinho num pequeno apartamento no centro da cidade. Conseguiu um estágio numa grande empresa dedicada ao ramo de assessoria jurídica, administrativa e financeira a grandes grupos. Estava na área de contabilidade e exercia o período integral. A noite fazia curso de administração de empresas, numa universidade perto de casa. Não era lá um aluno brilhante, mas obtinha as notas, suficientes para continuar o curso.
Com a morte dos pais num acidente, Carlos viu-se sozinho, pois seu irmão mais velho, casado, morava em outra cidade. Foi obrigado pelo destino a arranjar-se pelos próprios meios e carregava sua cruz com relativo sucesso. Era introvertido, um rapaz que não primava pela beleza, embora cativava poucos, entretanto, bons amigos e roubava o coração de uma jovem estudante de história, chamada Laura. Foi com ela a primeira pessoa com quem conversou naquele sábado:
- Eu juro para você, Laura, eu juro!
- Ontem choveu a noite inteira, você deixou a janela aberta e a chuva molhou tudo.
- E eu nem vi nem senti a chuva?
- Do jeito que você estava bêbado ontem. nem que desabasse o mundo, você acordaria - disse num tom de reprovação.
Carlos pareceu não se importar com o desagrado da namorada, ficou quieto, pensando no que poderia ter acontecido em seu apartamento:
- Ei, vai ficar com essa cara agora, é? Não aconteceu nada de estranho lá, você que depois que se meteu nesses centros espíritas, fica impressionado com qualquer coisinha - Laura falou puxando-o pelo braço e fitando seus olhos.
Carlos iria perder a calma, mas segurou, encarou fixamente a garota e quase tocando os seus lábios nos da namorada asseverou:
- Aconteceu algo no meu quarto ontem à noite, sim. Minha cama estava completamente encharcada e não era água de chuva, pois cheirava suor... se quiser ir lá ver, o cheiro ainda persiste. O lençol que uso para dormir estava dobrado várias vezes e quando acordei ele repousava em meu rosto. Aliás, a sensação que me tomou foi a de que caíra no meu rosto. O meu relógio de parede que você ajudou a fixar naquela parede, estava completamente destruído no chão, e do modo que estava preso era quase impossível o vento tê-lo derrubado, só se fosse um furacão! As cortinas... As cortinas! Caso fosse a água da chuva que ensopou o meu colchão como você me explica as cortinas estarem secas? E para encerrar, se você tivesse perdido os pais numa estupidez daquela, duvido que não correria para pedir auxílio para quem estivesse disposto em ajudá-Ia. O centro espírita ajudou-me muito e não estou impressionado com porcaria nenhuma!
Laura não esperava pela reação tão incisiva de Carlos. Abaixou a cabeça e afastou-se do namorado num misto de pejo e irritação. Ele notando que a próxima atitude da moça seria o de afastar-se de sua companhia, evitou a agressão, pegando-a nos braços e dando-lhe um amoroso beijo. Acariciaram-se em seguida. Contudo, continuava cristalina a preocupação e a interrogação no semblante de Carlos.
Alguns dias transcorreram depois daquele misterioso sábado. Carlos contou para os seus amigos o ocorrido e a impressão que eles tiveram foi o mesmo de Laura. "Foi a chuva! - disseram todos. Carlos preferiu não tocar mais no assunto.
Entretanto, o rapaz começava a passar por um processo psicológico e físico que preocupo-o, mas não sabia do que se tratava ao certo. Carlos mantinha-se durante horas, sempre à noite, deprimido, assustadiço, ansioso. O movimento dos carros na avenida próxima transtornava-o, o barulho era insuportável. Estava irritadiço e impaciente. Pouco comia, sentia uma sede terrível e bebia várias jarras de água. Contudo, só à noite.
O seu dia era normalíssimo, mesmo passando às madrugadas em claro, não sentia sono nem fadiga. Alimentava-se como antes, brincava como sempre e a atenção ao serviço era a mesma. Ás vezes, ele pensava o que se passava em seu apartamento era um pesadelo, algo irreal, que não existia e por qual não estava vivendo. Embora, ao por os pés em seu lar, após ter freqüentado sem qualquer tipo de constrangimento às aulas, todas aquelas terríveis sensações retomaram, aumentado sua intensidade na progressão do tempo. Agradeceu a Deus por manter-se são ao longo do dia, não prejudicando-se no trabalho e na faculdade. Mas o pior estava por vir. . .
Carlos voltou do almoço, naquela terça-feira nublada, fazendo picuinhas com dois de seus colegas de escritório. Entrou no banheiro masculino que serve os funcionários, abriu o seu armário e pegou seus apetrechos de higiene bucal. Os outros dois rapazes conversavam entre si, quando Carlos foi acometido por uma violenta ânsia de vomito, correndo para o vaso sanitário e despejando uma quantidade considerável daquela substância malcheirosa:
- O que aconteceu, Carlos? - perguntou um.
- Está melhor agora? - interessou-se o outro.
Carlos fazia um bochecho misturando água com creme dental, com a finalidade de tirar o gosto ruim de sua boca. Logo a seguir, escovou os dentes, sentindo uma ligeira fraqueza e sua visão ficou turva por poucos instantes. Observando a preocupação dos colegas, sorriu dizendo que estava tudo bem:
- Acho que foi aquele frango com creme de milho. Logo que pus à boca, senti um gosto de estragado - Carlos comentou.
- Deve ter sido - responderam os dois em uníssono.
Na realidade, Carlos sabia que não tinha sido o prato do almoço o responsável pela náusea. Pensou que essas duas novas sensações: fraqueza e tontura seriam efêmeras, contudo estava enganado. No desenvolvimento daquela terça-feira no escritório, uma forte dor de cabeça martelou-o, obrigando a fazer algo inédito em todos aqueles meses de bons serviços prestados: pedir para sair mais cedo. O chefe notificado do ocorrido no banheiro, não hesitou:
- Vá mesmo para casa, Carlos, descanse, tome algum remédio e amanhã estará melhor.
A visão de Carlos falhou novamente e ao esforçar-se em visualizar o chefes viu em seu lugar uma cabeça meio de animal e de homem, com um hálito azedo, vestindo camisa com gravata, numa imagem fantástica:
- Vá para casa, espero-te lá - disse a coisa, rindo.
O rapaz piscou várias vezes, as pernas bambearam, mas conseguiu equilibrar-se e sua visão tornou a clarear:
- Vá para casa, espero que melhore, amanhã. - era o chefe em seu aspecto normal. desejando a breve recuperação do subordinado.
Carlos saiu do prédio da empresa, carregando muita incredulidade ao que presenciara e um forte arrepio na espinha.
O rapaz chegou perturbado em casa. Trancou a porta, fechou as janelas e sentou tentando imaginar o que estaria ocorrendo com ele. Pensou em procurar ajuda de um profissional para ele naquele momento - estava quase certo que padecia de um mal psíquico. Ligou a televisão mais para que o apartamento não se perdesse no silêncio a propriamente uma vontade de distrair-se.
Às horas passaram rápidas. Não sentiu fome, não sentiu sono, apenas uma terrível impressão que estava sendo observado e que seus pensamentos eram lidos. Não sabia o porque de estar no apartamento, já que era só ali que tais sentimentos invadiam-no.
Buscou no fundo do seu âmago forças para levantar-se e sair dali, no êxito, o causador dos seus males, surgiu:
- Onde pensa que vai? - pergunta o próprio demônio, em sua aparência horripilante.
O susto de Carlos foi tão grande que seu corpo desabou num desmaio. o demônio colocou-o em pé com sua magia e seus dedos pontiagudos tocaram a testa do jovem:
- Além de tudo, fraco - esnobou o senhor do mal.
Carlos recobrou os sentidos e ao ver o aspecto horrendo da criatura por pouco não voltou a desfalecer. Controlou-se, no entanto. Analisou aquilo que estava vendo, não acreditando na sua existência. Olhou aquela figura medonha, suas presas enormes, seus olhos grandes e vermelhos, seu nariz comprido com dois enormes orifícios, seu tronco atarracado, seus membros magros e compridos,
seus chifres encurtados, sua barbicha volumosa e seu hálito azedo. Foi com este mesmo odor nauseabundo que recordou e associou com o semblante diabólico que seu chefe havia se transformado. Com coragem suficiente para pronunciar poucas palavras, indagou desesperado:
- O que... que quer de mim?
A besta riu alto, divertido. Jogou o rapaz de encontro à parede:
- Não quero você, idiota. Quero a alma que está com você!
O choque com o concreto feriu Carlos. O sangue escorreu de seus cotovelos e de sua nuca.
- Não sei do que está falando! - Carlos gritou apavorado.
Uma fumaça negra tomou conta do local, dissipando-se aos poucos. O jovem procurou a criatura, tremendo de pavor e sentindo-se incapaz de reagir. Notou que a sangria crescia e a única coisa no que pensou foi fugir dali.
Por volta das vinte e uma horas, Carlos chegou no Centro Avançado de Estudo do Espiritismo, entidade que visitava desde a morte dos pais. Foi procurar "doutor" Leandro, pesquisador de fenômenos paranormais, muito afamado pelos freqüentadores. Foi encontrá-lo na biblioteca do instituto:
- Dr. Leandro, posso falar com o senhor? É rápido – Carlos pediu.
Os olhos daquele homem de meia idade saltou sobre as lentes dos óculos, notando com preocupação o modo agitado do jovem seguidor e seus ferimentos:
- O que aconteceu, Carlos? - indagou, fechando o livro que estava lendo.
- Aconteceu algo muito estranho comigo, Dr. Leandro. O senhor é o único que pode esclarecer ou diagnosticar minha loucura.
- Loucura? - O "doutor" não assimilou - Calma, Carlos, conte-me o que ocorreu.
O rapaz narrou tudo, desde o dia em que o relógio despencou ao chão até o encontro com a besta. Leandro parecia não duvidar das anormalidades descritas por Carlos, pois pegara um bloquinho de papel em seu bolso e passou a anotar tudo que era de interesse, não se importando em voltar uma ou mais vezes em passagens mal compreendidas por ele.
O estudioso sabia perfeitamente que Carlos era um rapaz sério, que lutava com dificuldade para manter-se sozinho e que o choque da perda de seus genitores fora muito doloroso e que não ousava fantasiar acontecimentos sobrenaturais. Isso que dizer que Leandro não suspeitava da história contada por Carlos e começou a analisá-la com toda a sua experiência e seus conhecimentos adquiridos em mais de vinte anos de pesquisas.
- Não posso afirmar-lhe nada, meu caro, pelos menos por enquanto. Teremos que nos aprofundar mais sobre o por quê da presença desse Ser maligno e focalizaremos nossa atenção bem no início dos fenômenos percebidos por você.
- Sim, mas será também impossível adiantar alguma coisa? - Carlos perguntou aflito.
- Minhas suspeitas recaem a uma hipótese que necessita de uma investigação mais completa. Creio que alguma coisa que na vida passada sua alma deixou em falta e uma força superior veio agora reclamar. Para que possamos dissipar tais dúvidas, será preciso que você passe por uma mesa branca, com a presença de um médium. para que ele entenda o que se sucede, vou pedir para Dona Emília fazer isso para nós, além de ser a mais experiente do centro, ela também já presenciou casos semelhantes. Até um bom conselho ela não deixará de dar. Dona Emília se encontra aqui hoje, e pelo seu aspecto, Carlos, vou pedir que ela nos ajude ainda nessa noite, pois acredito que não deva voltar ao seu apartamento até tudo ser esclarecido.
- Conto com sua ajuda, doutor e de Dona Emília.
Leandro sorriu:
- Seja o que for deve estar preparado mesmo para o pior. Deve ter equilíbrio emocional, muita fé e muita coragem. O medo será o seu maior inimigo.
- Estava pensando nisso, Doutor. Não nego que estou com medo.
- Talvez não seja nada demais, pode até ser psicológico mas pode ser um fenômeno muito poderoso, outrossim, não pretendo assustá-lo, contudo, não posso esconder de você minhas preocupações. Pelo seu estado, creio que algo de muito ruim aconteceu e vamos esclarecê-lo.
Sentaram as quatro pessoas diante da pequena mesa redonda de madeira prensada. Uma pequena toalha de rendas protegia sua superfície lisa. Uma vela estava acesa, a sala estava quase na escuridão. O silêncio era absoluto, Carlos estava ao lado de Leandro, que por sua vez, sentou perto de Dona Emília e esta
tinha a sua direita outro médium para auxiliá-la. Deram as mãos e, Dona Emília tomou para si a responsabilidade do trabalho.
Começou sussurrando uma prece. Com o término da oração, iniciou um processo de concentração, onde respirava fundo, mas com equilíbrio. Muitos minutos se passaram e Dona Emília resfolegava, nesse momento, pendendo a cabeça de um lado ao outro, como se estivesse em transe, soltava sílabas indecifráveis, seus lábios moviam como se estivesse conversando com alguém, emitiu um brado estridente, logo depois outro e sua ajudante principiou o mesmo curso de balançar a cabeça para frente e para trás, como que tomada por uma força superior.
Carlos vislumbrava a cena com espanto. Não estava familiarizado com tal ritual e não conseguia encarar tudo aquilo com a serenidade que merecia. Virou-se para Leandro que mantinha-se com os olhos cerrados e muito concentrado, querendo cutucar-lhe, embora, faltou-lhe coragem. Olhou as duas mulheres agitando seus corpos e teve vontade de rir, mas um sentimento ético coibiu-o, não esquecendo da boa dose de temor de um castigo sobrenatural que esse ato poderia causar-lhe.
Dona Emília deu mais um grito, a vela se apagou e reacendeu como por um passe de mágica. Carlos sentiu-se tonto, de repente seus membros não respeitavam o comando de seu cérebro, seu estômago girava como se fosse ter ânsia de vômito mais uma vez, perdeu os sentidos e seu tronco entorpecido caiu sobre a mesa. O soar do impacto confundiu-se com a voz grossa masculina que interrompeu a silêncio:
- O que quer de mim? - inquiriu a voz, utilizando a médium para auxiliá-la como meio.
- Quem é você? - redargüiu Dona Emília, secamente.
- Sou Felipe, mas sou mais conhecido como Agulha.
- Como prefere que o chame?
- Agulha! Não pretende demorar com isso, não é?
- Não, mas é só responder às perguntas que motivaram a invocar-lhe. Por que está causando tantos males a este homem? Qual motivo que levou a você se acostar num rapaz tão sofrido e obrigá-lo a passar situações tão constrangedoras?
- Não entendo do que está falando! - protestou a voz.
- Não seja leviano, ser infernal! Qual seu objetivo?
- Não tenho objetivo algum. A alma deste rapaz é muito iluminada. Passo por privações e preciso de ajuda. Quando os país deste garoto morreram ele estava tão deprimido, tão indefeso e sabedor da luz que sua alma possuí, aproveitei a ocasião para usufruir um pouco desta força. Não pense você que fiz isso por ser um espírito aproveitador, é como falei, estou passando por privações e até que tudo esteja dentro das conformidades, tenho que alimentar-me desta energia. Não quero nenhum mal ao jovem, nem sua alma que é iluminada, mas não é muito forte. Só necessito de tempo e ajuda.
Uma luz azul clareou a sala. Um vento gélido de pouca intensidade, quase como uma brisa soprava num corredor que atingia a mesa. A voz gritava para que a luz se afastasse, que fosse embora, porém fez o contrário, tomando a forma de um homem. Dona Emília e Leandro não conseguiam montar a fisionomia daquele Ser alto e luminoso.
- Diga o por quê de estar causando males ao pobre Carlos, Felipe – disse.
- Não sei de nada! Deixem-me em paz! - gritou
Dona Emília virou-se interrogativa, não sabendo o que fazer. Orou a Deus para dar-lhe condições de suportar as experiências que estava tendo:
- Quem é você? - indagou ela.
- Sou o arcanjo Akfak. Estou tentando proteger esta alma perdida que foi proibida de ingressar no paraíso pelo meu Senhor e que está tentando fugir dos fâmulos do Diabo. O Senhor irá castigar-me a qualquer momento por isso, mas não pude deixar de intervir. Não consigo conceber porque uma alma que tenta reabilitar-se não pode juntar-se a nós no paraíso. Por que?
- Não estou entendendo arcanjo Akfak. O que Carlos tem a ver com tudo isso?
- Com o fim do ciclo de vida terrena de seus pais, Carlos deixou-se abater muito. Eles tentaram segurar Felipe, mas não conseguiram, e este começou a usufruir da energia que o espírito do rapaz tem. Felipe é uma alma que vaga sem rumo. Está proibido de entrar no reino dos céus e é caçado pelas forças do mal. Entretanto, agora, o próprio demônio está atrás de Felipe e ele quer destruí-lo, como a mim, e não deixará Carlos escapar de seu ódio.
- O Demônio está atrás de Carlos? - perguntou Dona Emília, com espanto.
- Ele está atrás de mim! - vociferou Felipe “Agulha".
- Ele está atrás dos três! - resumiu o anjo desafeto.
Dona Emília não sabia como agir agora, definitivamente. O arcanjo e Agulha continuavam presentes, enquanto Carlos ainda estava caído na mesa. Contudo, o circulo não fora aberto e sua força mantinha-se poderosa. A experiente médium deu-se conta disso e tentou tirar mais informações que fossem aproveitadas ao auxílio do rapaz inocente:
- Por que o Demônio não conseguiu capturar Felipe, Akfak?
- Porque ajudei-o.
- Como fê-lo - interessou-se a mulher com grande expectativa.
- Um amuleto. Somente com o amuleto fabricado pelo próprio apóstolo João. Apenas ele é capaz de resistir a fúria do senhor do mal. Mas o demônio já fez contato com Carlos, chegou a hora do seu ataque!
- E como poderei obter o tal talismã?
- Não sei se poderá ... Eu o guardo num local sagrado, mas secreto ...
O tom de voz do anjo soprou como que fosse impossível para Carlos adquirir o amuleto para sua própria defesa. Dona Emília insistiu com o arcanjo, mas ele não esperou por mais uma súplica da médium e foi-se, levando consigo aquela luz azul.
Antes de partir Felipe “Agulha" aconselhou às três pessoas que estavam amparando o jovem que fossem tomados de grande cautela, pois o demônio poderia estender a sua crueldade a quem ousasse desafiá-lo. Após dar o recado também partiu e imediatamente Carlos e a segunda médium saíram do transe.

* * * * *

Alguns dias passaram ligeiro para Carlos, sem a incômoda presença daquela terrível criatura. O rapaz hospedou-se num pequeno quarto nos fundos do Centro, provisoriamente, por ordens expressas de Leandro e Dona Emília. Ele não lembrava de nada do que ocorreu na sessão e ficou muito temeroso com o que foi-lhe dito. Rezava toda hora pedindo a Deus a compreensão de o por quê de ser escolhido para vítima de tamanha maldição, o por quê de ser castigado tantas vezes e de forma insuportavelmente dolorida.
Ao que diz respeito ao comportamento estranho que mantinha durante a noite, foi de uma forma gradual perdendo a sua insana influência, conseguindo alimentar-se, concentrar-se e até mesmo cochilar mais prolongadamente. No decorrer do dia era exatamente igual, sempre com disposição, apetite, atenção e raciocínio normais para um bom desenvolvimento profissional e para uma boa absorção das disciplinas universitárias.
Carlos não contou para ninguém a tragédia que vivia, exceto a Laura, que em princípio não acreditou. Foi com uma conversa demorada com Leandro, que a jovem convenceu-se que o namorado não havia enlouquecido. Daí para frente, mostrou-se muito solícita e carinhosa, tentando animar o rapaz que dava mostras visíveis de abatimento. Tanto, cogitou a idéia de pedir umas férias ao patrão para que pudesse viajar, para tentar espairecer e fugir - se isso fosse possível - do controle do Demônio. Leandro, entretanto, fê-lo reconsiderar expondo que seria pior abandonar temporariamente o emprego e a faculdade, já que estes serviam para distraí-lo de uma maneira ou de outra, que e era absolutamente salutar. Leandro também forçou Carlos a olhar tudo aquilo com uma visão fria, cautelosa, calculada, de forma alguma dando espaço para o medo e a covardia e concentrar todas às suas forças para encontrar uma solução o mais rápido que pudesse. O jovem acatou a opinião de Leandro e tentou controlar-se.
Muitos outros dias se passaram assim, tranqüilo, nada de anormal ocorrendo, até mesmo uma implicante rotina deu o ar de sua graça, graça, mas Carlos, no mais profundo de seu íntimo pensamento sabia que estava sendo observado e que numa hora ou outra, tudo de terrível que profetizava para si, poderia acontecer e o pior era que ele estava certo...
Carlos acordou com o corpo dolorido naquele dia, sua cabeça doía e seu desânimo era quase total. Os sintomas eram de uma forte gripe, que logo associou-se ao temporal que pegou na tarde anterior, depois do expediente. Contudo, seu dever profissional obrigou-o a vestir-se e sair do quarto. Trabalhou com a incomoda sensação todo o tempo, com uma forte cefalalgia e náuseas contínuas. Ingeriu uns comprimidos e foi a faculdade, sendo que seu estado melhorou um pouco. Finda às aulas, rumou à estação do metrô próxima, para voltar ao Centro.
Introduziu o bilhete na catraca e correu para a plataforma de embarque paca sentar nos banquinhos, tamanho era a cansaço de seu corpo. De repente, descansando naquele acento de plástico resistente, um frio correu-lhe a espinha e seus membros começaram a tremer, incontroláveis. Carlos olhava à sua volta e não via ninguém. Estava tudo absolutamente quieto, ninguém subia nem descia pelas escadas rolantes e fixas, nenhuma pessoa esperava pelas composições nas duas plataformas de acesso, até que um trem rasgasse o silêncio e estacionasse, abrindo às portas de seus carros. Estes estavam vazios, nenhum indivíduo neles viajavam e Carlos vislumbrou tudo aquilo, sabendo o seu significado, ou parte dele.
O rapaz entrou e sentou-se logo e segurou numa barra que ia do assoalho ao teto. Começou a respirar fundo, exercício que aprendeu para controlar o nervosismo. Estava no último vagão e rapidamente suas portas fecharam e o trem se pôs em movimento. Carlos olhou à grande janela e notou que não saíra do lugar, mesmo tendo a composição o balanço e os ruídos característicos de quando corre pelos trilhos. Espantado, se o jovem tivesse qualquer dúvida sobre o retorno do Demônio, elas desapareceram naquele instante completamente:
- O que você quer de mim? O que você quer de mim? - Gritou várias vezes.
De repente os solavancos, o barulho, a impressão de deslocamento haviam cessados, e todas as luzes foram apagadas, somente no vagão residia claridade.
- Porque está fazendo isso comigo? Nunca ironizei seu nome, nunca o invoquei em vão, nunca gracejei o seu poder, nem dele tentei usufruir, então, por que me persegue? Deixa-me em paz!
Um odor azedo predominou no ar e uma formação gasosa aos poucos materializou-se até compor-se na horrenda criatura que Carlos já teve o desprazer de conhecer:
- Tolo ser. Sabes que não quero nada de ti, apenas o desgraçado que suga sua energia. Vou levá-lo comigo e disso ninguém se atreverá a impedir! - clamou.
- Leve-o mas deixe-me livre disso. Não tenho nada a ver com o que está acontecendo.
- Para seu azar, moço idiota, esse maldito ser não tem nenhum escrúpulo e a covardia é o seu forte. Jamais abandonará a energia que consome de ti, nem que para tanto tenha que destruir-lhe.
- E para levá-lo consigo, não intimidará em destruir-me também?
O Demônio riu estrondosamente, respondendo com sarcasmos a mortal indagação.
Carlos não precisou de melhor resposta e seu controle já dava mostras de esgotamento. O medo era irresistível e o desespero corria-lhe pelo corpo, consciente que o pavor apenas iria trazer-lhe conseqüências nocivas. Não sabia como agir, na verdade, e rezou a Deus para que recebesse a benção divina e se salvasse da armadilha.
- Ele não irá ajudá-los - riu mais alto ainda, o Demônio.
Um ponto de luz acendeu lá de fora e voou em direção à janela, partindo-a em milhares de fragmentos, num estardalhaço amedrontador. Carlos virou-se à luz azulada que tomava o fundo do vagão e não teve reação alguma. Sentiu-se tragado pelo clarão e sendo levado para fora da composição pela janela quebrada. O único suspiro que deu foi em tom de interrogação:
- Para onde está me levando?
Certamente não ouviu a refutação daquela energia luminosa. O arcanjo Akfak livrou Carlos da cólera do senhor do inferno e deixou-o em um lugar seguro, numa pequena igreja num bairro afastado da cidade. Ali era um lugar santo, onde o Demônio não ousaria entrar por ora. Contudo, a igreja não serviria de esconderijo permanente, somente para que o rapaz pudesse descansar com calma. O anjo ficou com Carlos até o amanhecer, quando acordou do seu profundo sono:
- Onde será que estou? - indagou a si mesmo, esfregando os olhos.
Observou o altar, a cruz, os santos e os assentos de madeira e conclui que estava na casa de Deus. Agradeceu-o várias vezes e uma rajada de vento de dentro da nave abriu às portas centrais e ele apressadamente chispou dali.
Carlos sabia que o único remédio para o seu mal teria de ser encontrado mais que imediatamente. Correu ao Centro espirita ao encontro de Leandro. Ao achá-lo, não demorou em narrar os últimos acontecimentos. O "doutor” olhou o rapaz com ar de interrogação, deixando escapar um certo descontrole sobre a situação, muito diferente da sua postura nos dias anteriores:
- O que foi Dr. Leandro? - percebeu Carlos.
Leandro rendeu-se à sinceridade e falou tudo o que pensava sobre o infortúnio do jovem amigo. Disse que não tinha tanta certeza do modo de agir do Demônio, nem como determinar sua nova aparição, muito menos como se defender dele. Também comentou que estava numa posição difícil, pois foi encarregado de conseguir uma resposta e estava falhando, enquanto isso a vida do rapaz mantinha-se em perigo.
Carlos surpreendeu-se em deparar com a aflição do especialista. Algo sugeriu-lhe que à partir daquele instante, ele mesmo fosse atrás de sua salvação, que não poderia esperar pelos outros, mesmo que esse pensamento configurasse como injusta para aqueles que queriam ajudá-lo. Entretanto, seria inevitável, que Carlos, por diante, teria que chamar para si a responsabilidade de escapulir dessa armadilha que o destino encomendou-lhe.
- Se Dona Emília invocar a alma que salvou-me? - Carlos sugeriu.
- Não resolveria - desiludiu Leandro. - Ele não é um espírito comum, ele é um anjo. Quem te salvou do Demônio foi um arcanjo chamado Akfak - Leandro quedou-se por segundos, concentrando-se em seus pensamentos, para logo dizer: - Sim claro, somente Akfak tem a salvação... o amuleto!
- Foi nisso em que pensei - comentou o jovem.
- Ele disse que somente o talismã forjado pelo apóstolo João é capaz de destruir, ou melhor, afastar a presença do Demônio para sempre. Contou também que guarda o amuleto num local seguro, sagrado, mas não precisou onde, disse ser um local secreto.
- Como um anjo pode querer dar uma de difícil, de fazer xaradinha, meu Deus?! - desesperou-se Carlos. - Por que, "doutor”, por que ele não nos entrega o amuleto?
- Como saberei? Avalio algumas hipóteses: ou ele só não entregou porque não houve um pedido formal; ou que ele utiliza tal instrumento para defender-se, também, da peste infernal; ou foi instruído a não dar o talismã para ninguém.
- Fazer um pedido formal para que ele me salve? Essa não... é Dr. Leandro quem nasceu para ser bucha de canhão nunca vai ser pavio...
Leandro não consegui impedir o sorriso da melancolia praguejante do amigo. O que o experiente especialista olvidou foi o de aconselhar Carlos a ficar na Igreja que Akfak deixou-o após ser abordado pelo Demônio. Quando se deu conta disso, já estava muito distante do Centro, indo para um local onde daria uma palestra no subúrbio da cidade. Um estalo despertou-o para o lugar que presumivelmente estaria o poderoso amuleto de São João. Sua conclusão foi tão simples e fácil, que tentou refutar várias vezes a idéia. Animou-se ao pensar que no mínimo seria um início, um ponto de partida, à redenção, contudo, o mais incrível, era que sua dedução era absolutamente correta. Leandro foi tomado de assalto por uma bola luminosa que surgiu no banco de passageiro que jogou o carro para fora da pista. O homem segurou firme o volante, tentando postar o automóvel na linha correta, contudo, notou que seria inútil lutar contra aquele Ser. Estacionou num lugar plano, sem asfalto, brecando abruptamente como forma de protesto:
- O que deseja? - indagou sério.
- Sou eu, Akfak. Quero falar a respeito do amuleto.
- Estou com a razão, está mesmo na Igreja, não é?
- Sim, ali é um lugar sagrado, por uma razão que não vou mencionar agora, pois além de desnecessário, levaria muito tempo. Vamos para o assunto primordial: não vá buscar o amuleto, peço que faça a galhardia de aceitar meu pedido, comprometo-me em dar-lhe o talismã que salvará a vida do jovem. Em hipótese alguma, vá a igreja tentar encontrar a peça de São João, por favor. Isso poderia trazer-lhe terríveis conseqüências. Aguarde com paciência e bom senso, que cumprirei com o prometido.
- Não tenho dúvidas a respeito da seriedade de seu propósito, Akfak, apenas é que a situação de Carlos é premente. Pode ser questão de horas, se não for o caso de Carlos está sendo atacado pelo Demônio, neste momento!
- Não, ele está tranqüilo neste momento. Ele está bem - sossegou o arcanjo, convincente na sua certeza.
- Conversarei com Carlos e esperaremos a entrega do talismã como quer.
Confiarei em você, mas reitero meu pedido, não demore muito.
Deu a parecer que Akfak não estava muito apreensivo com a urgência dos acontecimentos.
No canto oposto da cidade, Carlos tentava pensar em outras coisas, após a molestação ocorrida na noite anterior pelo senhor do mal. Não foi trabalhar, preferiu fazer compras, ir ao shopping, ir à biblioteca, comprar discos... À tarde, passou bom tempo em uma lanchonete, lendo livros de demonologia e parapsicologia que retirou do acervo circulante municipal. Sua idéia inicial era o de confeccionar o seu próprio amuleto. Deixou a leitura fluir até o principio da noite quando notou que estava tarde, entretanto, não sentiu vontade de voltar ao Centro, preferindo ir ao cinema, já que estava decidido que não iria à faculdade. Ficou menos de duas horas na sala, que projetava um filme de ação policial com um ator que muito admirava. Olhou para o relógio - passava das dez - e seguiu ao metrô próximo para voltar ao Centro. Atitude, aliás, que jamais esqueceria.
Carlos ficou apreensivo quando passou a catraca, lembrando o ocorrido e deslizou o olhar para todas as direções em busca da razão do seu temor. Tranqüilizou-se logo, pois, diferentemente da noite passada, havia muita gente tanto nas escadas como nas plataformas. Parou serenamente a aguardar a composição chegar, segurando com orgulho os livros que emprestou.
A iluminação de faróis penetrou a escuridão do túnel e o trem aproximou-se com a velocidade bastante reduzida. Os vagões iam tomando espaços diante da plataforma com lentidão. Carlos sentiu o impacto do vento - aquele característico quando a composição rompe a estação - contudo estranhou duplamente: só que ele havia tido a sensação da rajada e o trem estava vagaroso demais para provocar esse efeito. Levantou o olhar e o que começava imaginar já estava acontecendo. Quando Carlos viu o Demônio na cabina de comando da composição sentiu um forte calafrio. A figura satânica ria para ele e o som imperceptível para todos, era insuportável para Carlos, que colocou às mãos nos ouvidos, gritando quando a cabina passou por ele. O trem que estava cheio de usuários parou, abriu às portas e o entra e sai de passageiros foi feito com a normalidade cotidiana:
- Não entrem no trem! Não entrem no trem!
Carlos berrava às pessoas sabendo que uma tragédia estava prestes a ocorrer. Chegou até mesmo a segurar uma mulher que levava três crianças, mas essa desvencilhou-se dele e não poupou palavrões de reprovação pelo ato.
Súbito, o rapaz foi pego por uma fumaça negra – quase desmaiando por causa do terrível odor - e foi levado até um canto da plataforma. Lá a fumaça materializou-se no Demônio, que continuava a rir.
- Sabes o que vou fazer?
- Não faça isso! Por favor, não faça isso! Tem crianças aí dentro, elas não tem culpa de nada. Nenhuma dessas pessoas tem culpa de alguma coisa. Acabe comigo, mas não faça isso.
- Vou fazer e vou acabar contigo, ou achas que pelo simples fato de abater todo esse rebanho irá pagar o que o seu colega, e agora ti, fizeram-me?
Carlos olhou todas aquelas pessoas que aguardavam pacientemente o sinal de partida. Sabia que não teria a mínima condição de enfrentar o Demônio e que a sorte daquelas centenas de almas estava selada. Rezou a Deus, primeiramente suplicante, depois cobrando uma atitude e entregando-lhe a responsabilidade daquela catástrofe.
O Demônio voltou a falar:
- Ficaste aqui, hein? - gracejou - vou destruí-los e já venho pegar-te.
As portas fecharam. O trem pôs-se a andar, tomando velocidade ao mergulhar no túnel. Carlos não conseguia movimentar-se, nem mesmo mover um dedo qualquer da mão. Ficou ouvindo o barulho que propagava-se através do trilho. Observou novos usuários chegando, como se tudo estivesse na mais absoluta paz. Perguntou-se o por quê de matar tanta gente desnecessariamente. De repente, o barulho...
Um grandioso estrondo ecoou por toda a estação! Carlos procurou as expressões das pessoas e todas estavam assustadas, algumas começaram a rezar. Uma nuvem de poeira alcançou a plataforma e o rapaz já não conseguia enxergar mais nada, apenas os trilhos e a boca do túnel. Formou-se, então, um corredor em meio a fumaceira de onde Carlos via grupos de pessoas caminhando da direção do desastre. O jovem - se fosse ainda possível - sobressaltou-se quando precisou o olhar para aqueles seres: certamente eram almas recém desencarnadas, vítimas do acidente terrível. Elas não tinham uma forma definida, apenas algo que assemelhava os membros e o troco. As fisionomias praticamente inexistiam, contudo, podia-se com pouca margem de erro determinar o sexo das almas e aproximar suas faixas etárias. Carlos ficou consternado, o nosso espírito era daquele jeito! Nada que lembrasse a nossa matéria teria marca em nosso espírito, nenhuma característica física que nos perseguiu no decorrer de nossa existência carnal seria perpetuado na eternidade. Carlos ficou vazio por dentro, deixou-se entregar pela situação.
Aquele batalhão de almas vitimadas pela ira do Demônio - homens, mulheres, idosos e crianças - saiam do túnel desnorteadas. Era claro perceber que todos estavam em estado de choque e alguns nem imaginavam que haviam desencarnados. Os que percebiam, davam uivos de desespero, não aceitando a morte do corpo. Logo a lamúria daqueles seres penetrou nos tímpanos de Carlos, deixando-o louco devido a dor. Seus ouvidos sagravam e Carlos gritava, mas sua voz não saia. Para aqueles que utilizavam-se do metrô e que assustaram-se com a colisão estavam aflitos e aguardavam notícias sobre o que havia acontecido. A Segurança da companhia e todo o quadro de funcionários corriam de um lado para o outro em busca de socorrer sobreviventes. Entretanto todos estavam alheios à guerra que ali se travava e os motivos que levaram a tal catástrofe. As almas, Carlos, as lamúrias, os gritos, tudo era inexistente às pessoas comuns que por força do destino pretenderam servir-se do metrô naquele dia.
Carlos começou a ceder fatalmente aos ataques, já não sentia suas mãos e pés, e o seu cérebro parecia estar explodindo. Estava caído no assoalho frio da plataforma, contorcendo-se violentamente e manchando a sua roupa de sangue. "Não desista, Carlos! Não desista!" - foi a única coisa concreta que ouviu durante a tortura. Era Felipe "Agulha" que pressentia o seu fim e de sua fonte de energia.
O rapaz tentou levantar-se quando assimilou de quem se tratava, contudo estava fraco demais. Carlos dava sinais que não criaria mais obstáculos ao Demônio, que estava se rendendo, levando Felipe "Agulha" ao desespero. Com a conquista da alma de Carlos, automaticamente, o causador de todo este conflito cairia nas garras do senhor das trevas. Como acontecera em todas as outras vezes Akfak veio em seu auxílio. O arcanjo pegou o rapaz pelos braços e iria levá-lo como na noite anterior, pois era o único modo de salvá-lo, mas encontrou barreiras.
O Demônio apercebeu-se da manobra de Akfak e colocou aquelas almas contra eles. Aqueles espíritos anatematizados foram em direção ao anjo berrando acusações, como se fossem gritos de guerra: "Foram eles quem nos amaldiçoaram. Temos que acabar com eles! Vamos honrar nosso Senhor!". No último brado verificou-se que o Demônio já havia apossado daquelas almas e que estas iriam servi-lo cegamente. Entretanto, Akfak sabia como neutralizar aquele batalhão de perdidos com a força divina da qual foi abençoado. O arcanjo fê-los parar, como se estivessem congelados e depois orou a Deus para a que Ele se apossasse desses espíritos errantes, no que foi atendido prontamente.
Mais irado ainda com a perda do seu exército, o Demônio partiu para o ataque frontal contra Akfak e este utilizou-se do amuleto de São João. O príncipe do mal recuou e praguejou atacando as pessoas que estavam indiferentes aquilo tudo, decapitando-as e suas almas desvencilhando da matéria completamente sem rumo. Akfak revoltou-se com o repente do adversário, mas teve a sensatez de fugir do metrô, pois sabia que mais tempo que ficasse no local, mais vítimas seriam acometidas pela cólera do Demônio. Novamente conseguia escapar e salvar os dois espíritos marcados pela escuridão satânica.
O Arcanjo levou Carlos até a igrejinha que servia-lhe de esconderijo. Lá tratou dos ferimentos do rapaz e em questão de horas, os dois conversavam seriamente:
- Carlos, aguarde um pouco - pediu Akfak, indo até o altar e voltando rapidamente. - Tome, eis aqui o amuleto de São João que prometi dar a você. Leve-o consigo e que Deus o proteja. Diga a Leandro que cumpri com o trato.
- Muito obrigado, arcanjo. - Agradeceu Carlos, comovido. - Você arriscou-se tanto em ajudar-me, muito obrigado! – Fez uma pausa antes de mais uma pergunta. - Até quando carregarei esta sina?
- Não saberei responder-lhe... talvez sempre! Agora comunique o ocorrido a Leandro, vá!
Carlos sentiu o peso da sinceridade do anjo e saiu da igreja, não obstante, com mais segurança. Akfak ficou na igreja, numa posição que parecia estar ajoelhado e cabisbaixo. Uma enorme luz povoou toda a nave e engoliu o Arcanjo que gritava perdão! E ouviu-se uma poderosa voz divina:
- Não cumpriste minhas ordens e, mesmo assim, não te castiguei. Mas o que acabaras de fazer não tem misericórdia! Enganaste um irmão para benefício próprio! Então terás o que merece! E que seja feita a minha vontade!
Um tremendo rumor apossou-se da igreja. A luz desapareceu, levando Akfak.
Carlos foi correndo a um orelhão mais perto que pode encontrar:
- Doutor Leandro, sou eu, Carlos. Estou com o amuleto, Doutor, o Arcanjo me deu após ter me socorrido de outro ataque do demônio...
O rapaz falava ao telefone, quando uma mulher insistente cutucava-lhe o ombro. A ponto de perder a paciência, Carlos virou-se a ela e perguntou o que queria:
- Moço, por favor, deixa eu telefonar pro serviço do meu marido - pediu soluçando.
- Não está vendo que eu estou ocupado, tratando de coisa séria?
- Sabe, moço - justificou como querendo desabafar - é que acho que minha mãe morreu no desastre do metrô. Um trem bateu no outro e até agora minha mãe não chegou e acho que aconteceu alguma coisa com ela.
Carlos imediatamente despediu-se de Leandro e desligou o aparelho, tentando acalmar a mulher que chorava copiosamente. Tentou tirar mais informações dela:
- Não se sabe com certeza, mas disse no rádio que foram mais de trezentas...
- Trezentas! - bradou Carlos, totalmente indignado.
Carlos vagou pelas ruas por um bom tempo. Estava transtornado, achava-se mais odioso que o demônio, queria destruí-lo em contra partida. "Está vendo o que você fez, maldito? Você é o culpado disso tudo!" - Acusou Felipe "Agulha", embora sabia que estava indiferente à desgraça dos outros. Notou um ponto de ônibus e aguardou um coletivo passar. Não vá lá! Não vá lá! Está maluco?" - Felipe Agulha" suplicava a Carlos que reivindicou a vez da indiferença. Veio o ônibus com sentido ao metrô. Carlos entrou e o motorista informou-lhe que a companhia estava operando só a linha Leste-Oeste. O rapaz chegou ao ponto final, mas não era a estação que ocorreu o desastre. Carlos pegou um táxi com destino à desgraça!
- Tem algum parente vitimado? A polícia não está deixando ninguém entrar na estação.
- Muitos - Carlos limitou-se a dizer.
Chegou na cena da tragédia e uma grande confusão estava armada. Haviam muitos policiais, funcionários do metrô e gente do povo, chorando e exigindo alguma notícia de entes queridos. Todos eram seguros pelo cordão de isolamento, menos Carlos, que cruzou a área demarcada pelas Autoridades e caminhava para dentro da estação sem ser molestado por ninguém.
“Pensa no que está fazendo, Carlos. Ele está aqui, eu consigo senti-lo. Você tem o amuleto, estamos seguros, deixe-o para lá. Não abuse da sorte, ele pode tirar o amuleto de você e estaremos perdido. Vá para casa e com a ajuda de seus amigos, começa a construir a sua vida. Você não poderá vencê-lo, só Deu-a e Ele não quer duelar com o demônio." - Disse Felipe, tentando dissuadir o rapaz de ver a dimensão da tragédia.
- Não tenho o amuleto? Então não se preocupe - disse sussurrando, continuando a andar.
Na plataforma viu vários corpos sendo amontoados num canto, embrulhados em sacos plásticos. Pernas, braços e outras partes arrancadas dos corpos também eram empilhados em outro canto, num saco maior. Carlos notou que as almas não estavam mais ali:
- Para onde foram? - questionou confuso. Vislumbrou tudo aquilo, não conseguindo segurar o pranto.
Sentiu um azedume peculiar:
- Chorando, pobre animal? Não adianta, tu foste o responsável, se tivesses cedido ao óbvio antes, quantos não seriam poupados. Agora chegou tua vez e do teu amigo, também.
- Estou com o amuleto de São João! - Carlos ergueu o instrumento para o demônio ver, como se tivesse desafiando-o.
Felipe “Agulha” deu um grito de desespero.
Rindo, o demônio pegou o talismã com sua mão direita, destroçando-o sem esforço:
- isso aqui é falso, o Arcanjo te enganou... Agora vós estão sob o meu domínio!
O demônio riu, com toda a força do mundo.
Carlos e Felipe "Agulha" gritaram de terror.
E o demônio riu com toda a força do mundo, de prazer.


FIM.

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