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Contos-->REMORSO -- 29/07/2003 - 20:38 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A resposta era curta e objetiva: “Num sinto nada, ué!” Dirigida ao Dr. Ernesto, proferia-a aquele ancião magrinho, encolhido pelo tempo, rosto curtido, barba e cabelos rasos, e um sorriso que não exibia um dente sequer. Repetia-a, cada vez mais enfática, diante da insistência do jovem médico que, confuso, olhava em direção às suas filhas, pedindo algum tipo de esclarecimento. Já o havia examinado detalhadamente e não encontrara nada que justificasse a internação por elas solicitada. As duas mulheres rebatiam: “Uma ova Doutor. Esse homem não dorme à noite. Fica a zanzar pela casa, mexendo em tudo, revirando coisas na cozinha. Num deixa ninguém dormir”! A outra reforçava: “E tem mais. Foge o tempo todo. Inda ontem, tivemo que busca ele lá pros lados do rio. Esse veio tem mania de se debruça na ponte. Diz qué pra vê os peixe pula. Vai que cai de lá?” “Mas ele não está doente. É apenas a senilidade”. Explicou Ernesto. As mulheres eram reticentes. “Temo muito trabalho pra fazer e num podemo vigia ele o tempo todo.” Ernesto voltou a examina-lo. Torcia para encontrar alguma coisa. Um pequenino sinal de patologia para que houvesse nexo na sua conduta. Se o deixasse ir e viesse a acontecer qualquer imprevisto com o homem, as filhas o culpariam, sem dúvida. Mas não havia nada. Oitenta e cinco anos com pressão arterial, coração, pulmões, fígado, rins, esqueleto, tudo enfim na mais perfeita ordem. Velhice não é doença. E agora? Na faculdade não ensinavam como se comportar em tais situações. Não podia permanecer para sempre naquele impasse, pois a fila de pacientes que o aguardavam não parava de crescer. Achou melhor interna-lo, então. Era certa uma bronca da direção, pois a Previdência haveria de recusar aquela conta. Mas não via outra saída. Conversou com Seu Joca explicando que seria bom que ficasse internado com fins de ser submetido a alguns exames. Seria por pouco tempo. Não acolheu, no entanto, bom retorno daquele que insistia que estava bem e que tinha mesmo era que ir pra casa cuidar dos seus canários. Mas não adiantou. O médico havia decidido e as filhas, respirando aliviadas, como quem se livrara de um pesado fardo, apressaram-se a cair fora, antes que houvesse mudanças de planos por parte dele. Assim sendo, Ernesto preencheu o prontuário, prescreveu vitaminas e sais de ferro e solicitou exames laboratoriais. Pronto. Levaram o Joca, sob protestos, para o interior do hospital. Resolvida, ainda que mal definida, a questão, voltou ao atendimento dos que aguardavam na longa fila que se estendia até o pátio. Havia de tudo. Resfriado comum, crianças com amigdalites e otites, diarréias, dores abdominais em mulheres, trabalho de parto, pruridos, abscessos, contusões, crises nervosas, convulsões, unha encravada, cisco no olho, espinha de peixe entalada, prisão de ventre, vômitos da gravidez, pressão alta e pressão baixa e até mesmo um expressivo número dos que pediam atestados. Predominava, entretanto, aquele tipo de paciente poliqueixoso com sintomatologia variada e mal definida, além dos psicossomatizados e dos simuladores. Ernesto nutria um desagradável sentimento de frustração diante de uma clientela tão diferente da que se preparara para servir. Recém saído dos bancos universitários, esperava identificar o seu trabalho com tudo o que lhe haviam ensinado e que tinha visto nos tratados de medicina. Distinguia, com muito cuidado, aqueles que mereciam atenção médica dos que deveriam ser descartados de sua área, sem saber que, um dia, a vivencia haveria de brinda-lo com a percepção de que todos são, de certa forma, doentes.
De repente, seus pensamentos foram interrompidos pela visão de um vulto que passara apressado pelo corredor em direção à portaria. Foi à porta do ambulatório e avistou o Seu Joca, corcundinha, passos curtos mas rapidinhos, os bracinhos sacudindo-se para impulsionar a carcaça e atrás dele a corpulenta Margarida, enfermeira zangada que gritava para que o segurassem. Antes que pudesse colocar as solas de suas sandálias de dedo no tapete da entrada do hospital, foi alcançado pela furiosa auxiliar que, segurando seu bracinho fino, aplicou-lhe o volteio, levando-o de novo à enfermaria. Ernesto riu e voltou às suas atividades. Uns quinze minutos se passariam e a mesma cena se repetiria, desta vez, contando Margarida com a colaboração das funcionárias da portaria que já barravam a passagem do velhote. O Dr. Ernesto dirigiu-se, então a ele para fazer a repreensão. Joca, que não mais sorria, mas sim se apresentava tenso, nervoso e ofegante em função da carreira que empreendera, protestava: “Num quero fica qui Doto! Eu num to doente, já falei. Tenho que ir pra casa cuida dos meus canário!” “Suas filhas farão isso pro senhor, Seu Joca. É só por hoje. Prometo que amanhã lhe darei alta. É só virem os resultados dos exames.” “Elas num cuida nada, seu Doto. Vão deixa os bichim morre de fome. O que elas qué é vadia, é corre atrás de home. Elas até leva eles la pra casa, Doto.” O médico começava a arrepender-se amargamente de ter feito aquela internação. Era aquela sua mania de não saber dizer não, de não querer contrariar ou demonstrar má vontade para com os outros. Acabava por não fazer as coisas do modo que julgava correto. Assim pensava, penitenciando-se e prometendo modificar-se. Mas agora já era tarde. As mulheres já tinham ido embora. No dia seguinte liberaria o velho. Reafirmou-lhe sua promessa, pedindo-lhe, em contrapartida, que não escapasse mais. Voltou ao ambulatório. Dessa vez, não foi mais interrompido, permitindo-se concluir que o homem acalmara e compreendera suas ponderações e após reduzir consideravelmente o tamanho da fila de pacientes, partiu descontraído para o almoço.
O caminho do refeitório era compreendido por um largo e comprido corredor, de onde se abriam as portas das enfermarias. Dr. Ernesto, ao dar uma olhadela para aquela na qual estava o velho Joca, quase passou mal ao vê-lo amarrado ao leito, braços e pernas tolhidos por ataduras bem presas aos punhos e tornozelos, esticando-o como numa tortura típica dos filmes de aventura americanos. Joca se contorcia, tentando livrar-se e ao ver o jovem implorou para que o soltasse. Ernesto não vacilou. Apressou-se a desatar as amarras, aos berros, sendo ouvido por Margarida e por outros atendentes que se aproximaram para protestar contra o seu gesto de piedade. “O senhor não vê que não há outra forma de impedi-lo de fugir? Se ao menos aceitasse a sugestão de dopa-lo.....!” “Ele não é doente mental, não está agitado e nem solicita tranqüilizantes, portanto não tem por que ser medicado dessa forma. Também não é nenhum bandido perigoso para estar amarrado.” Mas teve que conter ele mesmo o velhinho que acabara de calçar as sandálias para dar no pé. “Seu Joca. Pelo amor de Deus, sossega aí. Vai ser servido o almoço neste momento. O senhor haverá de aprecia-lo, eu garanto.” “Não quero comida nenhuma não. Quero é ir pra minha casa e pronto!” “Está bem, vou lhe dar alta, mas espere que vou almoçar e logo depois assinarei os papéis. Não saia daí, por favor.” O velho disse “Ta bem” e parou de pé à porta em posição de largada, aguardando só o sinal. Não obstante, como costumava acontecer naqueles plantões de emergência, o almoço do médico não se completou, pois fora interrompido no meio por uma urgência. Depois outra. Chegaram, logo após, quatro feridos que se envolveram num acidente automobilístico. Mal completara o atendimento àqueles, uma chamada da maternidade. Alguém nascia. Um asmático piorara na enfermaria. Uma diabética entrou em coma. O laboratório vinha com exames a serem avaliados. O pronto-socorro novamente, etc.. O tempo voou. Chegou o fim de seu turno. O substituto veio. Passou o agitado plantão para o Dr. Silas e partiu para o outro emprego. A pressa, sua acompanhante desde que iniciara naquela profissão, fizera-o esquecer da promessa que tinha junto ao problemático cliente. Lembrou-se dele, tarde da noite, passando a ser seguido por uma ansiedade que consumiu-lhe cada minuto daquela.
Manhã seguinte, rapidinho dirigiu-se ao hospital da véspera. Chegando à enfermaria, avistou o leito de Joca. Vazio. A brancura dos lençóis e a cama arrumadinha assustaram-no.Teria Silas o liberado? E teve um pressentimento amargo. O substituto não era dotado de um mínimo de sensibilidade. Foi ter com ele. “Quem? O velhinho fujão? Morreu.” Ernesto empalideceu. “Mas como? Morreu de que?” E completou Silas, rindo em tragicômica interpretação: “De raiva, meu amigo. De raiva! Fora amarrado umas vinte vezes. Como as ataduras feriram-lhe os punhos, tiveram que ser aplicadas com mais suavidade. Por serem eles fininhos, ele logo aprendeu a se desvencilhar delas, soltando uma das mãos e completando com ela a liberação dos outros membros. Como era um processo demorado, pois levava tempo para desatar os nós, erguer-se da cama, calçar os chinelos, ganhar o corredor e chegar à portaria e como não tínhamos a noite toda para prende-lo novamente cada vez que libertasse a primeira mão, deixávamos que completasse sua escapada até a entrada e então o amarrávamos novamente. Você já imaginou? Ter um trabalho enorme para se desamarrar e vir alguém e encarcera-lo de novo?” E saiu dando risadas. Ernesto deixou-se cair numa cadeira, as mãos na cabeça, sem dizer nada, sem reagir àquele “show” de monstruosidade. Mesmo que tentasse faze-lo, de nada adiantaria. Silas daria de ombros. Justificaria aquele ato, invocando riscos de processos caso o velho se acidentasse no meio da rua. Afinal o hospital e especialmente o médico plantonista, na condição de chefe de equipe, é o maior responsável pela segurança de seus internos. Eu prefereria ser atropelado e morto por um “fenemê” do que ser amarrado daquela maneira, pensou enquanto atravessava os tristes e soturnos corredores daquela casa em direção ao estacionamento. Sentou-se num banco de concreto próximo a uma árvore frondosa e ficou a observar as aves gorgeantes, nos galhos, saltitantes. Uma dor fina atravessou-lhe o tórax, ao recordar-se da preocupação do cliente com os canarinhos. Não conseguia esquecer a fisionomia risonha, as gengivas desnudas, o indisfarçável nervosismo, a inútil rebeldia. Via-o, no retrato que fizeram as insensíveis filhas, apoiando seu corpinho franzino no vão da ponte e olhando com curiosa simplicidade os pequeninos peixes daquele rio pobre a contorcerem-se na ponta dos cruéis anzóis.
Imaginou-o mexendo com os passarinhos com um cuidado e carinho com que não viria a ser agraciado. Pensou nele menino, brincando livremente naqueles bosques, na terra onde nascera e da qual nunca se afastara, galgando os morros e correndo na beira do rio, escalando árvores em busca de frutas e sem que jamais passasse pela sua cabecinha de criança simples que teria um fim tão diferente. Talvez sua insistente fuga refletisse um desesperado desejo, indescritível em função de sua simplicidade, inviável pois que barrado pela surdez dos intolerantes, que era o de morrer nos campos, talvez sob uma generosa mangueira, num silêncio a que só se permitiria ser quebrado pelo ranger dos seus galhos na briga com o vento, pelo mugido ao longe dos bovinos a lamentarem e pela algazarra alegre dos pardais balançando-se atrevidos e saudando, em coro, a valiosa liberdade. Ou quem sabe, com os pés acariciados pelo frescor da correnteza mansa de um regato, o dorso cansado repousando sobre a relva entre folhas e flores a exibirem vida e com os olhos postos sobre o horizonte onde um dourado poente, desbotando com sutileza o azulado céu, haveria de tingir suas retinas antes que se apagassem pela derradeira vez. O que almejava não custaria um tostão a ninguém. “Negamo-lhe tudo isso”, angustiou-se Ernesto. O dia terminaria como qualquer outro naquele hospital, a presença de Joca dissipando-se como nuvens passageiras. Ninguém se lembraria mais dele, a não ser o triste iniciante em cuja memória sua curta passagem fixou residência permanente.

Junho de 2000 Daniel Carrano Albuquerque
e-mail: notdam@bol.com.br
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