Não conte com ninguém na hora da morte.
Deixe apenas uma nota de Real para o coveiro.
Ele é um trabalhador assalariado, coitado,
que sobrevive enterrando pessoas assalariadas e coitadas.
Deita na tua caixa o corpo já sem vaidade,
sem máscaras e notoriedade e relaxa.
Não há dor na morte nem classe social.
Toda morte é coberta com cal.
Ocorre nela apenas desintegração e paz.
Uma paz inexorável e pessoal
que não faz mal.
Não exija choro nem vela dos que ficam.
Ladainha, passeata, cantiga.
Manifestação na esquina, passeata, cantiga.
Você morreu mas a vida prossegue.
A tua fotografia, amarelada, basta para saciar a saudade.
Os compromissos já foram firmados.
Teus conhecidos têm uma agenda a cumprir.
A tua história, o teu passado,
ficam com você
na tua caixa.
O porvir não é mais teu,
portanto, não reaja.
Não se revolte
nem se transforme
num fantasma.
O teu gosto bom,
o teu momento de caridade,
o teu dia de canalha
serão avaliados
por uma comissão de anjos.
Se você for um morto que valha
os anjos tocarão banjos
e a música freqüentará
o teu velório simplório.
Não é necessário luxo
na chegada,
e na partida muito menos.
Você veio de uma barriga
e numa caixa
nós iremos.
Contudo - se elas aparecerem ! -
as amantes que você teve em vida (!!)
fica alerta para levantar da caixa
e ajudar a apartar em caso de briga.
Na hora da morte
as amantes ficam emotivas.
Enfurecidas
não compreendem
a tua hora expirada, desmascarada,
e as tuas dívidas com o divino.
Elas só querem saber de prazer,
daquela parte que era o melhor de você.
Que Deus perdoe as amantes.
A melhor despedida, porém,
é aquela que se dá deserta
e sem testemunhas.
Porque, pela primeira vez,
o silêncio te pertence completamente.
E a dor é completamente tua.
O teu fiasco, o teu colapso
merecem uma passagem
sem necropsia.
Você dentro de uma caixa fechada
com as flores do lado de fora.
As flores foram feitas para enfeitar
os olhos dos vivos.
E você não poderá vê-las.
Muito menos sentirá
o sol,
e a saudade
fio e último vínculo
com a Humanidade
também não será
responsabilidade tua
E você será esquecido aos poucos
até amarelarem as fotografias,
até as traças roerem
a caligrafia e os versos
dos teus poemas.
Nesse momento, então,
só nesse momento,
você se igualará à morte completamente.
E isso não será o pior
nem instante tanto perverso.
Simplesmente não fará diferença.
Como se você nunca tivesse existido realmente.
A não ser
que em vida tenha mudado o destino do mundo.
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