Toda noite ele aparece tenebroso
Sombra balançando na parede
Do meu quarto.
Nunca vi vulto tão silencioso
Mas sinto seu desespero solitário
E seu mundo enlouquecido.
Não sei por quê me visita o enforcado
Com seu corpo dependurado
Em leves movimentos para os lados
Feito um pêndulo de um ex-vivo.
Sofro tanto pelo meu amigo enforcado
Que parece que nos conhecemos
De há muito tempo,
Numa outra vida que já não me lembro
Dejaví de amizade, tragédia e sofrimento.
Percebo que sua vida fora jovem
E uma energia fluídica de paixão
Ainda em suas veias na morte percorre
Movida pela força de uma grande emoção
De algo que para sempre
Não se esquece e nunca morre.
Às vezes o lamento desse estranho
Parece povoar-me o sonho tanto
Que o ar me falta, não respiro,
Então na cama me reviro
Em pesadelo assustado
Coração bate acelerado
Balança meu corpo na ponta da corda
Indo e vindo pendurado no quarto.
Meu amigo pede uma vela e eu acendo,
A claridade me revela o rosto moço,
Cabelos cacheados, a blusa branca,
Mangas compridas que escondem fortes braços,
A cabeça tombada num dos ombros,
O roxo da pele, cor da falta de ar,
Mesmo na morte meu amigo padece
Pois não tem quem lhe vele o agoniado penar.
Nossa amizade tênue saudade
Entre o ser que fui e que hoje há
Está suspensa e perfuma de tristeza
E de melancolia o ar.
Permanecemos silenciosos
Em respeito um ao outro,
Pois eu sei que ele sofre
E ele sabe que eu sofro.
O meu amigo enforcado,
O meu amigo tenebroso,
Surgiu de mim doido passado,
O meu fantasma, o meu desgosto.
A imagem pálida levemente balança
Unindo o ontem, o hoje e o amanhã,
Meu bom amigo morreu sem esperança
Numa tarde de maio, numa linda manhã.
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