Bate à minha porta uma criança de oito anos repetente na primeira série. Caderno na mão. Arrisca um sorriso. A carinha é toda interrogação:
- Qual é o antônimo de guloso?
Diante da minha mudez ela incentiva a “conversa”.
- Você é professora de Português, não é?
Afirmativa e negativa concomitantes.
- E qual é o antônimo de viúva?
E continua numa tagarelice sobre a prova daquele dia: Antônimo vai cair na prova . A “Tia” ensinou. Sou repetente. Deveria saber. Decorei, mas esqueci”.
Meu desejo é tocá-la no rosto e sugerir que continue a brincar no monte de areia que está próximo a entrada e que ela espalhava com o pé antes de chegar.
Nossa “conversa” não durou. A avó chama insistente. “Tá na hora da Escola.” A pequena fica apavorada. Desce os degraus rapidamente. Vai à Escola fazer a prova de Português.
Fico pensando nela, em outros aprendizes , na Escola, em mim, na aula de Português, em Rubem Alves: “...Saber é sentir o sabor ...” O sabor de ser guloso e em saber o antônimo de guloso. No juízo de valor. Na gula de aprender. No que a “Tia” ensinou . Na inutilidade da metalíngua. Nas viúvas do ensino - refiro-me inclusive às manifestações durante Campanha Salarial em que professoras carpideiras acompanhavam o enterro do governo. Viúvas do governador? Viúvas do prazer? Viúvas do capital? - Nos aprendizes-órfãos; numa linguagem mais atual : clientes. Penso na esterilidade em que transformaram (transformamos?) o ensino da Língua. Reflito sobre a Língua enquanto condição essencial para o contato com o mundo. Na gulodice fanática pelos exames futuros: vestibulinhos e vestibulares sem compreensão do funil. Na beleza que deveriam ser saboreadas ao borbulharem em nossa boca. Em dizer a menina que “ensine” a “tia” os cantos da moda (rap, funk, pagode). Que “deixe-a” demonstrar uma produção de texto que emana nas brincadeiras de casinha. Que contemple um desenho (texto) seu. Que ouça o reconto das novelas e desenhos animados (leia-se: PokéMon) Que leia uma reescrita sobre um passeio. Que assista a uma teatralização do cotidiano. Que veja como é leitora assídua das propagandas. Que observe o sinal inequívoco do folclore quando presenciar a menininha brincando de roda. Que perceba sua competência e desempenho lingüísticos. que compreenda a avaliação como subsídio para avaliação de processos. Que “decorar” é embelezar espaços. Saber de cor - etimologicamente no coração - só sabemos quando há desejo em saber. Quando provamos o desejo de conhecer e sentimos sua utilidade.
Muitas outras coisas certamente a menina, por si só poderia dizer para a “Tia”, mas há o reinado do silêncio nas aulas de Português. Onde se “estuda” a Língua, a língua deve ficar quieta, guardada na boca, na caixinha dos segredos, segredos que poderiam ser desvendados pelo professor e alunos aprendizes.
Tantas questões... mais duas ainda para pensarmos: qual o antônimo de guloso? E de viúva?
MACEDO, Ana Maria Reis. Professora de Língua Portuguesa da Rede Municipal de Contagem e Rede Municipal de Belo Horizonte. 2000.