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Contos-->METAMORFOSE -- 25/07/2003 - 12:50 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Era uma casa comum, numa daquelas ruas com nomes de flores em Vila Valqueire. Uma área sossegada nas noites de meio de semana e eu, solteiro nos meus vinte e cinco anos, regozijava-me diante do convite daquele docinho de coco para ouvir, ao seu lado, alguns discos de sucesso da época. Meu Deus! Como é bom recordar! Pobre de quem não tem com que fazê-lo. Assim me sinto um privilegiado ao, depois de quase trinta anos, fechar os olhos e me ver sentado naquele vasto e confortável sofá, tendo diante de mim, dobrada sobre uma poltrona, aquela uvinha vestida em calças de ginástica, a camiseta emoldurando os ombros dourados. Os cabelos castanhos claros presos sobre a nuca, os lábios róseos confeccionando os mais lindos sorrisos. Ora um semblante mais sério a dar sentido a um momento mais compenetrado da conversa, ora o sorriso alargava-se ainda mais e se faziam explodir delicadas e bem dosadas gargalhadas. A janela semi-aberta daquele cômodo exíguo, mas aconchegante, deixava que a brisa da noitinha trouxesse o aroma calmo das margaridas que ornamentavam, ao pé das trepadeiras, a varanda contígua, as samambaias em companhia daquelas, exibindo-se ao lado das violetas e as rosas vermelhas, mais além, silenciavam discretas, junto à mureta. E o som, obviamente, dominava o cenário. Da vitrola, a voz áspera, porém ricamente melodiosa de Ivan Lins se fazia seguir pela delicadeza de uma outra, feminina, uma batida suave e um ritmo quase infantil que enternecia o ambiente, fazendo-me relaxado, confortavelmente envolvido, o olhar permanente sobre a menina de vinte e dois anos que, intrigantemente, conseguia colocar os joelhos sob o queixo, recolhendo os pezinhos cobertos por aconchegantes meias de lã.

Aroma, melodia e uma maravilhosa visão. E a promessa, embutida em toda a mágica envolvente, do que haveria de vir. Os olhares, os sorrisos, as meias palavras. Todo um jogo repleto de enigmas a serem deliciosamente decifrados, lentamente interpretados antes de se dar partida ao primeiro contato, primeiro e leve, delicado, sutil, falsamente despropositado. E a fantasia cuidadosamente, vagarosamente sendo elaborada ia crescendo e nós dois, trôpegos, entorpecidos e enevoados, então sem forças para sustentar os disfarces, rendíamo-nos sob a áurea inebriante, as almas flamejantes. Os corações ricamente preenchidos pelos poderes imponentes da persuasiva juventude entregavam-se então. Alheios à presença de seus pais, no quarto ao lado, deixamos que, enfim, um beijo, tão singelo quanto úmido, tão verdadeiro como a enérgica magia do momento, se fizesse, os lábios, no direito que lhes confere a mocidade, se encontrando e onerando os corações a desesperarem-se em acelerada carreira. Era o começo da enxurrada de perspectivas, dos sonhos mais ousados aos mais inocentes, mas inegavelmente enfeitados de lirismo, de poesia e de ternura. E a música continuava. A paixão no seu compasso. As horas esquecidas, desprezadas, a madrugada cúmplice. A despedida, à porta, ficou como a última fotografia daquela noite de encantamento. O sorriso meigo, as mãozinhas empurrando lentamente a maçaneta e o beijo no ar.

Nunca conseguirei me lembrar por conta de que, semelhante encontro não se repetiu. O tempo passou tão rapidamente, carregando toneladas de acontecimentos, que o flerte com Isaura, ainda que com a força da magia que lhe tornara inesquecível, perdeu-se em suas ondas. Devo tê-la visto outras vezes, rapidamente em algumas festas, talvez. Certamente eu programara outros encontros e provavelmente eu mesmo negligenciara na sua concretização. O certo é que os anos se passaram, muitos namoros aconteceram. Inícios de vida em comum, separações, reatamentos. A lembrança daqueles momentos, volta e meia, reincidia eclodida por uma percepção casual dos odores e das notas musicais que nos envolveram naquela noite. Quase trinta anos depois, tais recordações vieram com mais força e, infelizmente, acompanhadas de uma curiosa mas triste constatação, na fila do caixa de um banco. Foi quando minha atenção voltou-se para uma cliente que se demorava demasiadamente ocupando o atendente. Era uma mulher grande, de corpo afunilado, o tronco imenso, os “pneus” realçados por uma blusa de malha apertada. As calças de um “jeans” em veludo desbotado eram preenchidas por nádegas estreitas. As coxas finas não compunham com o tórax largo. Calçava chinelos de dedos e os cabelos muito curtos, grisalhos e mal penteados mostravam uma nuca com dobras grossas. O desleixo sobrava naquela mulher. O marido, um homem mal humorado, se aproximou, dirigindo-lhe modos nada gentis. Ouviam-se vozes nervosas e se podia imaginar, quando se afastaram do caixa, pelas fisionomias e pelo distanciamento mútuo, que amor e afeto eram práticas ausentes em suas vidas. E eu conhecia aquele rosto, que agora estava de frente para mim. Ainda que muito diferente, pois edemaciado, cinzento, triste, e sem o viço de outrora. Não precisei de muito tempo para perceber que se tratava de Isaura. O que terá sido feito àquela doce e formosa ninfa de minhas recordações para transformá-la em alguém que, tenho certeza, não premia mais seus ouvidos com ternas canções de gosto apurado? Muito difícil será agora associa-la à contorcionista da poltrona que, anos a fio, povoou minhas lembranças. Como é o tempo capaz de promover tantas transformações, ou, eu diria, destruições? Como pode apagar a poesia que movimenta e irradia corações? Por que deturpa, assim cruel, os anseios que nascem puros no seio de almas juvenis? Por que mata e extermina os encantos? Por que destrói, pulveriza sem piedade a candura brejeira e sensual das moças? É preciso, porém, num ímpeto de resistência, fazer das imagens ainda que um pouco desbotadas, porém com zelo guardadas, o estopim para recriar, com todas as cores, aromas e sons, a poesia perdida, que os anos deram por morta.

Agosto de 2000 Daniel Carrano Albuquerque
e-mail: notdam@bol.com.br
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