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cronicas-->Minha senha, minha sina -- 28/07/2000 - 13:56 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um amigo me aconselhou a unificar minhas senhas, já que vivo reclamando da quantidade das que tenho.

- Fiz isso. Não sabe como facilitou minha vida - afirmou, categórico, o Rafa.
- E os riscos? - ponderei.

Enumerei as consequências de juntar num só código todas as senhas para acessar sistemas, comprar, tirar extratos etc. Para começar, duvidei. É impossível! Vamos começar pelas regras impostas pelos personagens que constróem as chaves da fechadura. O banco orienta que a deve ter, no mínimo, quatro dígitos; o cartão de crédito, seis; a livraria virtual fez uma lambança que combina letras com números, mas que não pode exceder cinco caracteres. O pessoal técnico da empresa ousou e criou uma chave de acesso por conta própria, para cada um dos funcionários. Fez uma combinação mirabolante envolvendo o número da chapa, a data de nascimento e o número da casa do colaborador. Arrasaram! Por isso não acreditei na unificação milagrosa que ele disse. Acabou confessando que tinha três senhas.

- Mas eram 8 antes da minha reengenharia de códigos!

Combinei com minha mulher que nossas senhas deveriam se basear no nosso aniversário de casamento. 27/06/94. Deixei-lhe a incumbência de compor nossas senhas comuns. Caixa postal do telefone, conta conjunta, portão eletrónico do condomínio, liga-desliga do alarme residencial e dos tocas-fitas dos carros. Considerei ter sido uma solução ao mesmo tempo lógica, segura e prática, até ir jantar na casa do meu cunhado, um maníaco-cibernético.

- Você costuma visitar sites pornográficos? - perguntou-me enquanto bebericávamos um doze anos.
- É claro! - respondi.
- Chat com ninfetas do interior?
- Às vezes.
- Então como pode compartilhar senhas?

Só visitava o Zé Roberto por insistência da Ana Paula. Afinal, era seu único irmão. Mas desta vez, bem que ele estava certo. Imagine se, há um ano, tivéssemos a mesma senha do celular? Estaria separado. Aninha ouviria os recados pouco éticos da Gláucia, minha amante de longa estrada. No caminho de casa tentei persuadi-la a democratizar as senhas. Aleguei risco de acesso de outras pessoas, obviamente mal intencionadas.

- Já pensou? E se alguém descobrir sua senha? Pode fácil, fácil acessar meus negócios! E vice-versa.

Graças a Deus ela concordou. Remodelamos nossa estratégia. Cada um comporia suas senhas. Convenci-a até a criar uma exclusiva para o micro de casa. E se algum engraçadinho quiser invadir nossa privacidade? - provoquei-a. .

O passo seguinte - ainda considerando as instruções do meu cunhado - era criar as minhas próprias senhas. Banco, cartão de crédito, celular, micro... Perdi uma manhã filosofando acerca da metodologia. Tudo residia em torno da equação "não-pode-ser-tão-fácil, nem-tão-difícil". Elas tinham de estar correlacionadas, para eu não esquecer; e ao mesmo tempo enigmáticas, para ninguém descobrir. Fui descartando, por reflexão: datas de nascimento - minha, da mulher e das crianças - documentos etc. Restou-me pouco. Optei pelas informações dos meus pais, cujos dados um estranho desconheceria ainda que eu porventura perdesse meus documentos. Papai nasceu em agosto. O dia eu não lembro. Mês oito. Está aí um dos dígitos. Mamãe morreu em fevereiro, pois era carnaval. Ou terá sido em março? Essa maldita festa pagã não tem data fixa... Sei que o Senna morreu em 1º de maio de 1994. Mas não lembro quando mamãe se entregou a Deus. Seria muita sacanagem ter uma senha montada com a data de nascimento do genitor e o óbito de um ídolo. Decidi procurá-lo.

- Como vai, velho?
- Do jeito que Deus manda, garoto.
- Quando a mamãe morreu?

Os olhos do velho Valdir lacrimejaram. Resolvi mudar de assunto. Perguntei sobre a Dona Laura, viúva sexagenária que arrastava uma asa para ele. Comentei sobre as travessuras de Gustavo, meu caçula, a quem meu pai nutria um carinho especial. Convidei-o para um buraco qualquer dia desses. Sugeri que levasse o Sr. Arnaldo, companheiro antigo de carteado. Ele mal ouviu. Respondia com monossílabos. Levantou-se da velha cadeira de balanço e foi até a estante de mogno. Voltou acompanhado de seu cachimbo preto. Acho que fazia isso para me provocar. Sabia o quanto eu detestava aquele maldito cheiro. Sentou-se novamente, já com o cachimbo aceso.

- Por que quis saber da sua mãe?

- Estou com um problema. Parece ridículo, eu sei. Mas é que eu queria....

Contei-lhe a história. Pensei que fosse se indignar. Mas acabou achando engraçado. O filho, que mal o visitava, ir procurá-lo pedindo ajuda para criar uma senha.

- Feliz era sua geração, que não tinha de se preocupar com essas banalidades - comentei.
- Como não?
- Não vem com história, pai. Vai me dizer que em 1940 você tinha que ter senhas?
- E como é que você acha que eu despistava seu avó, quando ia namorar com sua mãe?
- Ah! Só que era diferente. Não tinha toda essa complicação...

Meu velho sorriu maliciosamente. Começou a contar. No começo mamãe pendurava um lenço vermelho na janela se meu avó estivesse em casa. Mas com o passar do tempo o velhote foi desconfiando e ela mudou a cor do pano. Passou a pendurar um azul. Deve ser por isso que os caras de informática recomendam que troquemos de senha de tempos em tempos - pensei. Quando o namoro foi oficializado, e meu pai recebeu autorização para namorar na sala, vovó oferecia biscoitos de coco para o Valdir. Era sinal de que meu avó já tinha ido se deitar. Papai podia abraçar a amada sem preocupação. Se vovó ameaçasse levantar, vovó avistaria do outro sofá da sala, e moveria os óculos com a mão esquerda. Rapidamente o casal se desgrudava.

- Nunca foi pego? - quis saber.
- Claro que sim. Uma vez sua avó inverteu as bolas e mexeu nos óculos com a mão direita. Pensei que ela estava o ajeitando por pura necessidade.

Falou-me também da senha que usava no trabalho. Deixar cair o martelo para fazer um som estridente significava que o encarregado estava chegando perto. Também neste caso usou a técnica de ir mudando o sinal de meses em meses. Nesta situação o único problema quem teve foi o João Matias, que fraturou um dedo quando deixou uma marreta cair em seu pé esquerdo. Passei a tarde ouvindo histórias e mais histórias. Descambou para outros assuntos. A saudade que ele sentia da minha mãe, a venda da casa da praia, o futuro... Saí de lá aliviado. Até esqueci do propósito inicial da visita. Comecei a me questionar. Por que me afastei do meu pai? Naquela tarde aprendi tanto, diverti-me como há muito e aliviei a alma. Cheguei em casa e Ana Paula me esperava para o jantar, com as crianças.

- Ligaram da corretora de seguros. O do seu carro está para vencer.

Como não corro riscos desnecessários, tratei de telefonar em seguida.

- Ah, não! Esqueci a senha. Sabe onde eu anotei, querida?

Pensei em combinar com o corretor que, no ano seguinte, quando estivesse próximo à data da renovação, deixaria um lenço vermelho pendurado na janela do meu apartamento.
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