Poderia aguardar a azada oportunidade do início de um mês para começar o cordel que pretendo alongar e levar o mais longe possível, construindo uma décima por dia, em versos septissílabos, consoante as emoções quotidianas que for sentindo e captando. No entanto, como é óbvio que tudo tenha uma data, e esta seja fidedigna, dado que a ideia me surgiu hoje - 17.06.2005 - hoje também decidi dar-lhe imediato curso.
É natural que por eventual falta de disponibilidade, não me seja possível cumprir regularmente o desiderato dia após dia. Por consequência, se falhar dois-três-quatro dias consecutivos, logo que efectue a próxima inserção aqui, esta considerará o respectivo número de décimas em atraso. Posto isto, eis-me então e "até um dia", desde já entregue à versejante tarefa.
O CORDEL QUE...
MESMO QUE EU ACABE...
NUNCA MAIS ACABARÁ!...
Décima à data em apreço
Cultivo o pensamento
Que após a experiência
Se impõe à inteligência
Em livre comedimento
E daí faz o fermento
Que leveda com apuro
O pão firme e seguro
Que a humanidade come
Para saciar a fome
Sem ter medo do futuro...
Domine o movimento do texto com o "mouse":
CORDEL
UMA DÉCIMA DIA A DIA
6ª. feira - 17 de Junho
A fingir de criaturas
Em pestilentas miasmas
Andam praí uns fantasmas
À borda das sepulturas
Semeando amarguras
Sobre a triste solidão
Daqueles que em comunhão
Só querem enluarar
Sua existência e lograr
Alguma consolação...
Sábado - 18 de Junho
Às vezes na confusão
Num lance desprevenido
Até se esquece o sentido
Perdendo-se a direcção
No meio do arrastão
Que assola pra morder
O nosso calmo viver
E a gente que não é
Por condição de má fé
Num segundo passa a ser...
Domingo - 19 de Junho
Por isso mesmo a meu ver
Segundo antigo dito
Eu sinto e acredito
Que se aprende até morrer
Embora para valer
O efeito que se aprende
Às vezes nem sempre rende
Quanto dele se espera
Porque a vida é uma megera
Casada com um duende...
2ª. Feira - 20 de Junho
Se tudo que me ofende
Só em palavras saísse
Quiçá a ofensa servisse,
A quem não me compreende
Ou finge que desentende
Para criar confusão,
De varinha de condão
Azada e profiláctica
Que evitasse na prática
Os actos sem remissão...
3ª. Feira - 21 de Junho
Sol bonito d"estadão
Há pombas em meu telhado
Arrulhando um melopado
Prazer d"anunciação:
Vem aí o São João
E a rusga está preparada
Na codícia da noitada
Mais bela deste meu Porto
Que desata o ponto morto
Pra viver só sem mais nada...
4ª. Feira - 22 de Junho
Levemente perfumada
A brisa de manjerico
Já inspira o mafarrico
Do povo em grande levada
Que de alho à martelada
Faz a batalha campal
Do mais lindo festival
Que conheço em singeleza
Entre a multidão acesa
De paz em "guerra" total...
5ª. Feira - 23 de Junho
Há algo de Carnaval
Mas a festa é mais calma
Como se o corpo e a alma
Tivessem data formal
Para em cúmulo ideal
Demonstrarem lado a lado
Que são um par bem casado
Ao longo da madrugada
Com toda a gente enlaçada
No chama do mesmo fado...
6ª. Feira - 24 de Junho
Hoje no Porto é feriado
Porque é dia da eleição
Que outorga a São João
Sempre em voto renovado
O seu benquisto reinado
Na invicta cascata
Desde a casinha de lata
Ao mais rico edifício
Onde de amor ao ofício
O santinho tão bem trata...
Sábado - 25 de Junho
Manhãzinha se desata
A sombra da decepção
Nas folhas mortas no chão
Enquanto um gato se cata
À espera de uma gata
Que sonda uma saída
Na cidade adormecida
A acordar devagarinho
Para no mesmo caminho
Se atirar de novo à vida...
Domingo - 26 de Junho
O Verão em brasa suicida
Incendeia a floresta
Queimando o verde que resta
Da paisagem florida
Entre a água poluída
Que a seca escasseia
De aldeia em aldeia
Onde as fontes naturais
Exangues não podem mais
Com a humana alcateia...
2ª. Feira - 27 de Junho
À crise que mais se enfeia
Responde a greve ao trabalho
Embaraçando o baralho
Que o Governo manuseia
Para os ricos à mão-cheia
Prós pobres de mão fechada
O suor não vale nada
Porque os que mais protestam
E em praça se manifestam
Vão de pança bem inchada...
3ª. Feira - 28 de Junho
Os profetas de bancada
Agitam o alarido
Sobre o sério que é bandido
E por irónica piada
Aos ladrões não fazem nada
Enquanto povo benquisto
Como sempre anda de cristo
Arrastando a sua cruz
Onde a esperança de ter luz
Morre sem nunca a ter visto...
4ª. Feira - 29 de Junho
Há trinta anos vão nisto
Os cegos de olhos abertos
Imbecis fingindo espertos
Onde surge o homem misto
Reclamando o sinistro
Direito de engravidar
E por isso quer casar
Com o leal companheiro
Que trabalha de coveiro
Pra na morte o enterrar...
5ª. Feira - 30 de Junho
E nada é de admirar
Porque em desvios da porra
Também Sodoma e Gomorra
Deu ao mundo que falar
Para exemplo milenar
Como aliás em relato
A Bíblia mostra o retrato
Da grande devassidão
Que a título de evolução
Repete o desiderato...
6ª. Feira - 1 de Julho
Porque almejo ser cordato
E sobretudo ordeiro
No papel de usineiro
O mais possível sensato
Com humildade acato
O cariz de cada qual
Já que na vida afinal
As coisas são como são
Com razão ou sem razão
Quer por bem ou quer por mal...
Sábado - 2 de Julho
Por feitio sou frontal
Para não ter de viver
Com a alma a remoer
Feita orgão visceral
Pois sei bem quanto é letal
Dar ao ego o tormento
Da maldade em sentimento
E assim alimentar
A sede de me vingar
Se abomino esse intento...
Domingo - 3 de Julho
Cultivo o pensamento
Que após a experiência
Se impõe à inteligência
Em livre comedimento
E daí faz o fermento
Que leveda com apuro
O pão firme e seguro
Que a humanidade come
Para saciar a fome
Sem ter medo do futuro...
2ª. Feira - 4 de Julho
Presumo que amanhã
Estarei de novo aqui
Mas caso não venha cá...
Estou doente ou morri!...
António Torre da Guia
O Lusineiro
Som = Zeca Baleiro em "Semba"