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Artigos-->KOELLREUTTER O ALFABETIZADOR Observação de uma governanta -- 13/01/2024 - 12:17 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

KOELLREUTTER O ALFABETIZADOR

Observações de uma governanta

 

L. C. Vinholes

13.01.2024

 

Em viagem a São Paulo em novembro de 2007, atendendo compromisso assumido com o Centro de Referência Haroldo de Campos para Literatura e Poesia, da Casa das Rosas, aproveitei para visitar uma pessoa que, desde os primeiros momentos que a conheci, me cativou pelo seu fino trato e pela sua maneira atenciosa. Os encontros eram esporádicos, mas suficientes para sedimentar estas impressões.

 

Nascida na pequena cidade de Areia, município homônimo na Paraíba, em 7 de setembro de 1954, Aurea Frazano da Silva, assim como milhares de nordestinas, com apenas 16 anos de idade e sem estudos, deixou seu torrão natal para trabalhar em São Paulo. Casou-se com Iranildo Fidelis da Silva aos 21 anos de idade e, em 1980, ganhou seu primeiro filho.

 

Em maio de 1980 ocorreu o primeiro encontro de Áurea com H. J. Koellreutter.  Valendo-se de informação repassada por seu irmão, zelador de um prédio na Av. São Luís, foi bater à porta do apartamento “para onde um senhor tinha acabado de mudar e precisava dos serviços de uma doméstica”. Bastou uma rápida entrevista e já no dia seguinte estava empregada, trabalhando terças e quintas, no período da manhã, recebendo Cr$7,00 por dia e achando muito estranho o ambiente de trabalho: “Por quê aquele homem numa ótima posição social, aquele lindo edifício, com portas grandes e luxuosas, estava num apartamento vazio e frio, contendo apenas uma cama de casal, um armário embutido na parede e, o principal, seu grande piano com uma cadeira, presente de uma aluna? Mas com o passar do tempo me acostumei”.

 

 

A primeira filha mulher de Áurea veio ao mundo não só para fazer companhia ao irmão Júlio César e enfeitizar aos pais, mas também, sem que soubessem, trazer alegria à casa vazia não só de móveis e de calor humano. E Koellreutter que, como ninguém conhecia o desenvolvimento de uma criança, haja vista sua análise do tempo de uma criança vis a vis ao de um adulto, assunto que tratou em uma de suas palestras, certamente encontrou em Camila o objeto para direcionar seu carinho e um tanto do seu amor. Foi assim que Camila, desde criança, na longa convivência, aprendeu a chamar Koellreutter de vovô a quem, quando já mocinha, ajudou a mãe nos cuidados dispensados àquele que fazia o papel de avô, já que tanto os maternos quanto os paternos, viviam no longínquo Paraíba.

 

Nas suas anotações recentes, recordando sua história em São Paulo, Áurea registrou: “foi quando conheci o professor Hans-Joachim Koellreutter. No momento em que o vi me espantei com a sua grande personalidade, sua elegância e o seu jeito intelectual e culto de ser”.

 

Descrevendo o apartamento e as tarefas, Áurea diz: “Uma coisa que me chamava muito atenção daquele apartamento frio, era o piso feito de tacos e como tinham acabado de tirar o carpete, era muito sujo; eu podia limpar o quanto fosse que ele se mantinha imundo. Foi quando pedi uma enceradeira para o professor e ele a comprou. Quando o professor Koellreutter voltou de viagem e viu que, por causa da enceradeira, o piso estava limpo como nunca, disse pela primeira vez uma das palavras que mais o marcara: Finalmente e me elogiou muito o que me deixou muito feliz. Porém, bem na época em que estava conseguindo deixar o piso limpo, foi colocado o novo carpete junto com os móveis da casa, e foi aí que, realmente, o trabalho pesado começou, pois, até então não tinha o que fazer, pois, como não havia uma quantidade razoável de móveis, não havia o que limpar e, principalmente, arrumar, pois o professor era e sempre foi uma pessoa muito bem organizada com suas coisas e não tinha o que eu arrumar”.

 

Nos parágrafos seguintes das suas memórias, Áurea registra algo que se reveste da mais alta importância para que seja conhecido o lado humano de quem, como mestre e amigo, é sobejamente conhecido.

 

“Depois que o professor se estabeleceu, ele começou a dar suas aulas de música, porém não dava aulas de música apenas em São Paulo, ficava uma semana aqui e uma semana no Rio de Janeiro e por essa causa recebi muitos telefonemas até que um dia ele pediu que eu os anotasse, mas havia um problema: eu não sabia escrever nem ler, mas disse a ele que poderia anotar tudo de cabeça. Ele deu risada e falou que era impossível pois eram muitos os telefonemas. Foi então que decidiu me ensinar a ler e escrever e, por esse motivo, passei a trabalhar quatro dias por semana: segunda, terça, quarte e sexta”.

 

“As aulas que o professor me dava eram enquanto tomava café da manhã e funcionaram do modo que em uma semana eu fazia a letra A, noutra a letra E, noutra a letra I, noutra a letra O e noutra a letra U, até que eu soubesse, e eu, sinceramente, achava que não era necessário. Com o passar do tempo deixou de me ensinar só vogais e passou a me ensinar também as consoantes. Quando aprendi realmente tudo direito ele me ensinou as primeiras palavras que eram da maior importância para mim: meu nome Áurea e, em seguida, como sempre lhe chamavam: professor. Depois os objetos: cadeira, mesa, cama, armário, estante etc.”.

 

“Um fato que me chamou muito a atenção, daquela época em que me ensinava a ler e escrever, é que um dia recebi uma ligação de uma moça que trabalhava na empresa de aviação Varig e pediu que anotasse a senha para que o professor Koellreutter pudesse retirar sua passagem; começou a ditar as letras e números até que disse a letra W, ou no modo que traduzi dabliô, pois nem sabia o que era aquilo, pois ainda estava em processo de aprendizado. Fiquei muito nervosa e preocupada. Então liguei para meu tio Paulo e pedi que passasse na minha casa para me ajudar. Ele passou e me explicou que W era a lera que aparecia na garrafa de Wisk e me ensinou a escrever, ainda assim fiquei com medo, mas deu tudo certo”. “No final das contas, depois de 1 ano, estava lendo normalmente e escrevendo razoavelmente, não é atoa que todo dia às 6:30 da manhã, horário em que chegava para trabalhar, o professor já separava as partes do jornal referentes ao tempo e ao signo para eu ler, pois éramos do mesmo signo: Virgem. Eu era do dia 7 de setembro e ele do dia 2.

 

Como pode ser deduzido, pelo que a seguir consta das anotações feitas pela Áurea, ela ganhava cada vez mais confiança: “O professor sempre retirava suas correspondências no Correio Central e um dia recebi, na ausência dele, uma mensagem de que ele deveria retirar uma correspondência. Então liguei para o professor que se encontrava no Rio de Janeiro e lhe informei da situação. Ele me disse de que iria mandar uma procuração para o Correio Central dizendo que eu poderia receber todas as suas correspondências, o que me deixou muito feliz, pois sentia que cada vez mais ganhava sua confiança”.

 

“Um dia, dona Margarita[i] me convidou para trabalhar de caseira na sua casa do Rio de Janeiro, pois não estava satisfeita com os seus caseiros, porém não aceitei pois disse a ela que queria mais um filho além do Júlio César. O tempo passou. Em 1985 meu desejo de estar grávida se realizou, descobri que estava para nascer minha filha Camila. Continuei trabalhando normalmente até o sétimo mês. Minha gravidez era de risco, sempre me sentia muito mal e ia muito ao hospital. No fim de setembro fiquei dois dias fora do trabalho e liguei para o professor para lhe informar que não podia trabalhar pelo fato de passar mal, então ele me disse que não me preocupasse, muito educadamente, e fiquei muito tranquila. No dia seguinte quando fui trabalhar, muito calma, assim que cheguei o professor me disse bom dia e me disse também que não necessitava mais de meus serviços. Fiquei extremamente mal e triste, mas só me restava dizer que estava tudo bem. Também fiquei chocada pelo fato de estar tudo certo em relação à minha licença maternidade, pois o combinado com o professor era que minha cunhada iria me cobrir. Voltei para casa muito mal e sem saber porque o professor havia tomado aquela decisão, afinal há dois dias atrás me dissera que estava tudo bem e que eu não me preocupasse. Então fiquei sabendo o motivo pelo qual o professor havia me demitido, pois meu irmão que era zelador do prédio e tinha influências foi quem disse que ser melhor contratar outra pessoa e assim ele fez, contratou outra pessoa. Sempre que ia à casa de meu irmão perguntava o que se passava. E mais uma vez lá estava eu, com um bebe e sem emprego como no início desta história. Se passaram 10 meses...

 

“Em setembro de 1986, em viagem ao Rio de Janeiro, meu irmão Luís foi visitar meus primos que por um acaso eram caseiros do professor. Meu primo o apresentou a dona Margarita que, por pior coincidência, se encontrava nessa casa. Então me enviou um recado pelo meu irmão que voltava a São Paulo de que no dia 1º e outubro, às 8:00 horas, eu deveria comparecer ao apartamento da Av. São Luís, fiquei muito feliz”.

 

“La fui eu, era um domingo ensolarado e às 8:00 horas em ponto estava lá, toquei a campainha, dona Margarita abriu a porta, me convidou para tomar café da manhã, agradeci, mas disse que não. Sentei-me e começamos a conversar. Conversamos bastante e lhe perguntei sobre o professor, ela falou que ele estava viajando, mas que chegaria naquele mesmo dia de tarde. Uma das coisas que conversamos foi sobre o salário que mudou muito, foi de 7 cruzeiros para 1.000 cruzeiros, e combinamos que, no dia seguinte, já começaria a trabalhar. Logo de manhãzinha, na segunda-feira, cheguei, bati na porta, e quem abriu foi o professor, fiquei muito feliz com sua reação que foi de seja bem-vinda. Perguntei a ele por onde começaria e ele me disse espera a Margarita.

 

“Esperei dona Margarita acordar, conversamos com o professor, que inclusive me perguntou se ainda continuava lendo o jornal e disse que não, foi então que ele disse que continuasse lendo. Quando dona Margarita acordou me disse que eu poderia começar por onde achasse melhor. Então professor me disse que às 10:00 horas ele daria uma aula e me pediu que arrumasse a sala para dar a aula, e assim fiz, arrumei a sala e quando seus novos alunos chegaram me apresentou a eles”.

 

As histórias de Áurea e Koellreutter não terminam com o que ficou acima registrado, são muitas ainda a serem contadas e só terminam no final dos anos em que, morando em São Paulo, com zelo de servidora dedicada, o acompanhou até seus últimos momentos.

 

Em um dos últimos parágrafos do artigo Koellreutter – Eventos em Tiradentes, publicado no site usinadeletras.com.br, em setembro de 2015, registrando o que foi o lançamento da Fundação Koellreutter, vinculada à Universidade Federal de São João del-Rei, não deixei passar desapercebida a presença de Áurea Frazano da Silva e da elegante moça que a acompanhava, sua filha Camila, e solicitei ao público que fosse dada uma salva de palmas à dedicada e atenciosa governanta que, por muitos anos e dioturmente, sempre esteve ao lado de Koellreutter prestando-lhe a assistência que necessitava. Foi um longo e caloroso aplauso à dileta amiga que, abraçada à sua filha, chorava copiosamente.

 

 

[i] Margarita Schaker, (17.04.1936 - 12.05.2016) cantora alemã e esposa de H. J. Koellreutter.

Comentarios

Maria do Carmo Maciel Di Primio  - 17/01/2024

Adorável relato !!
Curiosa para conhecer as próximas histórias de Áurea e Koellreutter.

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