Usina de Letras
Usina de Letras
50 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50669)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->TERRíVEIS E CRIMINOSAS ESPERIÊNCIAS ISABEL -- 03/01/2024 - 16:45 (LUIZ CARLOS LESSA VINHOLES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

TERRÍVEIS E CRIMINOSAS ESPERIÊNCIAS

ISABEL

 

L. C. Vinholes

01.01.2024

 

Tenho em mãos a antologia de contos “Las palabras guardadas”, de 2017 e capa com desenho gráfico de Carlos Palleiro, reunindo textos assinados por Aidée Santo, Ana Olivera, Analia Morales, Antonia Yañez, Aurora Rey, Carlos Lamancha, Charna Furman, Clarel de los Santos, Daniel Stapff, Dora Campos, Karina Tassino, Margarita Stoll e Vilna Anúnez, tendo como orientador ao Mestre em Artes Luis Masci.

 

Esta não é a primeira vez que me debruço sobre textos registrando as terríveis e criminosas experiências dos hermanos além fronteira. Na primeira antologia, “Histórias do cárcere e da repressão” predominavam nomes masculinos e desta vez são os femininos que predominam. Nas duas antologias o único nome que se repete é o de Analía Morales, de quem acabo de traduzir o conto que tem como título o nome de Isabel, homenageando uma jovem de presumidos dezoito anos que foi parceira de cela da autora.

 

Não será demais aqui registrar dados relativos à contista, conforme constam da edição em apreço: Analía Morales Vinõles é de Cero Largo, divorciada, duas filhas e um casal de netos, mudou-se para Montevidéu para estudar engenharia, foi presa aos vinte e um anos de idade por defender a liberdade para os presos políticos e denunciar a prática da tortura no pais. Foi militante da União das Juventudes Comunistas. Como residência, tem alternado entre Montevidéu e Melo. Trabalhou no desenvolvimento de software, capacitação informática e consultoria no Uruguai, Chile e República Dominicana. Atualmente está em fase de conclusão dos estudos de Engenharia e é docente em Pensamento Computacional na Universidade do Trabalho Uruguaia.

 

Vejamos ao conto e ao que diz Analía:

 

ISABEL

 

Me acostumara a não falar, a ser discreta, tanto que, com o tempo, fui me esquecendo. Talvez por pura defesa. E fui me convencendo: a melhor garantia, o que me impediria de falar, de não dizer, de não declarar, de guardar para mim, só em mim o que eu sabia... era não saber.

E me esqueci de saber.

A prisão é o melhor lugar para esquecer, pois tudo o que se fala ali tem consequências.

Numa prisão sob uma ditadura não se fala.

Só se gesticula.

E muito mais é o que se cala.

Alguém sempre escuta, alguém sempre observa.

Antes de ser internada no hospital para tratamento dos ouvidos, disseram-me que os interrogatórios também eram feitos com as pessoas anestesiadas ou sob efeito do soro da verdade, aproveitando esse momento.

Então, fui tentando até treinar meu subconsciente para não saber, para não o deixar andar sozinho, e assim, mesmo que estivesse anestesiada, não falaria se me perguntassem algo que eu pudesse saber.

Aos poucos fui conseguindo isso como que se esculpisse uma pedra, polindo as bordas, removendo irregularidades, lasca por lasca, até que aquela pedra se transformasse em uma única peça indivisível, polida, irrepreensível, indestrutível. Aquela pedra esculpida estava no coração da pedra e a ponta do cinzel chegava até lá.

Mais uma pedra na espiral do meu DNA

Meu próprio DNA.

Armazenado lá. Esquecido.

O tempo foi e voltou e aquele momento tão temido, tão esperado, chegou. E depois habituei-me aos pequenos passos entre as paredes fechadas, passos incertos na orla das grades, uma nuvem negra que um dia tirou o fôlego às pessoas. Depois vieram os passos maravilhosos nos azulejos e depois nos canteiros e na terra e na areia, o parquet da dança sonhada, os meus passos. ​O tempo finalmente deixou o terror para trás. A ditadura ruiu como um castelo de areia sob o cerco de cada uma das moléculas daquelas ondas, repetidas vezes, até penetrar nas suas paredes, nos seus cabos, nos seus cantos imundos.

Demolido.

Porque foi demolido.

Depois tornou-se habitual para mim andar pelas ruas e praças da democracia, ainda que na poltrona da tradição recuperada estivessem sentados senhores que não mereciam muita confiança da minha parte. Eleitos. Ainda sob a capa do medo do regresso do castelinho abolido, a memória das paredes fechadas, dos uivos, dos gestos secretos e do silêncio da pedra polida que resistiu à tempestade e à seca sede do sol.

O tempo. Que às vezes garoa, depois chove e depois é dilúvio, limpou as ruas e os barracos. E trouxe um dia recém-parido em que os cassados ​​eram presidentes, os presos e perseguidos eram ministros e prefeitos.

A Primavera com aroma de todas as flores.

E ainda assim, a pedra. Quieta. Intocada. Como se fosse agarrada ao anel da minha vida, ainda estava lá.

Não falar. Não dizer nada. Não revelar.

Não percebi. Nem sentada num banco de praça. Nem caminhando de mãos dadas. Nem gostando do trabalho como uma abelha: em que momento o cinzel voltaria a penetrar no coração da pedra e desenterrar o que estava enterrado, abraçar o que estava banido e abrir o esquecimento de par a par.

Enquanto na prisão, conversava muito com Isabel. Compartilhamos chimrrão, livros e trabalho. Ela me contou sobre sua prisão, seu aniversário de dezoito anos e um estupro.

Ela chorava de raiva. Uma raiva sem limites que guardava no corpo, mas que explodia nos olhos, num movimento dos lábios, numa maneira de acelerar o passo.​

A ouvi. Tentava confortá-la prometendo que um dia haveria justiça e tudo o que estivesse à minha disposição capaz de mitigar sua dor.

O tempo novamente.

E os anos passaram, décadas após décadas. O tempo, até hoje, quando o telefone tocou e do outro lado uma voz familiar me pediu para prestar depoimento. Que testemunhasse no caso de Isabel.

Suas sobrinhas haviam relatado aquele choro e o tremor de seu corpo que não parou nem quando a rua virou sorriso, nem quando os governos passaram, nem quando a primavera colocou folhagem nova nas árvores da praça.

Elas sabiam que eu tinha sido testemunha, souberam do consolo inútil. Sabiam de tudo isso porque Isabel as contou.

Não podia dizer não, mas a pedra ainda estava intacta. Não sabia, não me lembrava

Disseram-me que há muitos anos vivia num hospital psiquiátrico num país muito distante.

Trancado, novamente. Como na prisão.

Talvez tenha tentado perfurar a pedra para dentro guardar as lembranças de suas próprias mãos, até sangrá-las. Não sei. Talvez para se esquecer mais do que eu. Talvez para ir afastando-se deste mundo cheio de verdades cruéis. Devagar. Entre outras paisagens de uma janela. Essas verdades que o tempo ainda não conseguiu extrair da terra como rubis da memória.

E fui testemunhar, mas não lembrava, não sabia o que ia falar.

Eu tinha pensado em dizer-lhe que a culpa era deles, por terem matado a liberdade. Pensei em dizer-lhes que todos temos o direito de ser, pensar e acreditar naquilo que acreditamos. Tinha pensado que quando me dissessem que a culpa era nossa por termos nos metido no que não devíamos, os contestaria e os contestaria ...

O tempo. E aí pensei que os que estariam do outro lado não seriam militares como eu imaginava, que seriam civis. Esses que hoje não mandam nem governam.

Mas fiquei confusa.

Chegou a promotora e foi muito gentil.

Ela tinha uma bela blusa e um colar dourado.

O interrogatório, ou melhor, as perguntas foram feitas pela juíza e por um homem muito justo que também escrevia.

Não como antes, quando gritaram conosco.

E eles ameaçavam.

E eles desprezavam.

Naquele momento senti, intimamente, como a pedra se partia de repente. Como a superfície lisa do segredo guardado se fraturava para não chegar à boca. Como se misturava como um rio com meu próprio sangue e corria por minhas veias e como, finalmente, se dissolvia e durava por anos. E eu citei. Citei a todos os que lembrei, os que a chutaram a patada ao calabouço, os que gritavam cachorra, os que formavam uma matilha... E os diretores da Prisão de Punta de Rieles, aqueles que a detiveram... Citei a todos.

E a minha palavra os acusou. Um a um.

Eu.

Eu acusei.

Mas nunca me lembrei quem ou quem foram os que a estupraram, os responsáveis.

Não pude

Não soube.

Não me lembrei do que marcou sua vida até sua morte.

No final do depoimento mandaram que assinasse e eu ia assinar sem ler, mas os que tomaram o depoimento, disseram: não é como antes, podes ler antes de assinar.

A pedra não estava quebrada completamente? Por que esqueci algo tão importante?

Mas assinei. Saí para a rua. E então eu vaguei por aí. Fui almoçar com uma pessoa muito amiga. E enquanto compartilhamos os dois lados de uma mesa, o tempo passava para outro tempo. Nem passado nem presente.

Num país que não é seu nem estranho.

Caminhei, caminhei bastante até chegar em casa. Então escolhi minha música e comecei a dançar. Dancei com todo o meu ser. E senti que dentro de mim não havia nada pétreo, nada que não fosse a força desencadeada que me empurrava, enquanto o ar livre abraçava meu corpo que dançava e dançava.

Isabel.

Ela, trancada a milhares de quilômetros de distância, relaxando todas as tensões, a dela em um mundo dela ao mesmo tempo estranho para nós, e eu aqui, sentindo que o ar do tempo havia atravessado a distância e me libertado daquela pedra que obstruía o ar, a vida, a palavra.

E dancei e dancei e dancei.

Graças a ela.

À Isabel.

Comentarios

Maria do Carmo Maciel Di Primio  - 04/01/2024

Texto poético e tocante para descrever experiencias tenebrosas e terríveis.
Crimes até hoje defendidos por alguns "humanos" questionáveis.
No Brasil, a impunidade reinou e reina até hoje para estes crimes inomináveis.

O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 10Exibido 71 vezesFale com o autor