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Contos-->O MENINO E O BORDEL -- 22/07/2003 - 21:43 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Plínio era um daqueles meninos que, no início dos anos sessenta, costumávamos ver reunidos nas calçadas de uma estreita e pouco movimentada rua de Vila Izabel. Alguns sentados no meio fio, outros sobre as muretas das casas e ainda uns poucos pilotando suas bicicletas. Adolescentes são ainda os mesmos em qualquer bairro do Rio de Janeiro mas,certamente, vários aspectos do comportamento juvenil sofreram profundas modificações nos 40 anos que se seguiram. Por exemplo, se os vemos mais aconchegados, numa roda, as bicicletas e a bola deixadas ao lado, podemos nos assegurar de que estão tratando de alguma coisa ligada a sexo. Há 40 anos, provavelmente liderava a aglomeração alguém que exibia alguma foto de uma mulher nua, o que já não acontece nos dias de hoje, uma vez que tais fotografias já se banalisaram pois ilustram, hoje, boa parte das revistas mais comuns e a garotada passa longe e completamente desinteressada dos pornográficos painéis livremente exibidos pelas bancas dos jornais. Pode ser também, que estivessem fazendo referências a alguma “maria-maçaneta”, denominação que se utilizava, na época, para os tipos de moças que, mais liberadas que a maioria, permitiam-se manipular, em concessões muito pouco comuns. Há quem diga que aquelas mulheres estavam adiantadas para o seu tempo, condecorando-as com méritos legados a arrojados e corajosos heróis que não compactuavam com a hipocrisia vigente. Tal hipocrisia era, porém, forte o bastante para deixar em situação desconfortável qualquer um que se atrevesse a encará-la, condenando-o ao isolamento, principalmente se o desafiante fosse do sexo feminino. Dessa forma, as “marias-maçanetas” constituíam um artigo raro. Por essa razão não era fácil o acesso à experiência sexual e tal fato, aliado à clamorosa e ardente condição biológica dos rapazes, levava a níveis mais elevados de ansiedade e à procura por assuntos ligados àquela esfera. Sobrava para os meninos, com todos os riscos prováveis, ao custo de alguns cruzeiros, a relação com as mundanas, de duvidosos resultados na expectativa do prazer.

O grupo de Plínio era heterogêneo com relação às idades. Às vésperas de completar 15 anos, ele já se sentia encorajado a ingressar no conhecimento ao vivo do maravilhoso mundo das conjunções carnais. Não lhe faltavam os amigos mais velhos e experientes para conduzi-lo ao encontro com as meretrizes. Sendo assim, decidiu, certo dia, inaugurar sua experiência no ramo, escolhendo as prostitutas que faziam o “trotoir” sob os arcos da Lapa. Já lhe haviam dito que as da Cinelândia eram onerosas e ele já vinha de muito observando, postada debaixo do antigo aqueduto, uma “dama” que lhe exercera um certo fetiche por causa das sandálias com tiras trançadas que ascendiam desde os tornozelos, realçando as carnes das panturrilhas. Preparou-se, então, para o encontro noturno, investido da ansiedade de um noivo às vésperas da cerimônia. O dinheirinho que juntara, as roupas, a brilhantina, a companhia do amigo, e o mais importante, uma riquíssima fantasia que a imaginação irrigara com cenários ocupados por Lolobrígida’s, Bardot’s e Sophia Loren’s. Estava pronto. A realidade, porém, eficiente agente da desilusão, encarregou-se de dar cabo dos anseios do noviço. No quarto sujo de um hotel da Lapa, impregnando-se de um perfume da pior qualidade, Plínio deitou-se desajeitado ao lado da fêmea, que com a boca lambuzada pelos impropérios que reinavam em seu dicionário, executava rápida e mecanicamente o insípido ritual. “ Que decepção!” pensava enquanto retornava à casa. E ainda ficou surpreso por ter chegado ao fim. Mas para isso, tivera que investir em muita concentração. O pior ainda haveria de vir. Quatro dias depois, teve, ao urinar, uma sensação de queimação que veio a se repetir outras vezes. Seguiu-se uma secreção amarelada e uma confirmação. Estava vitimado pela famosa gonorréia, tão comentada pelo grupo. Tratou-a seu Djalma, o pai de um de seus amigos, farmacêutico experiente que lhe aplicou 3 frascos da dolorosa Benzetacyl, fê-lo engolir 75 comprimidos de Sulfadiazina, além de promover uma torturante lavagem uretral com uma solução de Permanganato de Potássio. Além de medica-lo, confortou-o o prático, dissertando sobre as infelicidades de seu tempo, quando o tratamento era muito pior e ainda havia o tal de “cancro” e a crista de galo, provavelmente referindo-se no primeiro caso à fase primária da sífilis, enfermidade que segundo ele, mandou muita gente boa para os hospícios.

Curado, Plínio, porém, não perdeu a pose. Os companheiros animaram-no a procurar aventura em um local muito mais diversificado. É claro que o melhor deles era o famoso bordel da Rua Alice, nas Laranjeiras. Só que uma única horinha com uma das meninas de lá haveria de lhe tirar toda a mesada. Iriam todos, portanto, num grupo de cinco molecotes, à caça na mais conhecida casa de tolerância do país, ou seja, na “Zona do Mangue”. E à tardinha, lá estava a garotada, de olhos arregalados, um pouco assustada, caminhando pela Rua Pinto de Azevedo. Eram vários casarios distribuídos geometricamente por quarteirões traçados por pequenas ruas repletas de homens que caminhavam lentamente de um lado para outro ou se postavam defronte às casas, onde debruçadas sobre os peitoris das janelas ou de pé nas entradas dos cortiços exibiam-se prostitutas em trajes sumários, galhofando e executando movimentos estimulantes. Em muito se parecia a uma feira comum, onde os artigos eram corpos de mulheres. Aquele cenário não levou Plínio à excitação que se esperava. Ao contrário, chocou-o. Eram mulheres de todos os tipos. A grande maioria delas vestindo somente calcinha e sutiã. Ligas e meias de seda vermelhas complementavam o vestuário. Havia gordas, magras, altas e baixas. Negras, louras, morenas, meninas e velhas. Feias e bonitas. Peludas e glabras. Imundas e perfumadas. Risonhas ou emburradas. Muitas pelancudas, imensas peitarias. O palavrório do mais baixo que poderia existir. A gesticulação intensa, frenética e obscena. Homossexuais masculinos, dos tipos mais esdrúxulos caminhavam para cima e para baixo, por dentro e por fora das casas, dando a entender que desenvolviam atividades domésticas no estabelecimento. Plínio, mais apiedado do que escandalizado, se perguntava porque razão Deus havia se esquecido daquelas criaturas.

Mas afinal, não estava ele ali para entabular pensamentos filosóficos. Teriam que partir para o que os levou àquele pardieiro. O difícil era fazer a escolha. Depois de cerca de umas 15 voltas pelos quarteirões, o menino decidiu por aquela que lhe lembrava Sarita Montiel, a famosa atriz e cantora do cinema espanhol, que fora sucesso no filme “La Violetera”. Era um mulherão de mais de trinta anos, mamas fartas, coxas quais imensas colunas sob as nádegas arredondadas realçadas pela minúscula calcinha rendada e preta, ancorada pelas afrodisíacas ligas vermelhas. O perigo era se perder com seu corpo magrelinho no meio daquele frondoso regato que separava os dois grossos pilotis. Conseguida a coragem, ensaiada a abordagem, partiu com a inevitável e vulgar pergunta:
_Quanto é?
Mas era fato ordinário naquele “metier”, uma certa rejeição por parte das vadias com relação a rapazotes. Talvez a maneira jocosa comum à garotada fizesse com que sentissem ainda mais pesado o fardo da perda da auto-estima. E provavelmente, por essa razão, foi o audacioso pretendente expulso pela matrona, que acompanhada em coro pelas colegas, desferiu-lhe, ao lado de graves ameaças, humilhantes adjetivos relacionados à sua tenra idade, atingindo daquele modo também os companheiros que já se antecipavam a ele na fuga. Sem deixar abater-se pelo desânimo, encaminharam-se a outras portas, tendo se repetido, porém, os mesmos insucessos, até que, lá do fundo de uma das salas, Plínio surpreendeu-se com o sorriso de uma morena de grossos lábios pintados de um vermelho forte e que permanecia sentada de um modo mais discreto que as outras. Em realidade, a mulher apenas se divertia com o aperto dos meninos, mas o seu jeito simpático encorajou-o a mais uma tentativa. Aproximou-se e recebeu dela um olhar de cima abaixo e por fim, após fitar demoradamente o rostinho enrubescido do adolescente, a carismática rameira, com um risinho que tentava ocultar, e que lhe produzia charmosas covinhas em sua face, pronunciou a tão esperada frase: “Vamos”. Era uma mulher de beleza comum. Os cabelos bem negros e um pouco curtos, a pele morena, o corpo bem torneado, um pouco “cheinha”. Muito paciente, procurava contornar a euforia desajeitada do parceiro com uma suave e sussurrante “Calma, meu filho”. Pareceu simpatizar-se com ele. Chegou, até mesmo, num determinado momento, a acariciar-lhe com doçura o seu queixo.

Plínio deixou o prostíbulo com uma sensação muitas vezes melhor do que após a experiência anterior. Seus colegas, que apesar de conseguirem, depois de muita procura, também lograr sucesso, não pareciam estar tão bem quanto ele. Tinham, sim, o mesmo semblante desalentado que lhe acompanhara na volta da Lapa.
Os dias se sucederam e as lembranças da vivência que tivera na Zona pareciam impregnadas em sua mente. O rosto sorridente da meretriz, seus modos suaves e gentis vinham freqüentemente à tona. Aquele personagem destoava do cenário geral e aquilo o incomodava. Nutria curiosidade sobre a vida daquela infeliz nos bastidores daquele teatro de horror. Tinha vontade de saber sobre sua família, de onde viera e para onde ia quando terminava a sua lida. E afinal não sabia nem mesmo o seu nome. Tinha o desejo de retornar, mas jamais confidenciaria suas inquietações aos companheiros. Pareceria sentimental demais para os valores da comunidade. Sentia uma enorme necessidade de conversar com alguém. Lembrou-se então do Seu Gonçalves, dono de uma casa de secos e molhados que ocupava uma das esquinas da vizinhança. Era um português “sessentão,” há muito radicado no Brasil, não lhe denunciando mais a origem, o sotaque então já desgastado, só o fazendo o vasto e grisalho bigode de pontas ao feitio da terra, as calças riscadas mantidas por suspensórios e a camisa abotoada no colarinho. Corpulento, a calvície somente ensaiada, sua grande generosidade não combinava muito com a voz grave e firme, comumente alta e em tom de comando. A relação com Plínio tornara-se mais estreita num daqueles dias em que a molecada, afetada por uma aura demoníaca, costumava percorrer, ao escurecer, as ruas do bairro, fazendo arruaças. Chutavam portas de estabelecimentos comerciais, atiravam pedras nas lâmpadas dos postes, provocavam transeuntes e gritavam palavrões em coro, entoando paródias grotescas. Plínio, um dos últimos na coluna dos baderneiros, sentira, então de repente, a pesada, mas afável mão do lusitano em um dos seus ombros.Virando-se, deu com o rosto redondo e sério do homem que lhe dizia com voz calma e serena:
_O que fazes, menino?
Encabulado, o moleque responde:
_É só uma brincadeira.
Seu Gonçalves contra-argumenta dizendo que o resto não estava a brincar, mas sim a exprimir a raiva que tinham dentro deles, por coisas que nem sabiam ao certo.
_Mas tu, meu filho, és vinho de outra pipa e eu o sei muito bem. Como estou certo também que não estás a gostar do que estás a fazer. Não tens motivos para odiar ninguém. Seus pais o amam e tu também a eles. Pois não? Por que não finges que tens que ir e não sais de fininho, a cair fora desses loucos?
Plínio obedeceu. O português parecia que tinha visão de raios X. Desde então, seguiu-se uma sólida amizade com alguém por quem passou a ter considerável admiração. Foi ter com o homem.

Seu Gonçalves, vendo-o, terminou rapidamente de servir a pinga aos peões e convidou-o a chegar, com estrondosa saudação. Almir, o ajudante, um pernambucano de uns trinta anos, mulato, magro e forte, com tantas cicatrizes na alma quantas no rosto, porém sempre portando um radiante sorriso, participava das conversas. Vez ou outra, seu Gonçalves apelava para que aquele interviesse, baseando-se em suas experiências, para opinar nos conselhos ao rapaz. E ele o fazia, sempre com sonoras risadas, sem interromper sua agitada função no corre-corre dentro da venda. Plínio já lhes houvera confidenciado antes, a respeito de uma garota por quem se apaixonara. Era uma aluna do Colégio Pedro II com quem viajava de bonde à saída da escola. Nunca se falaram. Ele sempre viajava no estribo que dava para o banco em que ela vinha sentada. Ocorriam somente disfarçadas trocas de olhares, a fazer parte de um longo preparativo para o dia em que se falariam. Cabelos castanhos escuros a “chanel”, um suave buço, os lábios bem desenhados e o narizinho meio empinado, sempre muito séria e recatada, abraçada ao porta-cadernos, viajava a “cocotinha” sempre sozinha. Naquele instante, comparações eram indubitavelmente absurdas. E era isso o que intrigava Plínio. Sua cabecinha não conseguia assimilar e compreender, dentro dos limites tão estreitos de sua vivência, a heterogeneidade de sentimentos tão iguais e concomitantemente tão díspares. Naquele dia, Seu Gonçalves riu muito da descrição de Plínio sobre suas recentes aventuras. Almir acompanhava-o na zombaria. Volta e meia, interrompiam para incluir seus próprios relatos, sempre com curiosas e cômicas incursões. Chegou, porém, o momento de falar a sério. O português demonstrou preocupação com a angústia do rapaz. E compreensão. Tentou faze-lo entender a complexidade que envolve sentimentos daquela natureza e os cuidados que se deve tomar na conduta frente a eles. Dos botes traiçoeiros que subitamente partem das profundezas da alma. Das emoções que confundem. Da fragilidade do coração. Da subserviência da razão frente aos interesses das paixões. Depois, aproximando-se mais e baixando o tom de voz, fez uma revelação.
_Sabe o Saraiva? O homem do sobrado? Pois bem. Conheces a senhora dele, Dona Jurema, pois? Dona Jurema era “mulher da vida”. Se o Saraiva sabe? Claro. Pois afinal, foi ele mesmo quem a tirou de lá.
E continuou, animado com a surpresa do rapaz.
_Ele mesmo me contou. Somos grandes amigos. E só estou a revelar a ti, porque sei que tu és sério e não haverás de propagar isso. Saraiva era um grande freqüentador de bordéis. Um dos maiores boêmios da cidade. Quem diria, não é? Com aquele jeito sisudo de hoje. Conhecera Jurema num daqueles lugares. Gostou tanto da rapariga que passou a procurá-la com freqüência. Pois, sem que notasse, a afeição foi se instalando lentamente em seu coração até preencher grandes espaços. Passou a ter ciúmes e a andar triste, nervoso e cabisbaixo. A menina correspondia aos seus sentimentos. Chegou enfim o dia em que se rendeu a todas aquelas coisas que haviam lhe invadido o peito. Percebeu que não tinha mais volta. Arrancou-a de lá, casaram-se e estão juntos há 20 anos. E podes ter certeza de que são felizes. Dona Jurema é aquele exemplo de seriedade que você conhece. E não é fingimento não. O amor realizou grandes mudanças em sua mente e em seu espírito. É uma grande companheira, uma excelente dona de casa. Que rumos tivera tido a sua vida que a guiaram àquele lugar? Quis Deus que não tivessem filhos. Talvez uma seqüela decorrente dos hábitos do passado que afetaram sua saúde. Compensaram isso se dedicando a várias obras assistenciais. Vê como são tortuosos os caminhos da paixão. É preciso ter cuidado.
Plínio saiu dali maior do que era quando entrara. Compreendeu, depois de ouvir aquelas poucas palavras, coisas sobre amor, alma e gente. Passou a respeitar o intrincado labirinto que habita o interior de todas as pessoas e cresceu voltado para o cultivo do amor e para o zelo com todos os corações que, frágeis, pulsam no peito dos que compõem a inquieta legião humana.

Maio de 2000 Daniel Carrano Albuquerque
e-mail: notdam@bol.com.br
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