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Textos_Religiosos-->PASSANDO EM REVISTA O SENTIMENTO -- 24/02/2005 - 15:11 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER










PASSANDO
EM REVISTA O SENTIMENTO






GRUPO DO AMOR











Edição da CASA DO MÉDIUM

Rua Cinco de Julho, 1184
Indaiatuba — SP





ÍNDICE



Nota explicativa .......................................

I PARTE — SENTIMENTO E RELACIONAMENTO
Abertura ...............................................
1. Só o amor constrói .....................................
2. Ovídio explica .........................................
3. Dominação pelo medo ....................................
4. A desilusão ............................................
5. O encontro no etéreo ...................................
6. A despedida ............................................
7. Ralhando com Deus ......................................
8. Luz perigosa ...........................................
9. O pedido e a resposta ..................................
10. De pena em punho .......................................
11. Sem título .............................................
Homenagem .........................................
12. Nomes próprios .........................................
13. O olho direito .........................................
14. O joio e o trigo .......................................
15. O vulto sagrado do Senhor ..............................
16. O momento da graça .....................................
17. O bem-aventurado .......................................
18. O amor reconhecido .....................................
19. O desejo sagrado .......................................
20. O benefício da dúvida ..................................
21. O potiguar desavisado ..................................
22. O olvido ...............................................
23. Vergonha na cara .......................................
“Comentário” ......................................
24. O grito ................................................
25. Corpus Christi .........................................
26. Grito de guerra ........................................
27. A virtude maculada .....................................
28. O Grupo do Amor se despede .............................

II PARTE — SENTIMENTO E PROGRESSO
Apresentação ...........................................
1. O dia de hoje ..........................................
2. O querubim decaído .....................................
3. Lágrimas de felicidade .................................
4. O espanto do desgraçado ................................
5. O amigo do pandeiro ....................................
6. Desfazendo más impressões ..............................
7. O leopardo ferido ......................................
8. O amor de Deus .........................................
9. A felicidade terrena ...................................
10. Dor de cabeça ..........................................
Comentário ........................................
11. Pequeníssimo hiato .....................................

III PARTE — SENTIMENTO E RAZÃO
Apresentação ...........................................
1. O biltre ...............................................
2. O folguedo junino ......................................
3. O remorso ..............................................
4. O holerite rasgado .....................................
5. Sem compaixão ..........................................
6. Estranho planejamento ..................................
7. A promessa .............................................
8. A caneta suspensa no ar ................................
9. O bem-querer ...........................................
10. O lagarto ..............................................
11. O segredo do Polichinelo ...............................
12. O arremedo .............................................
13. O lápis ................................................
14. Os viciados ............................................
15. O menino esperto .......................................
16. O anzol do pescador ....................................
17. O cavaleiro apocalíptico ...............................
18. Mercúrio derramado .....................................
19. Reflexões ..............................................
20. Conflito armado ........................................
21. O aleijadinho ..........................................
22. Obrigado, Senhor! ......................................
23. Tirando dúvidas ........................................
24. O orador falido ........................................
25. Enredo arrevesado ......................................







NOTA EXPLICATIVA





O livro que se vai ler, Passando em Revista o Sentimento, recebeu o concurso de três equipes de uma mesma turma. A primeira se convencionou chamar de Grupo do Amor, por fazer incidir suas manifestações diretamente sobre o estudo do sentimento e de seu papel no relacionamento humano, quer de pessoa para pessoa, quer de plano para plano. Assim, essa equipe chega até a propor que o homem desenvolva o seu aspecto emocional para dele fazer o meio mais eficaz de entrar em contato com a Divindade.
Em seguida, outra divisão da turma, denominada de Grupo do Jornal, busca enfatizar que a vida, mesmo resultante de aparato de fatos e de conhecimentos arquivados e impressos no cérebro e no arcabouço material, os quais fazem prever reações e procedimentos para o futuro, se realiza no presente, momento atualizado da eternidade. Deste ponto de vista, encara o sentimento como a força motriz que direcionará o indivíduo para o reino do Senhor, criando-se, portanto, a necessidade de se efetuarem os desbloqueios psíquicos, para que se reformulem os objetivos segundo os princípios doutrinais do espiritismo, os quais se embasam no evangelho de Jesus.
O terceiro grupo, que participou sem se atribuir nome algum, intentou demonstrar como se pode dar a rebeldia contra as estruturas estabelecidas, para desfazer-se o primado absoluto da intelectualidade sobre tudo o que se refira ao conceito de vida como inferência do cérebro humano a respeito do existir. Nesse desejo de desvincular o procedimento da necessidade de perpassar todas as atitudes pelo crivo da razão, inovou, inclusive, no aspecto redacional, criando maneiras novas de apresentar os fatos psíquicos, em função de se justificarem as conquistas emocionais. A partir da análise de casos particulares, chega-se a conclusões de âmbito geral, de modo que a iniciativa possa significar valiosa exemplificação para o leitor.
Ao final, todo o grupo se reuniu para as últimas composições (desde o texto O Arremedo), momento em que se fazem comunicações de caráter universalizante, embora sob a forma de dissertações, apólogos, narrativas, crônicas ou matéria meramente jornalística, o que se determinou desde o início como característica das mensagens do Grupo do Amor, nome que acabou adotado para esta turma da Escolinha de Evangelização.
Era o que tínhamos para explicar. Melhores informações se encontram em diversas anotações espalhadas no conjunto das mensagens.
Que Deus se apiade de nós neste atrevimento!


As comunicações psicografadas desta turma iniciaram-se em 30.4, estendendo-se até 18.7.91. As transcrições mantiveram-se em ordem rigorosamente cronológica.
O médium sente-se na obrigação de informar que várias mensagens de caráter aparentemente pessoal foram mantidas pela equipe, através de manifestações específicas. Quanto às razões que determinaram tal procedimento devem ser buscadas nos próprios textos.
Devemos dizer, ainda, que, no mínimo, foi deveras emocionante o trabalho com esta turma. Felicidades a eles em sua missão!
Que Deus nos abençoe!






PRIMEIRA PARTE




SENTIMENTO E RELACIONAMENTO









ABERTURA





Aos poucos, iremos habituando-nos com o trabalho da mediunidade, de modo que não se atemorize o nosso instrumento por perceber que estamos imprimindo ritmo novo ao seu escrito. Aja normalmente e peça a Deus para amparar-nos a nós todos, em função da tarefa que teremos de desempenhar. Salve Nosso Senhor Jesus Cristo!
A nossa missão junto a esta pena tão diligente e carinhosa está intimamente ligada à aprendizagem que absorvemos na Escolinha de Evangelização e conta com o apoio eficaz e amigo do nosso orientador Ovídio, partícipe do grupo de mentores da entidade.
Quanto aos aspectos doutrinários que nos cabe desenvolver, estão ligados ao procedimento dos encarnados relativamente ao seu domínio emocional, de sorte que, prevemos desde já, muitas lágrimas deverão enxugar-se até que tenhamos logrado atingir o término de nossas manifestações.
Vamos principiar abordando as formas do amor humano com relação ao próximo, ilustrando as dissertações com exemplificação concernente, extraída dos arquivos da instituição ou retirada diretamente do acervo de cada membro, o que deverá ocorrer durante o desenvolvimento das tarefas, por ocasião das reuniões para discussão e elaboração das mensagens.







1

SÓ O AMOR CONSTRÓI





Preso pela paixão ao mundo da carne, Natanael não queria deixar a forma humana para não ter de submeter-se a novo tratamento de choque, o que, invariavelmente, acontecia toda vez que retornava ao plano espiritual.
Vendo seu corpo extenuado e prestes a tornar-se carcassa irrecuperável, em espírito, Natanael compareceu ao etéreo para intentar demover os orientadores de sua intenção de desligá-lo do mundo.
Infeliz, argumentava que era a terceira tentativa que se frustrava de levar a cabo união com determinada criatura com quem combinara, no plano espiritual, dar guarida a três entidades necessitadas de amor e compreensão. Não via em que sua partida pudesse auxiliar na consecução de seus projetos de encarne.
Natanael foi acolhido com o máximo de boa vontade junto a seus orientadores, que ponderaram longamente a respeito das condições morais que estava propiciando às entidades com quem se comprometera. Inicialmente, a mulher que escolhera para amasiar-se não era exatamente a figura com quem havia estabelecido os vínculos no plano superior. Equivocara-se por ardil sutilmente elaborado por antigos desafetos, de modo que a esposa prometida para cumprir com ele o projeto de dar agasalho, assistência e proteção às entidades necessitadas, estava imersa em dúvidas atrozes a respeito de seu próprio ato de vida, desamparada diante da infelicidade de ter-se desencontrado de seu prometido. A sua doce cara-metade estava a pique de total desarvoramento, principalmente porque se achegara demasiado próxima de sua pessoa e não fora reconhecida, por ter-se o amigo deixado envolver-se pela fantasia.
Era tarde para recomporem-se as condições ideais do encarne, de sorte que seria preferível dar curso ao desligamento perispiritual já iniciado, mesmo porque, para total sucesso do relacionamento e promissor futuro, o invólucro físico estava inteiramente prejudicado, tendo em vista as maciças doses de narcóticos que injetara em suas veias.
Natanael correra riscos e sabia muito bem disso, de forma que, para recuperar-se em parte diante do fracasso desta última tentativa, deveria envidar esforços para superar as dores que o tratamento em caráter intensivo iria provocar, a fim de volver rapidamente ao trabalho socorrista, na qualidade de protetor daquela que deveria ter desempenhado o papel de esposa, para poder encaminhá-la para núpcias com jovem que ele designaria, a fim de promover o ingresso na carne daquelas entidades que já se encontravam em fase de preparação e ajustamento perispiritual.
Não perturbasse a atuação de seus maiores, pois novos planos tinham vindo substituir aquele que sua incúria fizera abortar.
Apaixonara-se, sim, perdidamente, mas por um fantasma do passado transvestido de figura amiga e consoladora. Não fora capaz de perceber que a mulher que lhe havia sido destinada não poderia conduzi-lo para vícios e descaminhos morais de tanta perversão. Abaixasse a cerviz para reconhecer que errara.
Naquela tarde de outono, Natanael deixou de debater-se para conservar a vida e, aos vinte e cinco anos de idade, deixou o ambiente da Terra para adentrar, em tristeza acentuada, as trevas da desesperação.







2

OVÍDIO EXPLICA





O orientador do grupo pede a palavra para deixar registrado que as comunicações terão caráter bem variado. Os temas, contudo, estarão vinculados à doutrina espírita, nem se poderia solicitar de alunos da Escolinha outro tipo de trabalho, especialmente porque o curso se destina à formação de socorristas.
Vamos, portanto, atendendo aos reclamos curriculares, dar a palavra aos nossos amiguinhos, reservando-nos o direito à censura prévia e ao acompanhamento das transmissões, para evitarem-se possíveis quedas de freqüência que impediriam o contato entre os planos.
Pedimos aos nossos leitores que compreendam a nossa proposição de trabalho, sabendo, por antecipação, que se dará maior atenção aos aspectos emocionais, emotivos ou sentimentais do relacionamento entre os seres. Caso algum de nossos novéis mensageiros se desgarrar de nossas premissas, evidentemente, é para tratar de algum ponto correlato, pertinente às causas ou efeitos dos procedimentos sob o amparo da paixão, do amor exacerbado ou do ódio destruidor.
Vamos orar para que o empuxo inicial, fundamentado em natural entusiasmo diante da possibilidade de trabalho tão responsável, mantenha acesa a chama da boa vontade e o ardor da esperança.







3

DOMINAÇÃO PELO MEDO





Há muitos anos atrás, poderosa força subjugava a humanidade, que se via presa de seus impulsos molestos relativos à presunção da presença diuturna das falanges do mal no atormentar da consciência, a ponto de muitos só se manifestarem como seres humanos no momento de se elevarem mentalmente para sua religação com a Divindade. Cria-se na existência e na proteção espiritual, pois se afigurava aos encarnados que anjos havia para dar sentido ao amor divino que se repartia pela natureza e que todos eram obrigados a admitir. No entanto, a presença do Criador não se sentia a todo momento, como se a criatura se visse desamparada e incapaz de defender-se da malignidade das entidades infernais. Na verdade, Deus reservava-se para os cultos; os demônios erravam pela face da Terra e, quando resolviam atormentar os humanos — o que ocorria duzentas vezes ao dia —, espantavam os pobres anjos de guarda, que se viam impotentes para o enfrentamento devido. Na concepção das pessoas daquele tempo, as forças do mal equilibravam a balança da justiça, de modo que o homem se via, realmente, presa de sua volúpia e poder.
Esse descalabro ideológico surgiu na Idade Média, persistindo até hoje na mente de muitas pessoas que não conheceram jamais a benignidade do Senhor por se terem deixado embalar por tais concepções, agindo sempre em consonância com elas. Vida e morte aproximaram-se e as trevas exteriores serviram para confirmar, de modo vigoroso, toda a teoria que se infiltrava para sua consciência. Ao agirem mal, reacendiam a noção do maniqueísmo telúrico de suas personalidades, embasando suas reações como necessárias, para que pudessem cumprir o desiderato das entidades que lhe pareciam como únicas a quem devessem respeito, para poderem fugir, de algum modo, ao sofrimento de sua perseguição. Tornavam-se, assim, instrumentos do diabo.
Quando Kardec, sob o amparo das forças do bem, realiza a suprema obra da codificação espírita, estabelece um como que desafio ao espírito desses seres habituados a agir livremente. É bem verdade que muitos fugiam já da ascendência poderosíssima daquelas entidades, cultivando a consciência longe da influenciação sentimental exercida à força pelas diferentes religiões. O protestantismo houvera sido brado de alerta para se estabelecer aproximação mais efetiva da Divindade, exigindo de seus prosélitos procedimento coerente com a moral social, diferentemente da fé católica, que, ao temor de perder seu poder de direção das consciências, propugnava, sob o influxo da força e das ameaças, que os humanos tivessem por norma de conduta os ditames vindos de Roma e que eram interpretados como a própria palavra de Deus, por meio do subterfúgio da infalibilidade papal.
Pois bem, Kardec rompe com essa tradição e se coloca frontalmente em oposição à crença e à fé dogmáticas. De início, confundiram-no com o materialismo ateu mais contundente e feroz em relação às instituições religiosas. Depois, resolveram que era o representante dos infernos e do poderio do mal. Finalmente, tese que persiste até o momento no âmbito da igreja que se sente ameaçada, é tido como perturbado manipulador de forças absolutamente físicas mas não inteiramente compreendidas; é o ponto de vista da parapsicologia, que sonega a possibilidade do relacionamento dos encarnados com as entidades energizadas por essência puramente imaterial, fluídica ou espiritual.
Mutatis mutandis, o homem ainda agora se vê às voltas com o desconhecido de caráter malévolo, pois tudo que se arvora proveniente do espaço espiritual se diz irregular, inconveniente, eivado de erro, impossível de ocorrer. Esta própria mensagem de esclarecimento por via de análise histórico-psicológico-social, caindo sob as vistas dos que se presumem sábios do etéreo, engajados nessa filosofia de que somente Deus é capaz de romper as barreiras existentes entre o plano espiritual e o material, os quais ainda acreditam na existência de inferno onde seres malignos acicatam eternamente os que não souberam pautar a conduta pela sua deles, sofrerá a crítica mais acérrima, na presunção de que o nosso escrevente esteja mistificando ou recorrendo aos poderes infernais para desvio da mente dos leitores dos princípios e leis que julgam ver derrogados neste intercâmbio que promovemos.
Cegos para o socorrismo que se camufla em nossa tentativa de elevar o pensamento humano para a realidade da existência post-mortem, só saberão ver, nos nossos escritos, defeitos e intenções de perturbação e dominação.
Caro amigo leitor infenso às tentativas de subversão da ordem pelos que temem perder os fiéis que os sustentam e mantêm, vimos à sua presença para fazer com que reflitam maduramente a respeito de suas atitudes diante da vida e da existência fundamentadas exclusivamente nos sentimentos. Se, para Kardec, a fé deveria ser raciocinada, para nós, deve, ainda mais, ser analisada, avaliada e restringida pela razão à expressão de sua pureza mais desligada possível de qualquer sentimento de caráter pessoal. O medo, a insegurança, a incerteza que se infiltraram em sua consciência por séculos de manutenção daquele estado de ansiedade diante da incógnita de futuro sem esperança de aperfeiçoamento, alicerçados por períodos de erraticidade e de sofrimento em que os malfeitores insidiosamente se fizeram figurar com os aspectos tétricos da imagética demoníaca, devem ser colocados sob o crivo da razão iluminada pela concepção espiritista da existência. A leitura das obras fundamentais da codificação, deste modo, adquire relevância transcendental para a eliminação desse terror atávico que jorra dos sentimentos e se expande por todos os setores da personalidade.
Havemos de nos permitir, neste final de texto, de nos congratular com inúmeras entidades encarnadas que vieram para a Terra com a sublime missão do relacionamento com as forças espirituais encarregadas do municiamento doutrinal, por meio da comprovação pelo fato mediúnico de que o contato não é só possível como também necessário.
Aos amigos médiuns e demais trabalhadores do espiritismo cristão, a nossa comovida homenagem diante do desprendido trabalho de cooperação na salvaguarda da vida como bem de inestimável valor para prodigalizar às criaturas de Deus impostergável oportunidade de progresso. É importante para nós incentivar o espírito de solidariedade de nossos irmãos espiritistas, pois será através deles, unicamente, que a doutrina poderá disseminar-se a ponto de sufocar as reações contrárias. Muito ainda se terá de realizar no campo da divulgação e da evangelização, mas, presentemente, neste cantinho do mundo chamado Brasil, a árvore está carregadinha de flores e os primeiros frutos começam a despontar. Nesse aspecto, o sofrimento do nosso mediador maior, a querida personagem pedro-leopoldense, o nosso estimadíssimo Chico Xavier, terá tido o privilégio do pioneirismo na indicação exemplar do caminho que se deverá trilhar, para se poder dar seguimento ao serviço do Senhor.
Sejamos, pois, capazes de reconhecer os méritos de nossos médiuns, é o que conclamamos aos amigos da Escolinha e honremos o seu trabalho, buscando compensá-los de seu esforço e dedicação. Oremos nós mesmos por eles, pelo seu esclarecimento e pela sua valorosa decisão de enfrentar os próprios fantasmas e aos seus criadores, que, sem sombra de dúvida, persistirão em seus ataques e conchavos.
Que Deus se apiade deles e tenha misericórdia para com nós todos!







4

A DESILUSÃO





Reginaldo era filho adotivo. Desconhecia, entretanto, o fato, já que havia surpreendente semelhança física com os demais membros da família. Agia, assim, com toda a naturalidade, sentindo certos ciúmes relativamente aos irmãos mais moços, que mereciam dos pais mais atenção e carinho.
Ao atingir a idade adulta, tendo tido necessidade imperiosa de tratamento que envolvia rigoroso exame de sangue, descobriu, para surpresa sua, que o tipo apontado pela ciência contrariava os que sabia serem os de seus pais.
Não houve como esconder-lhe mais os fatos. Chorosos, os pais narraram-lhe as peripécias do início do seu casamento e a intenção frustrada de um primeiro filho que abortou aos seis meses de gestação. Família espírita de larga tradição, tendo programado o feliz advento de certa criatura para ser cuidada pelo casal de jovens que se iniciava na vida, não se quis fugir ao projeto e todos concordaram em que se adotasse criança com a idade que teria a infeliz criatura natimorta. Ouvidos os mentores no centro, aconselharam prudência mas não colocaram obstáculos de grande monta, chegando alguns ao elogio fácil do desprendimento a que se submeteriam.
Os jovenzinhos, frustrados em seu intento inicial e temerosos de que não mais pudessem procriar, tendo em vista parecer médico nesse sentido, concordaram com a alternativa da adoção, restando para ser resolvido como ponto crucial a necessidade ou não de se revelar e quando ao filho adotivo a sua condição, principalmente porque era sabido, desde aquela época, que os tipos sangüíneos não coincidiam.
No entanto, o tempo foi passando, a criança integrou-se ao ambiente familiar com perfeição, o amor cresceu e a necessidade da revelação foi sendo adiada indefinidamente.
Eis que se viu Reginaldo, de repente, diante de pais adotivos a rogarem-lhe compreensão para os fatos da vida. Nada havia para Reginaldo usar contra o casal de benfeitores. Ao contrário, pelo que se lembrava, só coisas absolutamente boas lhe haviam sido proporcionadas pelos pais, avós e irmãos. De resto, estes últimos ignoravam por completo sua condição de adotado, tendo havido necessidade de séria reunião familiar para se colocarem todos a par da situação, a fim de se evitarem desconfianças dos que eram filhos naturais.
Foi período muito amargo para todos, principalmente para o jovem egresso da adolescência e que pretendia iniciar sua carreira como advogado. Durante algum tempo, se viu perdido em mundo de desilusões e de receios. Como fora criado segundo orientação espírita tradicional, conhecia, por haver lido e meditado, a possibilidade de ter, sob o ponto de vista espiritual, íntimo relacionamento cármico com as pessoas que o agasalharam. Chegou a imaginar que o pequeno ser abortado o tivesse sido para possibilitar-lhe ingresso no seio da família, uma vez que só assim é que lograra acesso. Mas tal pensamento afastou logo da cabeça por acreditar que o caminho para tal poderia ter sido o mesmo dos demais irmãos. Queria acreditar-se de mesma origem, mas principiava a ver o desenrolar dos fatos com olhos de intruso.
Aí principiou sua mente fase de desconfianças relativamente às suas condições intelectuais e emocionais. Se o equilíbrio que via na família era fruto de entidades adequadamente bem formadas e colocadas umas ao lado das outras por equiparação dos aparatos físicos e psíquicos, como seriam seus pais verdadeiros: criminosos, assassinos, desqualificados, procurados pela polícia, ladrões?... Não viu em seu desempenho escolar, sempre voltado para realizações de alto nível, mais que a nobre influenciação dos tutores e demais membros que sabiam sua verdadeira origem. Reconhecia-se inteligente, mas não se desenvolvera ainda suficientemente para ponderar com serenidade a respeito dos fatos da vida. Estava agora amadurecendo sob o impacto de profunda desilusão.
Principiou a investigação de seu nascimento pelas informações de seus pais. Soube que o responsável pelo parto fora o mesmo médico que efetuara a frustrada délivrance. O pai lhe forneceu alguns indícios de que se tratava de pessoa ligada a boa família, vítima de violência sexual e que não desejava que o fruto do crime viesse a turbar a hegemonia racial.
Reginaldo não gostou das informações, mas teve que sujeitar-se à realidade dos fatos. Foi em busca do médico da família e descobriu, contrariado, que desencarnara havia cinco anos. Buscou o hospital-maternidade que supunha ter sido o local de seu nascimento e lá encontrou antiga enfermeira, que lhe pôde assegurar que, na data registrada em sua certidão como a do nascimento, não só não havia ocorrido qualquer parto no hospital, como não constava registro de ter o médico sequer dado plantão naquele dia. A jovem senhora, mocinha na época, lembrava-se bem de que o doutor em questão gostava de que todas as suas clientes fossem identificadas com rigor, exigindo dados outros que não os constantes do fichário normal. Além disso, solicitava cópia fiel de todos os elementos porque, professor universitário, pretendia embasar suas aulas com situações vividas e comprovadas em sua experiência médica. Se fosse o jovem à faculdade, talvez lá pudesse encontrar o arquivo esclarecedor.
Deveras, Reginaldo obteve informes completos de todos os partos realizados ou assistidos pelo médico responsável, estando todos os prontuários em absoluta ordem. Mas não encontrou indício de qual pudesse ter sido o seu, uma vez que, na data de seu aniversário ou em datas próximas, só havia o registro de partos de meninas. Suspeitou de que os arquivos só contivessem notícias de casos ocorridos em hospitais e, de fato, descobriu que assim era. Não havia nenhum atendimento particular em casa de família.
Em sua mente, delineou o seguinte quadro: a família, que repudiava a criança, chamou parteira para efetuar o parto, solicitou a presença do médico para acompanhamento e assistência, avaliou a possibilidade de adoção por meio do facultativo, que registraria o filho diretamente no nome dos pais adotivos, evitando-se assim o comparecimento diante do juizado e demais percalços burocráticos, ao mesmo tempo que daria a mais perfeita ilusão de que a criança pertenceria à família cujo nome se lesse na certidão. Por outro lado, sua mãe verdadeira poderia manter-se distante das vistas dos curiosos todo o tempo da gestação, alegando-se que estaria em viagem de estudo ou de recreio. Nesse ponto, sua imaginação perdia-se em fabuloso emaranhado de situações que sua fantasia ia burilando para dar verossimilhança à sua suposição. Até que os aspectos rocambolescos da história lhe agradavam...
Mas a verdade revelar-se-ia muito outra. Ao se achegar à família do médico para consulta de seus apontamentos particulares, foi muito mal recebido. A grave senhora que o atendeu, fria e altiva em sua postura distante, mal conseguia conter certo tremor nas mãos, ao reconhecer, de pronto, a figura de alguém que de muito perto se relacionara um dia com seu marido. Ao sabê-lo advogado recém-formado, solicitou-lhe que procedesse em harmonia com as diretrizes do direito e que requeresse em juízo vistas ao acervo particular do doutor. Por iniciativa dela, não lhe seria permitido vasculhar os seus guardados. Insistisse e a polícia seria chamada.
A postura glacial da senhora e a insegurança emocional que intentara disfarçar, mas que se revelara na total inconsistência de tomar tão à ponta de faca mera consulta protocolar, alertaram o jovem causídico para a possibilidade de que as atividades médicas do professor poderiam ocultar crimes e deslizes no âmbito da assistência que lhe cabia propiciar à humanidade. O nervosismo contido da viúva era indício certo de que deveria insistir, no sentido de fazer valer o seu direito de conhecer a sua origem.
O destrambelhado conselho da senhora pareceu-lhe o caminho seguro para conseguir realizar as suas aspirações. Buscou aconselhamento com juiz de vara de menores, que o remeteu para a vara cível, devidamente orientado para que a petição lhe fosse deferida.
Realmente, logrou obter do juiz que o atendeu despacho favorável. Em tal dia e hora, acompanhado de oficial de justiça, na companhia do advogado que lhe servira de veículo para a sua causa, compareceu à casa da viúva para vistas ao arquivo. Ali foi recepcionado pelo frustrado advogado da família, que não obtivera sucesso em sua petição para vedar o acesso do jovem às anotações e que lhe informava que todo o acervo fora destruído pela senhora, para subtrair-se à ordem do juiz.
O caso teria ainda alguns desdobramentos de caráter policial até que o nosso amigo se viu coagido a perdoar a destruição da fonte que lhe daria afinal condições de ver concretizado seu desejo de conhecer a sua identidade real.
Arrolados como testemunhas, os pais adotivos foram admoestados pelo juiz, que só não os incluiu em processo por crime ideológico por julgar prescrito o ato.
O caso todo tornou-se conhecido no fórum da cidade e acabou por despertar a atenção da imprensa, que viu a possibilidade de levantar alguns escândalos capazes de vender muitos exemplares a mais. Tudo se encerrou, no entanto, como fogo de palha, com a serena atitude de Reginaldo, que se declarou conformado em não descobrir o que tanto parecia afetar a velha senhora.
Nesse meio tempo, as forças espirituais tomaram algumas providências para resguardar o nosso herói de mais profundas decepções, de modo que lhe possibilitaram, à vista da repercussão de seu caso, que muitos clientes se apresentassem em busca de seus serviços profissionais. Com tanta notoriedade, firmou em sua mente a necessidade de pautar todo procedimento com absoluta propriedade e autodomínio, para favorecer carreira brilhante junto aos tribunais. Reginaldo esquecia, assim, aos poucos, as causas de suas preocupações.
Em casa, com os irmãos, foi restabelecendo a antiga camaradagem de mais velho a quem se atribuem certas responsabilidades e compromissos. De início, houve algum retraimento natural de quem não se sente bem por desconhecer as reações daqueles com quem se convive. Devagar, entretanto, as coisas foram retomando a antiga feição e a paz familiar foi restabelecida. Toda essa agitação, contudo, levara dois longos e penosos anos de adaptação pelos pais, que se culpavam de modo contundente pelo desespero que viam ter-se apossado do querido filho. Mas o tempo sepulta todas as dores, principalmente se receber as salutares e odoríficas emanações do incenso dos sacrifícios, queimado no sacrossanto fogo do mais puro amor.
Esse período de desilusão passou como tudo na vida e Reginaldo, após vinte e cinco anos de serviços prestados à causa da justiça, pôde requerer aposentadoria precoce e proporcional para reger cátedra universitária em faculdade sediada na capital do país. Seus méritos foram reconhecidos, mercê de sério trabalho e mediante a publicação de coleção de obras absolutamente idôneas e fundamentadas no mais rigoroso espírito do Direito. Sua vida profissional ainda lhe prometia sucessos no campo da jurisprudência e das leis.
Nesse ponto da jornada, contudo, sofreu abalo que o remeteu diretamente às aflições da época da revelação de sua condição de adotado.
Em longa e sofrida missiva, postumamente, revelava-lhe a severa esposa do médico que o assistira no parto todo o drama de sua origem. Não fora outro o seu pai senão o próprio doutor, seduzido por jovem cliente que o procurara no intuito de estabelecer íntimo e apaixonado relacionamento. A criança, pois na ocasião não tinha mais que quinze anos, era filha de abonada família da cidade e se engraçara pelo jovem médico, por ocasião de visita sua em atendimento domiciliar, por estar ela acometida de mal passageiro. Evidentemente, a esposa não conhecia com perfeição as peripécias dos encontros e as minúcias do relacionamento. Sabia que o parto havia sido feito às escondidas e que a jovem criatura deixara a vida em troca da sobrevivência da criança que trazia ao mundo. Todo o caso foi rigorosamente preservado em segredo, até mesmo para a família da menina, que, de fato, acreditou ter sido ela vítima de estupro, segundo informações confirmadas pelo médico, que se submeteu ao jogo das inverdades para manter o relacionamento amoroso. Não contava com a morte da jovem mãe, de modo que não pôde sufocar o desespero, caindo em contradições perante a esposa, terminando por suplicar-lhe o perdão. Esta estabeleceu como condição que a criança fosse imediatamente dada em adoção para família residente em outra cidade e absolutamente desconhecida. Ignorava que não fora atendida e que o marido pudera acompanhar o desenvolvimento do filho durante largo período de sua vida. Cumpria tardiamente o dever de revelar-lhe a verdade, para que ficasse ele ciente dos fatos e não se sentisse ela perseguida pelo remorso. Da vergonha estava definitivamente livre.
Junto com a missiva, enviava também todas as anotações técnicas relativas à gestação difícil e ao parto dolorosíssimo. Incluía-se ali o nome da mãe e o apelido da família e se rogava que as investigações não fossem adiante, para que mais pessoas não viessem a sofrer a desdita de receber de chofre angustiantes novas que poderiam desestabilizar relacionamentos rigorosamente equilibrados, principalmente porque a família de sua mãe recebera a informação de que o parto que a vitimara tivera outra vítima, de modo que não se suspeitava da existência daquela personagem. Esclarecia a senhora que os avós eram falecidos e que restavam dois tios e alguns sobrinhos. Ele que investigasse a distância para confirmação.
Com lágrimas nos olhos, longe de testemunhas, Reginaldo incinerou todos os documentos, registrando o nome sagrado de seus parentes no fundo do coração, para encontro no etéreo e esclarecimento final de seu destino. Por essa época, sua formação espírita completara-se e ele sabia que sua consciência, no que toca aos anseios espirituais, tranqüilizara e apontava para superior destinação.
No fundo de seu coração, sentia a vida como beneplácito que lhe fora doado pelo Senhor e que os dramas dos seus verdadeiros pais faziam parte de seus roteiros cármicos, tendo compreensão cabal de que só a prece mais comovida poderia demonstrar de modo inequívoco a sua felicidade.
Havia muito, perdoara a quem lhe trouxera os dissabores de suas desilusões. Orava, agora que conhecia os fatos, para que, de algum modo, pudesse vir a ser arrimo para o soerguimento deles. Agira um dia apaixonadamente e se desesperara. Reconhecia agora que a história do homem comporta o sofrimento e a dor com o objetivo da redenção. Seus sentimentos, percebia dominadores e altaneiros, mas buscava contrabalançar as emoções com a serenidade de quem admite a razão como veículo precioso para a compreensão da existência. Vislumbrava a virtude pairando acima como a indicar o caminho para o procedimento, não como conquista ou superação, mas como farol indicativo do ideal a atingir. Queimava o passado naquelas folhas de papel mas revivia os fatos como acontecimentos presentes. Aceitava o futuro como fardo a carregar e enxergava na fé soberana na misericórdia divina o ponto de apoio para ascender ao Senhor.
À noite, recolhido ao leito, solicitou permissão a seus guias para encontro com os pais no etéreo em estado sonambúlico.

É esse encontro que iremos narrar em nosso próximo capítulo.







5

O ENCONTRO NO ETÉREO





Pais e filho se encontraram de modo reservado, protegidos dos vampiros, em virtude de extenso campo de força criado e mantido por entidades amigas que tinham interesse em resguardar o grupo, para progresso de todos.
É assim que agem os protetores quando pretendem isolar alguém da má influenciação a que está habituado. Em geral, as providências que se exigem vão bastante além, ou seja, visam ao amparo fluídico dos obsidiados ou dos obsessores em resguardo, para que possam obter momentos de lucidez para o efeito da recomposição que se almeja.
No caso do nosso Reginaldo, evidentemente, as forças fluídicas de que era dotado lhe eram suficientes para suster-se por si só, apesar da desorganização provável que sofreria mediante a sucatagem de seus pruridos sentimentais. Em seu pensamento mais íntimo, não compreendia as razões que levaram os pais a se afastarem do filho, principalmente por saber-se muitíssimo bem dotado no campo material. Era o mistério que desejava ver resolvido.
No que concernia, entretanto, ao médico e à jovem mãe, tudo se passava de modo diferente.
O doutor apresentava-se aturdido com os fatos espirituais, não totalmente refeito dos ataques das trevas que diversos abortos induzidos provocavam. Por outro lado, embora bom facultativo, contudo, não se afeiçoara a um único paciente de maneira sadia e nobre, objetivando sempre completo domínio de caráter material e intelectual. Frio e calculista, jamais se deixara envolver em qualquer sentimento de caráter elevado. O único mérito que trouxera da anterior encarnação foi a seriedade com que se aplicou aos estudos, tendo profissionalmente realizado curas potencialmente prodigiosas, não fora a sua intenção de se sobrepor aos demais, para progresso em sua carreira. Sua ambição era desmedida, tanto que o supremo ato do desvelamento à esposa da verdade quanto ao seu caso amoroso só se deu no temor de que algo pudesse vir a perder se o lar se desmembrasse. Até o fato de ter doado o filho a família conhecida se revestiu de extrema sagacidade, pois poderia controlar o crescimento do fedelho, impedindo qualquer laivo de desejo de possíveis direitos, tanto que pouco freqüentou aquela casa, passando por lá tão-só em situações de atendimento médico, solicitando informações a respeito do filho apenas protocolares. O grande amor de sua vida, a amada criatura ali presente não significara mais que instante de paixão e de prepotência do macho afagado pelo oferecimento da fêmea no cio.
Todas essas informações foram passadas para a mente do filho por corrente fluídica energizada por entidade de proteção do encontro, para que os entendimentos se dessem de modo perfeito. Era preciso que cada qual conhecesse as intenções dos demais de modo a não se iludirem com julgamentos errôneos. Bastava-lhes o próprio fardo.
Amélia, a jovem criatura ali vestida com as carnes com que se debateu em seu último lance de vida, rogava, angustiada, perdão a ambas as criaturas. Via-se culpada pela sua intromissão no âmbito moral do médico, que tivera como conseqüência tribulações inúmeras durante todo o restante período de seu encarne e mesmo após o desenlace, nas perseguições que sabia terem sido executadas por sua causa, uma vez que a família não perdoara o malfeitor que a violentara. Ao ser reconhecido pelas entidades de seu relacionamento, aí o rufião se viu ainda mais envolvido com energizações de caráter negativo, em ondas negras a assediá-lo constantemente. Só nos últimos tempos é que Amélia conseguira atenuar os dardos mortíferos do ódio dos familiares, muitos dos quais teve o desprazer de sentir em sua própria constituição perispiritual. O que atenuava sobremodo a sua peregrinação pelas trevas era o verdadeiro amor que sentira pela criatura a quem tão impulsiva e irresponsavelmente se entregara. Quanto ao filho, sutis e antigos laços os prendiam, desde inúmeras encarnações anteriores. Devia-lhe novo encarne regenerador e se propusera a propiciar-lhe, mesmo sabendo que não lhe caberiam os deveres de mãe por injunções cármicas que desconhecia. De qualquer modo, abraçou o filho, comovida, em meio a algumas lágrimas felizes por sabê-lo digno e honrado no campo corpóreo.
Reginaldo ficou grato por ter tido a oportunidade do encontro e solicitou compreensão para o fato de ter sido ele e não outro o escolhido para tornar-se filho adotivo. Entendia as razões da mãe, mas não atinava com as causas que lhe imputavam tal provação.
Neste ponto, desfez-se o encontro e Reginaldo foi recambiado ao corpo denso para refazimento energético e esquecimento do que se passara. Recordar-se-ia de que tivera o ensejo do encontro, reconheceria até em foto habilmente conseguida junto à família, para quem ofereceu seus préstimos de advogado, a figura entrevista em sonhos, mas só essas seriam as impressões que o fariam ter a certeza de que fora atendida a sua súplica. A sua perquirição final a respeito das razões de seu peregrinar expiatório não seria respondida tão já. Ele que fosse capaz de analisar a sua vida, passo a passo, para obter algum tipo de resposta indireta.
De fato, aos cinqüenta e um anos de idade, solidamente posto na vida, ocupadíssimo com as aulas a preparar e com as pesquisas em andamento, ainda fora apaniguado por mediunidade de caráter psicográfico, que espontaneamente lhe foi revelada em sessão de estudos evangélicos. Jamais suspeitara que fosse dotado dessa faculdade, havendo até realizado algumas tentativas frustradas em épocas remotas de sua adolescência. De repente, explode-lhe a possibilidade de contatar o plano etéreo de maneira cabal e segura.
A cultura de que era portador e a seriedade com o trato das coisas fizeram-no, de chofre, o mais importante mediador do grupo, a ponto de deixá-lo absolutamente confuso e envergonhado diante dos velhos parceiros de mesa. Entretanto, as suas comunicações, embora tecnicamente perfeitas, só revelavam espíritos sofredores, necessitados de esclarecimentos e orientação. Esse seria o seu labutar até o final de seus dias. Quando, por ponderável razão, não comparecia a alguma reunião, era brindado com carga redobrada na seguinte, de modo que, ao descerrar de sua vida, pôde atender mais de cinco mil comunicantes, a quem endereçava as mais respeitáveis palavras de estímulo e consolo. Jamais se ouviu de seus lábios qualquer manifestação de censura ou alheamento à dor do irmão socorrido.
No tribunal da vida, fora advogado dos fracos e ofendidos. Na cátedra universitária, dedicara-se ao direito social das minorias e dos oprimidos. Em sua bibliografia, figuravam vários projetos de lei encaminhados aos deputados, senadores ou mesmo ao poder executivo, em que defendia diversos tópicos valiosíssimos para preservar o direito de igualdade entre todos, em bem sucedida tentativa de proteção aos pobres e deserdados. Não era propriamente dito um idealista, mas via na causa dos menores o meio mais eficaz de se proceder às profundas reformas sociais que tornariam a pátria mais forte e mais feliz.
Antes de desencarnar, considerou a sua vida e viu, finalmente, no extrato de seus atos, a causa de ter assumido a matéria em situação de inferioridade social. É que viera com missão e não por provação. Se sofrera, imputava ao seu orgulho o ter-se ferido em seu amor-próprio, pois, enfim, reconhecia em seus pais de amor os verdadeiros, como se tivessem sido eles os que, deveras, o haviam concebido e gerado. Em preces, deixou-se envolver por dulcíssimo canto vindo de outras plagas e seu espírito se desenovelou suavemente das presilhas materiais, no exato momento em que, no centro a que se acostumara a ir, dava entrada para doutrinação choroso e arrependido ser vestido de branco, à maneira dos médicos na Terra.
A vida prosseguia nos dois planos e a vontade de Deus mais uma vez se realizava.







6

A DESPEDIDA





Por aquele tempo, Leonel adejava de um lado para o outro, na expectativa de poder ser atendido pelo plano espiritual. Crente de fervorosa fé, havia passado a vida peregrinando pelos locais sagrados do ministério do socorrismo, sempre com palavras de estímulo e reconforto, com a bolsa recheada e farta, a distribuir valores na justa medida da precisão do atendido. Era emérito pregador e, do alto das tribunas, enviava às multidões sedentas de conhecimentos, os ensinos mais sofisticados, com a correção do mais hábil exegeta, a interpretar para os ouvidos broncos a musicalidade das eternas harmonias. Praticava o que dizia e, se partícipe fora de alguma congregação religiosa, seria guindado à condição de santo ainda em vida.
Aos oitenta e cinco anos de idade, no entanto, Leonel dependia da assistência dos outros e ansiava pelo exato momento em que as forças do etéreo viriam desligá-lo do plano material. Comer e beber tornaram-se verdadeiros sacrifícios, dada sua pronunciada deficiência visual. A locomoção só se dava em carrinho de rodas e as forças nos braços abandonaram-no, de modo que dependia da boa vontade dos enfermeiros para ir a qualquer lugar dentro do hospital. Os dias de visita eram particularmente maravilhosos, mas deixavam rastros de tristeza, por não poder o velho contribuir para a salvaguarda da pureza dos jovens, tendo em vista a impossibilidade que sentia de discorrer a respeito da virtude, do amor e do bem.
Não lhe restava alternativa: era aguardar pacientemente a vinda de seus benfeitores espirituais. Chegou até a pedir a presença deles, mas percebeu logo que não estava sozinho, pois lhe foi assoprado aos ouvidos que não lhe faria bem ao progresso expressar qualquer desejo que não fosse o de ver realizada a vontade do Pai.
Leonel delirava à noite, acometido por febre que regularmente o visitava e via cenas estranhas em que, transvestido em roupas de mulher, perseguia na escuridão vampiros e duendes que, inopinadamente, apareciam e desapareciam para seu tormento. Acordava pela manhã encharcado de suor, rouco de tanto vociferar, mas lúcido e perfeitamente cônscio dos terrores.
De início, assaltou-lhe a idéia de que era o prenúncio de sua existência no etéreo. Consultou intimamente aos amigos da espiritualidade, obtendo vagas respostas a respeito de carmas, de progresso, de vida em débito, de provação, que não lhe satisfaziam a curiosidade. Com muita dificuldade, convocou amigos do centro onde servira por mais de sessenta anos, para íntima sessão de consulta para definitivo esclarecimento do caso. Fez-se a reunião, mas a resposta continuou vaga, difusa, imprecisa.
Leonel conformou-se, mesmo porque, das palavras ditas, menos de dez por cento lhe foi possível ouvir e entender. Estava tão surdo quanto cego. Bom que, em vigília, preservava sua lucidez mental, de sorte que era bem capaz de localizar-se espacial e temporalmente.
Nessa vida vegetativa, permaneceu durante mais de dez anos, vindo a falecer aos noventa e sete anos de idade, por pura inanição, já que seu organismo não mais conseguia suster-se sequer pelos alimentos que lhe eram diretamente injetados na veia.
Na hora do desenlace, pediu e conseguiu permissão para poder despedir-se de seus parentes e amigos. Sendo assim, o momento mais oportuno seria em dia de visita, de modo que maior número de pessoas poderia estar presente.
Para surpresa de todos, no momento mesmo em que chegava seu único filho amparado pelos netos, abriu os olhos e claramente pronunciou algumas palavras, revelando que era chegado o momento em que partiria. Pediu a gentileza de que os que esperavam subissem até o quarto, pois desejava despedir-se de todos. Não havia mais ninguém, mas a curiosidade reuniu os visitantes dos outros pacientes, de modo que logo a dependência hospitalar ficou cheia.
Leonel, com voz clara e forte, irreconhecível para os que dele trataram nos últimos tempos, principiou seu derradeiro discurso pela responsabilidade de viver. Assumiu postura bíblica de iluminado e longamente discorreu a favor de humanidade mais pacífica, mais ordeira e mais justa, para propiciar às almas as oportunidades ideais para o progresso. Teceu elogios a quantos se dedicam a levantar centros de assistência fraterna e pediu a Deus, em prece comovida, que desse amparo aos bons e humildes e luz aos ignorantes e malfazejos. Terminou abençoando a todos e depositou confiante a alma nas mãos de Deus.
Até hoje os que compareceram àquela inusitada despedida guardam na memória o esforço sobre-humano do velhinho de longas barbas brancas a tartamudear desconexas ordens a legiões invisíveis. Tentativa houve de acalmá-lo por meio de sedativos, mas que não resultaram em nada. O filho não derramou lágrima alguma, ele mesmo tomado de contumaz artrite que o moía de dores. Os netos, pessoas práticas e dotadas de espírito de solidariedade, não prestaram maior atenção às palavras ininteligíveis, concentrados que estavam em auxiliar o velho, orando com fé, pedindo a intervenção misericordiosa dos protetores. A nora é que enxugava uma ou outra lágrima fugidia, que representava, cada uma delas, um conselho ou ato de generosidade que o sogro tivera para com ela.
O homem perfeito desprendera-se da carne ignorado dos homens. Houve, é fato, momento propício para a canonização, mas o velho permanecera fiel à vida, de modo que sua biografia não lograra qualquer final grandioso. Bem que intentara, em último alento, verter por sobre a humanidade alguma fonte de excelsa sabedoria. Mas os óbices materiais haviam impedido esse supremo registro de sublimidade.
Ao adentrar o âmbito da espiritualidade, contudo, a configuração foi bem outra. Estavam lá inúmeras personalidades importantes em sua vida: pai, mãe, irmãos, tios, sobrinhos, os avós queridos, enfim, amigos que ajudara a desencarnar, outros que amparara durante a vida, multidão imensa de seres agradecidos e sublimados.
Ao canto da sala, dois duendes esquecidos e insignificantes e vários vampiros invisíveis para a maioria. Leonel viu-os e reconheceu-os nas figuras daqueles que, por anos a fio, lhe haviam atormentado o sono. Ainda meio preso ao envoltório carnal, sofrendo algumas dores pelo desatar um tanto complicado de seu perispírito trançado e retrançado, pediu que as entidades se aproximassem, pois foram os companheiros mais efetivos de seus últimos tempos, embora reconhecesse que os amigos da espiritualidade superior jamais o haviam abandonado. Contudo, manifestava certa simpatia pelos intrusos que o vestiam de mulher e o faziam correr pela escuridão. Era desesperador, era sofrido, mas era um ato de vida.
Ao chamado, as pobres criaturas se aproximaram e lentamente foram transformando-se até tomarem a figura humana. Estavam vestidos de enfermeiros e se identificaram como membros da equipe que socorria a velha criatura. Reconhecidos como tais, explicaram que a entidade precisava de exercícios e, por isso, haviam propiciado a ele a oportunidade de fazer funcionar seus diversos órgãos, de modo a permitir-lhe que a vida se prolongasse em razão dos aspectos cármicos envolvidos. O fato de se sentir vestido de mulher era para fazer com que sua mente se mantivesse acesa para a realidade da vida espiritual, ocupando-lhe o tempo com as reflexões de caráter moral e filosófico. Leonel dedicara a vida aos outros. Precisaria ter tempo também para si, para evitar, de qualquer modo, certa perda, muito embora méritos não lhe faltassem. A estadia no hospital é que coroara, ao ver das forças espirituais, a santificação do bom homem.
Restava decifrar-se o mistério de ter o perispírito tão envolvido com os molambos de sua matéria em decomposição. Mas isto será motivo para outra dissertação, pois, se a vida não se resolve de um momento para outro, que se poderá dizer das existências encadeadas por encarnes sucessivos?!
Fique o caro leitor ciente de que motivo haverá para tal enovelar, bastando para isso ter existência. O que podemos adiantar é que Leonel, se fosse colocado no altar da igreja dos homens, não efetuaria qualquer milagre que se lhe viesse a pedir, pobre espírito endividado que é.
Fique agora na paz do Senhor e aceite apertado abraço deste que lhe escreve com o coração na mão.
Leonel.







7

RALHANDO COM DEUS





Tobias era espírita convicto e sabia a hora de pedir e a hora de agradecer. Mas Tobias tinha vezo característico ao se deparar diante do Pai. Via a necessidade do sofrimento, conhecia a lei de causa e efeito, mas não admitia que Deus, sendo todo-poderoso, não desejasse refrear, por vontade sua, os deslizes dos que sofriam o vexame de pedir perdão por terem pecado. Aceitava o Senhor em sua bondade infinita, mas lhe limitava a providência, por julgar que a benemerência poderia estender-se previamente a toda a humanidade, sem que se passasse pelo crivo da dor. Nesse ponto de sua oração, Tobias como que ralhava com Deus.
O tempo foi passando e Tobias crescendo em merecimentos, em virtude de seu trabalho de amor nunca negado a quem quer que fosse. Desejaria ter dez vidas para dá-las todas aos pobres, pois acreditava estar, ele sim, amenizando aquilo que Deus, no seu conceito, evitava propiciar aos viventes. Aliás, sua pertinácia em acoimar Deus de injusto, com o devido respeito, ia mais além, pois não admitia sequer a hipótese dos sofrimentos cármicos por que as entidades em espírito diziam passar no plano da espiritualidade. Tobias era duro e inflexível porque, dizia, Deus era puro perdão e saberia compreender a sua expressão desabrida.
Tudo ocorria no âmbito de sua intimidade, de modo que sua pregação, embora não fizesse referência a esse ponto crucial do evangelho, era boa e visava a auxiliar os ouvintes. Nunca, de público, manifestou qualquer inspiração que não fosse elevada e digna. Mas os seres humanos não se relacionam tão-só com os encarnados, de modo que seus guias espirituais se afligiam sobremaneira ao ouvir toda noite, durante suas preces, a verberação contra o Pai.
Esse contínuo despejar de responsabilidade para o Criador despertou as forças do mal, se assim podemos chamar aqueles pobres irmãos que ainda não se compenetraram da necessidade do progresso para ascender na espiritualidade, de sorte que Tobias foi sendo envolvido, cada vez mais, por inspirações de insubordinação.
Quando jovem, estranhava a maneira rústica do linguajar de quem se acostumara aos palavrões e ditos de baixo calão. Aos poucos, entretanto, foi aceitando certa agressividade vocabular, de modo que começou a espantar os íntimos e familiares com certas expressões indignas. Dizia-o a princípio por facécia, para esboroar pruridos de susceptibilidades, como alegremente confessava. Mas os termos foram incorporando-se-lhe ao vocabulário, de forma a brotarem com espontaneidade durante a informalidade de seus contatos com amigos e parentes, os quais estranhavam e muito a pornografia que viam imiscuir-se no pensamento de Tobias. De resto, esse costume era popular e achava ele natural que, sendo pessoa do povo, devesse utilizar-se dos mesmos recursos lingüísticos. E assim as expressões ganhavam vulto, assumindo proporções de aspecto assustador para seus guias e irmãos protetores, que não desejavam ver a ovelha tresmalhar por tão pouco, uma vez que conheciam o íntimo do amigo e sabiam que o que dizia, realmente, era da boca para fora.
Certa ocasião, durante sessão de desobsessão, inadvertidamente, Tobias, ao se ver agredido por determinada entidade, perguntou, ex-abrupto, por que não ia ofender a própria mãe. Foi um alvoroço na sala. Ninguém compreendia como alguém poderia tão grosseiramente agredir entidade necessitada de socorro e carinho. Na verdade, Tobias disse-o maquinalmente, em trejeito espontâneo mecanicamente produzido. Não havia qualquer carga emotiva em sua expressão. Fizera-o como modo de dizer, assim como diria: “Meu filho, Deus está presente e sua ofensa a mim ofenderá a ele. Contenha-se!” Mas “Vá ofender a mãe!” foi frase que repercutiu de modo escandaloso no seio da comunidade.
Na esfera espiritual, os protetores abafaram o teor incongruente da fala, demonstrando ao socorrido que não houvera intenção de agredi-lo, de sorte que não houve efeito maléfico algum, principalmente porque, no decorrer dos trabalhos, se conseguiu evidenciar ao delinqüente que tinha necessidade urgente de reforma interior, concretizando-se o ato de socorrismo fraterno objetivado.
Mas Tobias estava mal perante si mesmo.
Ao término da sessão, viu-se atrapalhado para explicar aos companheiros que dissera a frase sem a intenção denotada pela força expressiva das palavras. Denotara agressão, mas conotara amor, carinho e compreensão. Reconhecia que errara, empalideceu, corou, em sucessivas demonstrações de inteiro mal-estar. Os demais médiuns e doutrinadores acabaram por compreender a situação e tudo terminou em risos e chacotas.
Tobias estava reconciliado com o plano terreno e com o espiritual. Restava acertar as contas consigo mesmo.
Em casa, a sós perante Deus, pôs-se a orar fervorosamente, pondo comovido acento em cada palavra. Acabara de compreender que seus ralhos para com o Criador não tinham qualquer razão de ser. Era preciso a pessoa enfrentar dolorosas situações para obter os méritos reais que a poderiam guindar a planos mais elevados. Se Deus lhe tivesse suprimido a dor do vexame, da vergonha, o mal-estar da culpa, não lhe teria propiciado a condição de sentir o sofrimento que o conduziu à verdade. Se Deus lhe desse o direito de ascender na escala evolutiva, sem lhe oferecer o apoio da compreensão de si mesmo, por meio do reconhecimento de seus desajustes, não lhe teria dado a excelsa ventura de perceber o crescimento de suas virtudes. Era por puro amor que Deus permitia ao ser cair diante de suas fraquezas e mediante a sua desídia e falta de senso crítico. Se Tobias agora expressava com desanuviada angústia a felicidade de seu ato de contrição, era porque fora capaz de extrair de seu sofrimento o ensinamento superior que indelevelmente ficaria registrado em sua consciência e inequivocamente iria conduzi-lo pelo restante de sua existência.
Nesse ponto de sua oração, agradecido e submisso, logrou sorrir para Deus e, por vezo incoercível, ralhou com ele por não tê-lo feito passar antes por semelhante experiência.

Há almas que são pequenos fachos de luz. Às vezes, as sombras que espalham parece que são defeitos e não qualidades. Saibamos ver todos nós em nossos sofrimentos apenas sombras a demonstrar que, se existem, é porque, por trás dos objetos que as produzem, existem luz e claridade, saber e amor. Não sejamos nós mesmos quais Tobias a querer conhecer algo mais que o Pai. Façamos de nosso dia-a-dia a escada que nos elevará para ele, crentes e cientes de que o Pai é puro amor.







8

LUZ PERIGOSA





Amanhecia na floresta. Os perdidos da expedição temiam ser encontrados pelos selvagens que se diziam antropófagos. Por isso, a luz do dia parecia-lhes extremamente perigosa, pois expô-los-ia à vista de temíveis perseguidores. Mas o dia é inexorável e logo o cricrilar dos insetos começou a ceder a vez aos trinados e gorjeios das aves que despertavam.
Transidos de frio e de terror, os coitados humanos não sabiam exatamente o que os aguardava na luz do dia. Aos poucos, o azul escuro do céu foi cedendo para a claridade que se espargia, de modo que a escuridão foi definindo contornos de troncos e de frondes, sob que buscaram amparo na noite anterior. Quando os primeiros raios de sol se fizeram sentir por sobre as copas mais elevadas, tudo parecia resolver-se pelo pior. A luz os denunciaria, fatalmente.
Não longe dali, os selvagens apostavam quem seria o primeiro a localizar o grupo perdido. Eram amigos e desde há muito seus ascendentes trocaram o hábito da antropofagia por proezas menos sanguinolentas. Hoje, a façanha a ser enaltecida e comemorada seria a sagacidade do encontro feliz dos que se desviaram de sua rota. Quem lograsse encontrá-los receberia presentes valiosíssimos dos amigos ali reunidos. Pelo empenho dos aborígenes, a caravana não seguiria desfalcada.
Por volta do meio-dia, quando o Sol flamejava impávido e soberano no alto, estendendo sombras nas grotas e sob a espessura da mata cerrada, os amigos transviados foram surpreendidos pelo primeiro herói a localizá-los. O medo, entretanto, fez com que reagissem mal, fazendo com que se armassem do melhor modo para repelir o possível ataque. Ignoravam as boas intenções do índio e não entendiam seu linguajar fraterno. Sem pensar no que faziam, repeliram-no a ponto de feri-lo gravemente.
O pobre selvagem não logrou voltar à tribo. Tendo-se afastado do grupo, foi esconder-se em caverna conhecida, onde poderia resguardar-se, na expectativa de socorro oportuno. Suas forças não o ajudaram, contudo, e o infeliz deixou ali a sua vida. Fora para a salvação das pessoas e para glória sua; obtivera violência e dor como resposta.
Não é preciso dizer que as tentativas se sucederam até que grupo mais feliz conseguiu, por meio de informações e indícios dos companheiros que os enviaram, demonstrar aos desesperados que sua intenção era boa e que só desejavam encaminhá-los para o reduto seguro de sua aldeia.
Foi uma festa o reencontro. Quando se sentiam totalmente entregues à penosa sorte de perecer de fome e sede, viram que, na realidade, poderiam prosseguir em sua peregrinação, em busca das pedras preciosas que os haviam estimulado para a aventura.
Mas o dia para a tribo não foi de festa. O jovem morto fora encontrado, preciosa criatura, filho do cacique, promessa viril de jovem prometida, com quem se casaria na lua seguinte. O bem de uns se havia convertido em tristeza para muitos.
Naquela noite, após as cerimônias fúnebres, os mais antigos da tribo formaram o conselho para deliberar a respeito do destino a ser dado àqueles que haviam ofendido a sua hospitalidade e a sua decidida oferta de ajudar.
Os menos idosos queriam logo imolar alguns e saquear a caravana, obrigando os outros a seguirem seu caminho, predestinando-os a se encontrarem com seus inimigos, tribo de canibais selvagens, que lhes infligiriam total derrocada. Almejavam também, com seu alvitre, conseguir algumas baixas junto aos adversários.
Outros conselheiros, menos revoltados, sugeriram que o grupo se responsabilizasse pela perda do futuro chefe, de sorte que as duas mulheres deveriam ficar como presa de guerra, a serviço da tribo. Exigiam ainda indenização pelos danos sofridos com a perda de excelente caçador, de modo que requisitavam as armas da expedição, mais a munição e todos os apetrechos de metal. Depois disso, seriam guiados de volta, até os limites de suas demarcações.
Terceiro grupo de anciães via no acontecimento imprevidência do precipitado jovem, que não presumira provável reação de quem se encontrava perdido, desconhecendo por completo a região e com quem poderiam topar em sua peregrinação. Não davam razão a quem reagira com tanta violência mediante isolada criatura que lhes aparecera sem indício de agressividade. De fato, os simples arco e flecha que portava o pobre jovem só serviam mesmo para caça e pesca. Não eram armas de guerra. Estes achavam que os visitantes deveriam sofrer algum vexame de caráter moral, de modo que se vissem coagidos, por si mesmos, a repararem sua falta, prometendo empenhar-se para suprir a ausência do filho querido mediante alguma indenização compensatória.
Era chegada a hora de ouvir o grande chefe, o pai do infortunado guerreiro e defensor da comunidade. Sua voz era a mais querida e seu parecer teria força de lei. O pobre homem consultou o luto de seu coração e resolveu perdoar a ofensa. Chamou o chefe do grupo de adventícios e esclareceu o jovem senhor a respeito da perda que significava para todos a morte de seu estimado filho. Referiu-se à afoiteza com que se apresentara diante do magote perdido, mas não deixou de avaliar o grau de responsabilidade dos viajantes. Perguntou, sabendo a resposta, a respeito do conhecimento que tinham da região e dos percalços do caminho. Desejou saber também que medidas haviam deliberado tomar em caso de extravio de elementos. Quis conhecer os recursos de que cada um dispunha em caso de se ver sozinho e concluiu que a expedição poderia ter sido montada com todos os apetrechos para superação de qualquer eventualidade que ensejasse perigo. No entanto, por desleixo e avidez por se conseguirem resultados rápidos, muito do que se havia planejado foi deixado de lado por representar sacrifício e espírito de desprendimento.
Aí o bom administrador advertiu os presentes para que agissem segundo os princípios da prudência e da paciência e ele mesmo fez questão de ditar e zelar por que fosse cumprida sua sentença. Tomou o bastão em que se apoiava, reuniu todos os viajantes e comandou pessoalmente a viagem de volta até a cidade de origem, exigindo, como condição única que impunha para suspender qualquer punição, que nova expedição se formasse com os mesmos objetivos. Para efeito de vigilância e de ajuda, postaria, ao longo do caminho, alguns guardiães da tribo, que iriam, sob forma de advertência e de estímulo, velar para que os objetivos estivessem sempre presentes na mente de cada viandante.
Depois disso, retirou-se para o interior da floresta, atento para o desfecho daquela nova aventura e ciente do que deveria fazer caso alguém lhe viesse pedir socorro por ter companheiros perdidos na mata.
E assim os homens se aprestaram para cumprir a promessa que fizeram ao grande chefe, alertados para os meios que empregariam em seu novo jornadear. Que lhes valessem as experiências anteriores!

Dez dias depois da partida, em meio à escuridão da noite, de repente, dois membros do grupo se viram sós na floresta. Acomodaram-se como puderam, acenderam pequeno fogo na clareira e aguardaram calmamente o amanhecer, na expectativa de serem guiados por algum diligente guerreiro da tribo. Naquela manhã, aos primeiros raios de sol, saudaram amistosamente pequeno grupo de selvagens, que os cercaram, manietaram e levaram para sua aldeia longínqua, para servirem de repasto especial. Sua desatenção fez com que não reconhecessem os membros da tribo dos antropófagos. Até hoje há quem procure pelos perdidos, inutilmente. A luz da manhã lhes fora realmente perigosa.
Apesar desse episódio isolado, precisamos reconhecer que a maior parte dos que partiram chegou a seu destino, principalmente aqueles que souberam dar ouvidos aos auxiliares do grande chefe por ele distribuídos pela floresta.

Como estão, bom amigo, os preparativos para sua próxima partida?







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O PEDIDO E A RESPOSTA





O nosso escrevente, em comovida prece, pede a Deus que lhe anule a personalidade durante as transmissões mediúnicas, na desconfiança de que sua participação possa estar, de algum modo, prejudicando o teor ou a forma das mensagens, quer por acréscimo de idéias próprias, quer por supressão de intuições válidas, seja por anotar terminologia inadequada, seja por exprimir conceitos arrevesados diante de vocábulos que absolutamente não lhe foram ditados.
De modo intuitivo, durante sua concentração mística, fizemos-lhe chegar às franjas do intelecto a possibilidade de que tudo o que venha a ocorrer ou já tiver ocorrido seja de total responsabilidade espiritual superior, de sorte que sua participação tem sido a mais eficaz e correta. Acreditar em que algo pudesse fazer para melhorar seu desempenho não passaria, então, de mero desejo egoístico.
Prevenido quanto a esse aspecto de sua petição, desejou o nosso intermediário, suplicante, que Deus lhe possibilitasse sofrear todo e qualquer impulso subalterno de sua personalidade, ensejando-lhe condições plenas de realizar seu serviço como autômato ou, no máximo, como mandatário das forças espirituais superiores. Tal solicitação pareceu-lhe plenamente satisfatória, acrescentando, ainda, contundente frase, segundo a qual todo e qualquer brilho adveniente de sua atitude pudesse ser apagado, especialmente à vista da projeção social que, intui, se avizinha. Sabe que se verá exposto à opinião pública e humildemente se previne contra si mesmo, pois não acredita que espírito algum possa fazer-lhe mais mal do que ele mesmo para consigo próprio.
Eis a descrição do fato psíquico diante da prece de abertura de nossos trabalhos
Para bem da verdade, devemos dizer que muito do que se conteve na prece foi por sugestão nossa, melhor dizendo, por abalo psicológico que desencadeamos na problemática mental que se afigura a nosso médium como conflito, o que lhe despertamos por meio da leitura, a que o conduzimos com o fim em mira do desenvolvimento deste texto, da página de Emmanuel, pela psicografia de Chico Xavier, que se encontra em seu opúsculo Pão Nosso e que leva por título, exatamente, Conflito.
Desde há tempos, o nosso mediador vem desconfiando de que muitos destrambelhos mentais que lhe ocorrem se originam, principalmente, de suas más tendências, que reconhecem existirem e que não nega por ocasião desta escritura. São sugestões de todo tipo para desvio de sua concentração dos reais objetivos de sua vida, de seu trabalho, de seu labor mediúnico, de seus compromissos familiares e conjugais, de seu amor em crescimento pela humanidade. Claro está que o texto a que acima aludimos faz expressa referência à passagem de Paulo na citação em epígrafe e que reproduzimos:

Acho então esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está comigo. (Romanos, 7:21.)

Através de sábio desenvolvimento, Emmanuel lembra a seus leitores que os males, primeiro, se encontram dentro de si e que, no trato com as pessoas, há que se considerar esse aspecto para não se efetuar algo que se desaprove mais tarde.
Havemos, contudo, sem, de forma alguma, desmerecer ou diminuir os méritos da vibrante exposição de nosso irmão maior, lembrar que, em certas circunstâncias, a mente e o coração dos homens se abrem em benemerência, de forma que sua atenção fica desviada ou concentrada tão-só para o objetivo visado, especialmente quando se trata de praticar o bem. Nesse instante de êxtase de doação e de interesse pelo semelhante, pode ocorrer que se agasalhem vibrações de todo tipo para a realização do ato de amor e desprendimento. O movimento do doador é de abertura de canais de comunicação, o que favorece a penetração das más intenções, até mesmo das entidades em via de serem auxiliadas. Como o grau de abertura das defesas pode ser significativo, tudo o que percebe ou intui o encarnado naquelas condições pode parecer-lhe fruto de sua própria consciência, momento em que se sente pequenino e inferiorizado, por ter tido a impressão de que seu ser é pobre e mesquinho, sem percepção de que as vibrações quase todas são originadas de fora para dentro.
Fez bem o nosso amigo em dar vazão durante sua prece a tais sentimentos. Esteja, no entanto, seguro de que seu trabalho mediúnico está sendo assistido e de que possíveis aparentes desajustes estão sob controle, sendo muitos deles, como no caso de hoje, provocados por injunção das necessidades do desenvolvimento de nossas mensagens.
Vamos encerrar este nosso aviso com a firme assertiva de que, independentemente de como seja, na realidade, a sua maneira de ser, de como se constitua a sua personalidade, de como se faça o seu progresso, nós iremos prosseguir utilizando-nos dos recursos de que você dispõe e nos oferece para emprego em nossos serviços de ensino e de socorrismo. Que estes momentos de desprendimento, sejam absolutos, sejam parciais ou relativos, se estendam, bom amigo, para felicidade de grande número de entidades carentes de seu auxílio e boa vontade. Fique certo de que as palavras que tão velozmente se transferem para o papel são, em geral, aquelas que nós mesmos empregaríamos e que, se falha houver, é porque não dispomos, nós do plano etéreo, de conhecimentos suficientes para melhor exprimir o que nos vai no pensamento. De qualquer forma, o que podemos dizer com absoluta convicção é que seu discernimento nos tem facilitado enormemente a tarefa.
Fique na paz do Senhor! Prossiga em sua exaustiva labuta e saiba que muito lhe agradecemos a sua dedicação.
Ovídio.







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DE PENA EM PUNHO





As querelas entre os dois ferrenhos adversários prosseguiam até mesmo quando se encontravam perante os irmãos do etéreo, durante as sessões de desobsessão. Discutiam ambos, Heitor e Alfredo, por dá cá aquela palha, pela cor dos olhos de Jesus, pelo principal mandamento após os dois citados pelo Mestre e assim por diante. Para Heitor, a vida era constante desafiar; para Alfredo, o estoicismo, a ser consagrado como valor fundamental. Não se davam e eram amigos; brigavam mas não se apartavam. Discutiam, não chegando nunca a um acordo, mas não se ofendiam jamais. Respeitavam-se, eis tudo, pois cada qual via no oponente a sua própria figura de paladino da suprema ventura da descoberta da verdade. E nisso eram absolutamente idênticos.
Certa ocasião, sua atenção voltou-se para tema de superior importância. Leu-se nos Evangelhos que Jesus recomendava que se amassem os inimigos. Heitor entendeu logo que os inimigos eram todos os que desafiavam as pessoas a procedimento indigno. Alfredo obtemperou que o sujeito poderia não ser inimigo de ninguém e, ainda assim, oferecer condições para que as pessoas vissem nele alguém a quem se devesse objetar e combater, por suas idéias contrariarem o bem-estar geral. Sendo assim, o inimigo, estando com a razão, não iria obrigar a ninguém que procedesse indignamente. Volitavam em torno do tema e não compreendiam que estavam digladiando-se ingloriamente, uma vez que o serviço se postergava e as obras em realização se adiavam ou se deixavam de realizar, à força de se preocuparem em vencer a discussão.
A celeuma em torno dos inimigos transcendeu a esfera dos encarnados e ambos, de pena em punho, convocaram a presença de seus protetores e demais amigos da espiritualidade para solidário apoio na argumentação de seus princípios e pontos de vista. Leonel, o sublime orientador do Heitor, através de meticuloso exame da questão, chegou à conclusão de que, para Jesus, amar os inimigos significava simplesmente vigiar para que não se fizesse qualquer mal a alguém que se devesse mais tarde resgatar através de sacrifício e dor. Narbal, o amigo espiritual do Alfredo, por sua vez, em primorosa exposição, concluiu pela fórmula consagrada de que o amor aos inimigos não existia, pois o ato do amor era factível de transformação do indivíduo que o operasse, de sorte que, ao terminar por amar ao inimigo, este já não mais existia nessa forma, pois, aos olhos de quem ama, todos são amigos. Apoiava o discurso nos radicais latinos e gregos dos termos em evidência, de modo que sua razão se fundamentava na lógica dos contrários e dos símiles. Filosofava, portanto.
Os dois amigos, diante das vibrantes manifestações de seus companheiros do etéreo, não puderam prosseguir seu alentado pronunciamento em favor de suas teses. Precisariam meditar, mesmo porque, desconfiavam, as suas próprias penas haviam oferecido desenvolvimentos antagônicos aos seus pontos de vista, de modo que, ao se filiarem à posição de seus instrutores, estariam dando razão ao oponente. Fizera-se confusão completa na mente dos dois inimigos.
Em casa, cada qual buscou analisar com frieza a mensagem que recebera. Na pressa, esqueceram-se de permutar as informações, de modo que tiveram de se fiar na memória para reprodução das argumentações contrárias da entidade espiritual do opositor. De fato, esse detalhe foi de suma importância para o efeito almejado pelo plano superior para a reconciliação que se pretendia e que se fazia de lei, para que se cumprisse o desígnio do Pai, especialmente porque era aquele o tema em que deveriam empenhar-se todos para seu progresso imediato.
Enquanto fervilhavam as idéias nas pobres cabecinhas de seus protegidos, os mentores, no etéreo, disputavam entre si quem houvera oferecido o melhor argumento para convencer os terrícolas a cederem diante do adversário. Faziam-no por espairecimento, em saudável competição, cada qual acreditando que seu pupilo cederia primeiro. Eram otimistas e novatos.
Na noite do reencontro, deu-se acontecimento inédito: ambos os parceiros, ao chegarem, cumprimentaram-se efusivamente, prometendo plena concordância pela primeira vez na vida. Heitor acusou pontinha de dor de cabeça, Alfredo disse estar saindo de bravo resfriado e ambos adentraram a sala de reuniões enlaçados em abraço fraterno. Haviam, finalmente, compreendido que a controvérsia não os estava levando a nada. No éter, Leonel e Narbal davam-se as mãos e reconheciam que não houvera vencedor nem perdedor: os seus discípulos haviam compreendido a realidade, inequivocamente, de modo parelho. Ambos podiam considerar-se felizes em seus ministérios de amor.
Iniciados os trabalhos, o mentor da casa anunciou o tema da noite: o amor aos inimigos. Por incrível coincidência, a obra aberta ao acaso propunha, de novo, o debate que empolgara a assembléia na semana anterior. Instados para falar, tanto Heitor quanto Alfredo disseram-se muito solicitados e passaram a vez para os demais companheiros. Manuel, apagado benfeitor do grupo, médium de pequenas comunicações, pessoa de bom senso mas de curto entendimento das questões filosóficas, atreveu-se, então, a expender modesto conceito, segundo o qual Deus, em sua infinita sabedoria, só iria permitir a entrada em seu reino daqueles que, na vida, tivessem agido de modo a não ter inimigos. Se a pessoa tivesse qualquer inimigo, segundo a expressão de Jesus, deveria efetuar logo a reconciliação ou não seria admitido no reino do Pai. Tudo parecia bem dentro dos padrões evangélicos, das leis de causa e efeito e da confraternização universal, alicerçando-se a visão da vida no princípio da caridade, da justiça e do amor. Mas a expressão era simples e o vocabulário bem humilde. Manuel não brilhara na exposição.
Heitor olhou para Alfredo, que o fitava ansiado, e ambos, como que movidos por invisível mola, ao mesmo tempo, disseram:
— Não é bem assim...
Estava decretada a união fraterna entre os antigos adversários; estava também declarada, solenemente, guerra ao mundo.
No além, Leonel e Narbal empalideceram. Como, então, tiveram os gladiadores da verdade a leviandade de unir as forças contra tão insignificante adversário?! Que fazer para que pudessem ver que incorriam em erro ainda mais grave? Teriam de, de novo, de pena em punho, enfrentar as adversidades de longa dissertação, metódica e disciplinadamente composta para levar à dupla o discernimento que lhes faltava? De que lucubrações misteriosas deveriam lançar mão para demovê-los da guerra que estavam declarando? Ambos davam tratos à bola, quando se ouviu Manuel dizer:
— Meus bons amigos, amemo-nos uns aos outros, como o Cristo nos amou. Talvez não seja, realmente, bem assim como eu disse, mas Jesus não está interessado, quando fala em amor, em saber se somos mais ou menos inteligentes. O que quer de nós é que revelemos os nossos sentimentos. Deixemos a razão arrastar-se atrás deles como serva fiel e amiga, sempre a ampará-los e a desenvolvê-los. Não discutamos diante do coração aberto do Senhor. Amemo-nos, simplesmente.
Tendo-se levantado, o bondoso senhor aproximou-se dos dois jovens e lhes deu comovente amplexo de sincera amizade, selando pelo gesto o efeito que suas palavras poderiam não suscitar no coração dos confrades. Todos reconheceram na manifestação do irmão a influência suave e poderosa do Senhor, por intermédio de seu guia e amigo.
Leonel e Narbal, por seu turno, buscaram no anjo tutelar da casa de assistência a compreensão da dignificação de seu trabalho socorrista e lhe agradeceram comovidamente a ajuda prestada. Lá também houve terno abraço de profunda confraternização e de serenas promessas de entrosamento e respeito.
O trabalho parecia ter-se concluído no que respeita ao ponto evidenciado. Na semana seguinte, discutir-se-ia o trecho em que, do alto da cruz, Jesus conclama o Pai a perdoar. Teria Jesus praticado o amor aos inimigos, segundo a sua pregação?







11

SEM TÍTULO





Carlos Magno era médium atuante na comunidade, entretanto, o que fazia em particular, em casa, ultrapassava qualquer manifestação de benemerência que ensejasse nos centros de assistência a que emprestava sua colaboração.
Carlos Magno era médium escrevente, dos bons. Tinha facilidade em captar mensagens de todo tipo. Havia necessidade de mediador dotado da terminologia científica mais atual? Lá iam ao valoroso operador das vontades tecnicistas dos que se fartavam dos conhecimentos teóricos e práticos da humana concepção de sabedoria. Havia quem intentasse rumar pelos caminhos da moralidade superior, sob o encantamento da fórmula poética mais expressiva? Carlos oferecia seguro resguardo de que a mensagem literária extrairia lágrimas até do leitor mais ferrenho e revoltado do materialismo ateu mais insensível. Conhecimentos históricos, filosóficos e culturais teriam que interpenetrar notícia de caráter preventivo do humano devir na destruição dos valores morais e materiais? Procurassem o nosso amigo, que, por certo, a admoestação não trairia o desejo grandiloqüente dos espíritos de luz mais preocupados na preservação do planeta e dos terrícolas. Era pau para toda obra, na mais legítima expressão.
Mas Carlos Magno não conseguia bons títulos para suas mensagens. Incapaz de escrever desde logo o título sugerido, na ânsia de apanhar o texto e no medo de a frase-resumo não conter com rigor o extrato da comunicação, deixava para mais tarde assinalar a frase que encimaria a mensagem e nunca se decidia por alguma que melhor representasse o significado maior dos textos. Desse modo, as suas comunicações iam quedando sem título ou com alguns provisórios, que anotava a lápis, como Sobre o Amor, Sobre a Vida e a Morte, Sobre a Moral, Sobre a Destruição Planetária e quejandos, que não traduziam a real tendência espiritual sob que se dera a elaboração da mensagem. Esse era o seu ponto fraco.
Mas não ligava para o que pudesse ocorrer, porque não desejava tornar pública a sua produção mediúnica. Dentre os seus apanhados no centro, muitos mereceram publicação e comentários elogiosos, dado o nível de instrução que os caracterizava. Entretanto, os que apanhava sozinho, tinha medo de oferecer aos amigos e de ser o veículo de alguma mensagem cujo teor viesse a prejudicar alguém. Se lhe ocorria à mente alguma idéia de que poderia ser bom o efeito da leitura, logo objetava que livros havia sobre todos os temas de importância do espiritualismo cristão espírita, de modo que o que provinha de sua pena bem poderia servir a ele somente.
Na verdade, o medo de que era possuído se referia tão-só à deficiência dos títulos.
Certo dia, como recurso para fazê-lo entender qual o título sugerido, o irmão que assumiu a liderança do grupo encarregado das transmissões do dia insistiu em que escrevesse a frase Sem Título. Como hesitasse, desconfiado de que era aquele o título insólito de sua mensagem, repetiu: Sem Título, como se fosse iniciar a mensagem pela frase-título. Nova hesitação e novo ditado. No vigésimo impulso, conseguiu Carlos Magno escrever a frase, com muito medo e sem convicção. O resto veio como um jorro, em forma de conto, em que a personagem principal escrevia longo discurso a ser pronunciado diante de assembléia privilegiada, não sabendo, porém, como enunciar a frase de abertura, que ficaria em branco. No conto, o autor acaba por sofrer a visita de companheiro da espiritualidade, com quem mantém longa conversação até atingir o ponto em que se lhe enche de coragem o coração, para enfeixar a palestra com título rigorosamente oferecido pela entidade espiritual. Era simbólica a narrativa, evidentemente, de modo que Carlos Magno pudesse perceber a intenção de permitir que seus escritos fossem revistos na parte de seus títulos.
Com muito receio, o jovem médium apanhou todos as mensagens que datilografara com extremo carinho e, uma a uma, foi colocando na máquina. Após breve concentração, vinha à sua cabeça frase concisa e precisa, que tornava a intenção do texto absolutamente declarada. Em seguida, perpassaram pela máquina mais de quinhentos textos, todos expressivamente intitulados pelos amigos da espiritualidade. Mas estes fizeram uma facécia com nosso mediador, pois o único que, deveras, foi intitulado de modo correto foi o que apanhara naquela tarde, Sem Título, de sorte que todos tinham dizeres significativos, mas trocados. Como frase final do dia, deixaram claramente registrado seu desejo de que Carlos Magno buscasse confrontar título com texto para fazer a devida relação. Diziam ainda que, assim que descobrisse o título correto, deveria publicar a mensagem através do mesmo periódico que agasalhara as suas publicações anteriores.
Envergonhado de imprimir o último conto, que fazia clara alusão à sua indecisão, Carlos Magno adiou a publicação dele para depois, quando estivesse mais confiante em seu trabalho.
Na tarde seguinte, o texto que apanhou foi magnífico. Tratava das leis do amor, do progresso e do reino de Deus. Mas não obtivera frase alguma que não fosse a famigerada Sem Título, sinal evidente que aquela não deveria ser a primeira mensagem a ser publicada.
Nessa agonia permaneceu mais quinze dias, até que, cansados de esperar, os espíritos resolveram dar mãozinha para a aproximação dos títulos correspondentes. Disseram a Carlos Magno que iria encontrar marcas claras em duas das mensagens consignadas com títulos trocados.
De fato, ao vasculhar o imenso calhamaço de papéis, encontrou duas mensagens assinaladas com X. Faltava descobrir qual o título perfeito de uma e de outra, ou se o título correspondia ao teor da outra mensagem. Ocorreu, entretanto, que os dizeres foram muito parecidos, enquanto o teor dos textos, bastante díspares. Parecia a Carlos Magno que os espíritos que o estavam orientando eram inimigos de seu progresso, pois não conseguiam demovê-lo de sua indecisão. Com medo de errar, não publicou nem um nem outro, esperando ocasião propícia para interrogar os amigos da espiritualidade, que, sabia-o muito bem, não iriam abandoná-lo. Contudo, aí, pareceu-lhe, houve falha de interpretação, pois ficou mais de mês sem qualquer notícia. Punha-se à disposição, mas não escrevia uma única linha.
Começava a desesperar quando nova longa mensagem instruía-o para que tomasse da caneta e marcasse todas as mensagens com dois números, que lhe seriam ditados concomitantemente. Ao término do trabalho, bastava aproximar o primeiro número ao número igual correspondente à segunda marca que obteria todos os títulos de todas as mensagens.
Cuidadosamente, Carlos assinalou todos os seus textos conforme a orientação e obteve resultado que lhe foi totalmente surpreendente: todos os títulos se encaixavam perfeitamente nas comunicações correspondentes. Estava pronto o trabalho; era só começar a publicação pela ordem numérica, mas, por mais que procurasse, não encontrou a mensagem de número um com o competente título de igual numeração. A sua ordem principiava pelo número dois.
Busca que busca, deu com a mensagem Sem Título, que ficou ao lado do bloco, sem numeração. Seria essa a mensagem a ser publicada em primeiro lugar? Carlos Magno hesitava mais uma vez. Tinha medo de que descobrissem a sua falha mediúnica e não percebia que obtivera da espiritualidade indicações superiores de poderio magnético e vibrátil. Toda a atenção de que fora alvo parecia ficar sob os escombros de sua temerosa atitude de não se ver alvo das chacotas dos parceiros.
Inconformados com esse derradeiro titubeio, os seus protetores assumiram a sua pena e, diretamente, sem floreios, invectivaram a sua personalidade, demonstrando por a + b, cabalmente, quem era ele e o mal que estava praticando, impedindo os amigos e demais possíveis leitores de conhecerem mensagens de nível espiritual superior. Teceram demorados comentários e terminaram estimulando-o a que criasse coragem e publicasse a mensagem Sem Título. Desconfiado de que estava sendo vítima de mistificadores, pois seus maiores não iriam desnudá-lo tão grosseiramente, Carlos Magno resolveu aguardar o momento do encontro no centro para confirmação de tudo o que lhe fora dito em particular.
Realmente, os companheiros não tiveram dúvida em retransmitir na íntegra a mesma mensagem, tomando a precaução, para não se lhe ferirem os brios, de trocar o seu nome por outro fictício, como se fora aquela recomendação de caráter geral. Onde se lia Carlos Magno na primeira, passou-se a ler o leitor endividado na segunda, única alteração de monta.
Carlos Magno sentiu profundo alívio na consciência e percebeu que, de fato, tinham sido os seus amigos que compareceram à sua reunião íntima. Acusava-se de preocupação descabida e deu à mensagem dupla plena publicação, mantendo o texto integral do ditado do centro. A primeira, incinerou por julgar duplicata sem valor e considerou que faria muito bem em não mais apanhar qualquer ditado em casa. No centro, os textos eram mais claros e perfeitos. Desse modo, guardou todas as mensagens em caixa que abriria anos depois para análise e julgamento. Achava-se ainda muito cru para levantamento ideal das que mereceriam ser dadas a público.
Em quarenta e cinco anos de intensas atividades espíritas, Carlos Magno tornou-se um dos mais valorosos soldados na batalha contra a ignorância e a maldade. Suas mensagens captadas nas mesas dos centros que freqüentava ganharam foro de autenticidade dentre as que mais claramente expressavam a vontade das entidades melhor dotadas em todo o mundo. Pesavam-lhe, contudo, na consciência as que mantivera encaixotadas.
De pele encarquilhada, com os raros cabelos encanecidos, tomou coragem para desbravar aquela floresta que lhe parecia desconhecida. Chamou o filho mais velho, companheiro de lutas no centro, e juntos começaram a vasculhar os velhos guardados. Surpresa das surpresas: a cada mensagem lida correspondia uma de suas publicadas. Sem que tivesse percebido, tomara de novo todos os ditados. As idéias pareciam-lhe familiares, tendo algumas vezes desconfiado de ter já visto tais desenvolvimentos em algum lugar, mas como os títulos estavam sendo ditados com perfeição, dada a sua iniciativa de solicitar a outrem que se responsabilizasse por essa parte, possibilitou a publicação de todas as mensagens. Por extraordinária coincidência, quase todos os textos estavam com títulos rigorosamente iguais aos que se deram à prensa. O único senão é que entre as mensagens mediava tempo mínimo de dez anos, sendo que as últimas distavam de suas similares até trinta e cinco anos.
O velho Carlos, após dois meses de exaustivo levantamento, concluiu o trabalho e se deparou diante de um único texto não repetido: Sem Título. Esse não merecera qualquer atenção posterior e ficara ali, isolado.
Quem não compreendeu o que havia ocorrido foi o filho. Entretanto, ao se deparar com o último texto, desconfiou que ali estava o calcanhar de Aquiles de seu pai. Apesar do medo de ofendê-lo mas no intuito de ouvir alguma revelação importante, ousou interrogá-lo.
O nosso velho Carlos Magno, com lágrimas nos olhos, só lhe respondeu com um pensamento:
— Temo, meu caro, que o peso destas folhas fará a balança de minha vida pender desfavoravelmente para mim, por mais que eu coloque do outro lado todas as mensagens recebidas, lidas, confirmadas e publicadas. Penso, meu filho, que seu pai vá ter de volver aos laços da carne apenas para ter de desfazer os nós que dei na corda de minha vida. Creio, meu querido, que nenhuma atitude de anuência e concerto com o plano da espiritualidade consiga contrapor-se à evidência desta minha contradição por força do egoísmo e do orgulho que dominaram meu coração...
À medida que falava, sem que percebessem, as palavras daquele infausto texto foram desaparecendo, de sorte que, quando o filho o tomou das mãos do pai, restava tão-só o título estranho: Sem Título, que, diante dos olhos extasiados dos dois, foi esfumando-se até que a folha se restabelecesse em sua brancura original.
O trabalho de sua vida não se sepultaria com o corpo alquebrado que, dentro de alguns dias, ganharia a glória do descanso. O reconhecimento de sua deficiência acompanhara-se da descoberta de que o medo estava esquecido e de que a hesitação desaparecera. Carlos Magno, finalmente, lograra que todas as suas mensagens ganhassem títulos perfeitos. Fora, realmente, uma vida proveitosa.




Homenagem



A presente história homenageia os negros serviçais do Senhor, aqueles que doam sua vida ao trabalho escravo, mas que se julgam inferiores diante de Deus porque não conseguem reconhecer o próprio valor. Que este treze de maio possa representar, inequivocamente, o seu grito de libertação das presilhas com que sua cor parece atar-lhes os pulsos diante da sociedade.
Se o branco da pele puder representar-lhe algo de superior, lembre-se, caro amigo, de que a mensagem final, que deveria ter sido a primeira, terminou, esvaeceu, desapareceu, restando tão-só página em branco totalmente insignificante. O que vale na vida, para todos nós, como para o nosso Carlos Magno, é o trabalho que pudermos realizar em favor dos nossos semelhantes, com amor e absoluta abnegação.
Deus esteja com nós todos no esplendor de sua glória!







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NOMES PRÓPRIOS





Suspeita nosso caro escrevente que muitos de nós, integrantes desta ou das equipes anteriores, se tenham apresentado camuflados por pseudônimos, a fim de esconder a verdadeira identidade, o que significaria a eterna celeuma pela verossimilhança, aproximação de estilos, nomes consagrados amesquinhados pela temática de que tratam, sem a anterior esperteza e profundidade de pensamentos e de lucubrações mentais. Se nós nos disséssemos Leonardos Da Vinci, aí viria o estudo grafológico a intentar desvendar mistificações e subterfúgios de espíritos malignos ou mesmo do próprio psicógrafo, que, coitado, se veria na rua da amargura, apontado por todos como falso ou presunçoso. Leonardo escrevia com a esquerda e de trás para diante? Então, o nosso manuscrito, infeliz e tacanho, ficaria simplesmente anulado diante da sapiência dos terrícolas desconfiados e descrentes.
Mas não se percam os nossos leitores por mencionarmos o nome sagrado da extraordinária figura medieval. Aqui não há mais que Manuéis, Joões e Hermínios obscuros, Marcelos e Maciéis desconhecidos, Augustos e Otávios, imperadores só nos nomes, algumas Marias e Martas sem santidade e outros tantos ignorados aluninhos provindos das zonas mais trevosas do báratro, alcançando agora a distinta condição de escrevinhadores de primeiras letras, quase sempre amanuenses de transcrições de anotações de aulas, a sofrer, na elaboração conjunta com nosso abnegado mediador.
Eis que assoma à tribuna, neste exato instante, a figura amiga e saudável do velho-jovem tio Lúcio, protetor e companheiro, que deseja manifestar a mais intransigente satisfação por ver o trabalho progredir e o volume de mensagens aumentar significativamente.

É de nosso interesse, após longo estio em que as nossas recomendações e conselhos a respeito da datilografia como que secaram, voltar a deixar escorrer manancial de louvor e estímulo, à vista da precisão com que os avisos são intuitivamente anotados e conscientemente cumpridos.
Vamos, dentro de mais alguns dias, iniciar a preparação dos originais de outra equipe, preocupada em demonstrar a evolução espiritual de determinadas entidades sofredoras, a chamada Equipe da Luz (Estudando Socorrismo). É bom estar alerta para certas alterações de caráter doutrinal que se farão, principalmente no que respeita, provavelmente, à necessária inclusão de certas observações. O irmão Augusto estará à testa do grupo e lhe transmitirá, no instante da preparação dos originais e até mesmo durante o ato datilográfico, as instruções cabíveis.
Não se atemorize que nada de excepcional está para acontecer. Viemos preveni-lo para que esteja ainda mais atento. Para isso, ofereça prece de abertura dos trabalhos, reorientando suas orações ao Pai, de forma a vibrar com ainda mais propriedade e emoção, para favorecer grau de imantação ainda mais perfeito. A prece que antecipou este trabalho servirá para balizar o que estamos sugerindo. Vá sempre com muita calma que tudo está absolutamente sob controle.
Quanto à publicação, esse passo é o menos importante agora. No momento certo, estaremos ao seu lado para providenciar o que for necessário.
Fique com o Grupo do Amor para seu habitual exercício. Desse grupo fazem parte algumas figuras de projeção social em suas derradeiras encarnações, mas nos pedem para que evitemos a tentação de levar o leitor a imaginar quem possam ter sido. Que o nome coletivo consiga abafar a inexpressiva produção deste momento de reflexão, a respeito de verdades que nem sempre estiveram presentes nas meditações a que procederam em suas fantasias de encarnados.
Vamos todos orar prece compungida de agradecimento pela facilidade que encontramos para este contato mediúnico.
Lúcio e companheiros.







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O OLHO DIREITO





É conhecida a assertiva do Mestre segundo a qual não deve saber a mão esquerda o que prodigaliza de benefícios a mão direita. Podemos dizer o mesmo quanto ao olho. Que não veja o direito o que o esquerdo está a observar a respeito da vida e dos costumes dos irmãos.
Se é certo que não devemos julgar os atos dos outros, porque pela medida que medirmos seremos medidos, não nos impede a divina lei do procedimento evangélico de reconhecer quais os comportamentos corretos e quais os incorretos em que incidem os nossos semelhantes. Sabemos que é mais fácil observar o cisco que se esconde sob as pálpebras de nossos irmãos do que notar a trave que nos perturba a visão, no entanto, é preciso que tomemos consciência de como realizar a vontade do Senhor, para o que a observação do desempenho de nosso próximo é fundamental. Mas não saiba o olho direito o que vê o esquerdo, para não se constituir a falha motivo de escândalo, nem a correção, princípio de inveja.
Que nossa mente se torne saudável e que nossos hábitos possam pautar-se pela exemplificação dos que conseguiram bem compreender os ensinos bíblicos das leis de Deus e os encaminhamentos evangélicos de Jesus.
Se de nossas observações frutificarem palavras de apoio ou avisos de prudência, saibamos abrir nossa boca, sem ferir susceptibilidades, pois pode estar ocorrendo que o irmão de mau proceder esteja lutando para superar as suas dificuldades sem lucros ponderáveis e visíveis a curto prazo, pois há males que ficam arraigados nas pessoas e que demoram para ser definitivamente extintos. Por outro lado, palavras de largo elogio podem constituir-se em condenável atitude de afago de personalidades que estão a se esforçar justamente por se desvencilharem de tenaz amor-próprio e egoísmo, de sorte que o reconhecimento de vitórias pode meramente significar incentivo à jactância.
Vamos obrar com muito amor, com desprendimento e com simplicidade; mas não vamos esquecer-nos de que somos criaturas inteligentes, dotadas de inúmeros recursos intelectuais propícios para o febricitar das qualidades quando intempestivamente utilizados. Sejamos prudentes, que a prudência é das virtudes de maior envergadura para quem recebeu o apanágio da facilidade mental.
Quando a pessoa é lerda mentalmente, parece ser-lhe natural o ato moroso e comedido. O homem provido de alta inteligência não se contém diante de problemas cujas soluções atinge com rapidez e, muitas vezes, precipita resultados, atormentando o irmão menos célere em seu raciocinar. Que esse não seja caso de desconhecimento da lei da caridade e do respeito que todos devemos merecer uns dos outros.
Reflexão segura para contenção dos arroubos intelectuais é saber que esse dote é singularmente relativo à entidade encarnada, podendo a razão considerar-se como fator de incremento que o Criador possibilitou ao homem para aplicação em favor de seu crescimento. Mal empregada, a inteligência, como tudo o mais, vai constituir-se em empecilho para o desenvolvimento. Ao se saber que, ao retorno à esfera espiritual, todos os seres readquirem a sua condição primitiva, ficando na carcaça que se deteriora as suas propriedades cerebrais, diminui-se a ênfase que se dá a essa qualidade, principalmente se o indivíduo for realmente bem dotado e se compenetrar de que os sentimentos, nesse aspecto, têm repercussão muito superior na formação do tônus de equilíbrio do espírito, no que respeita à sua postura diante da existência.
No mundo espiritual, portanto, a razão irá colocar-se a serviço do indivíduo, de modo que aquilo que o espírito é independe da quantidade ou da qualidade desse atributo, mas da maior ou menor condição que tem de fazer uso dele. Isto necessariamente significa que todos têm o mesmo grau de inteligência no plano espiritual, mas as suas faculdades morais é que determinam a maneira mais ou menos perspicaz com que vão lançar mão dela. É como se fosse determinada ferramenta na mão do experto ou do leigo.
Para exemplificar, imaginemos cinzel na mão de artesão, de artista ou de carpinteiro. Cada qual iria poder elaborar obra segundo sua concepção da função da ferramenta e da habilidade adquirida em seu domínio de utilização. Se pensarmos em escalpelo na mão de médico, de açougueiro ou de sapateiro, teremos exemplo mais grosseiro e significativo. Você mesmo, caro amigo, que exemplo escolheu?
Eis revelada a nossa intenção: a inteligência, assim como o poder de amar, varia, na Terra, de pessoa para pessoa, muitas vezes, segundo a formulação de sua contextura material, ou seja, de sua organização corpórea e mental. No etéreo, esses atributos vinculam-se ao grau de desenvolvimento dos espíritos.
Por isso é que recomendamos prudência aos inteligentes e contenção aos sábios. Vamos devagar na descoberta da essência da vida, pois pode acontecer de estarmos endividados por mau uso justamente das qualidades que nos parecem constituir-se em apanágio do presente encarne.
Limitemo-nos a observar a vida com o olho esquerdo, sem que o direito saiba o que possa estar acontecendo ali bem pertinho. Sabemos que nossa figura é simbólica e, portanto, capenga. Sabemos que as mãos podem ter autonomia, de sorte que dizer que a direita possa ficar sem saber o que faz a esquerda é bem mais compreensível. Então, caro amigo, veja na nossa figura dificuldade ainda maior: para impedir que o olho direito saiba o que vê o esquerdo, só mesmo cerrando a pálpebra. Façamo-lo sem medo de estar errando, no justo interesse de nosso progresso. Estimemos os dons que Deus nos propiciou mas moderemos o nosso apetite, para reingressarmos um dia no campo do etéreo com ampliada desenvoltura de aplicação de nossos recursos racionais e emotivos.
Iniciemos já a nossa caminhada em favor do nosso progresso e façamos de tudo para que os olhos de nossos irmãos só vejam em nosso proceder o reflexo da aprendizagem dos ensinamentos de Jesus.







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O JOIO E O TRIGO





Em extensas regiões do plano espiritual, encontram-se plantados, um ao lado do outro, grandes quantidades de joio e de trigo, desde que Jesus proferiu a célebre parábola. São o exemplo vivo da manifestação do Mestre e para lá são levados os alunos das diversas instituições de ensino, com a finalidade do aprendizado pragmático da realidade moral. Em grandes grupos, são divididos para as diversas tarefas de cultivo.
Em primeiro lugar, são distribuídas as boas sementes e designado o terreno a ser semeado. A par de cada atividade, terá que ser elaborada ampla exposição das reações psicológicas envolvidas em cada fase. Haverá, portanto, necessidade de compreensão da importância do plantio e da conservação do solo, de modo que são exaustivos os trabalhos de amanho da terra, da análise da composição do solo e demais atividades inerentes às preliminares do cultivo dos grãos.
Sendo o estudo extensivo e destinado a todos, não vamos adiantar cada manifestação espiritual e moral dos alunos em treinamento. Basta mencionar, a grosso modo, que o trato da terra significará o respeito à natureza, vale dizer, à criação como ato soberano do Senhor, e a necessidade do plantio, o próprio espírito de solidariedade, para atendimento das vicissitudes da comunidade.
E assim vai sendo desenvolvido o trabalho meditado e profundamente explorado no plano filosófico. Até o joio tem sua vez de preeminência, no momento em que determinado grupo se obriga a perpassar por todos os apuros de se transvestirem de seres de grande malignidade e eivados de defeitos, para sentirem todas as reações da maldade de, durante as horas mortas da noite, adentrarem o solo semeado pelas boas sementes para, ao lado de cada uma, depositarem a pérfida ilusão da prosperidade.
São os momentos em que mais se condoem os corações de todos, aqueles quando se procede ao relato da profunda mágoa que assoma à consciência de cada aluno designado para preencher os espaços vazios, com a ignomínia da falsidade. O drama se representa com tanta fidedignidade que não há quem não se recorde de passados malfeitos e do arrependimento que os levou um dia ao caminho da redenção. Evidentemente, não há nos grupos quem não tenha ultrapassado essa fase de inveja, de ciúme, de derrotismo diante da superioridade dos que anteriormente se sacrificaram pela evolução própria e dos semelhantes. É esse momento que os mestres aproveitam para demonstrar o sofrimento íntimo de quem pratica os atos de que irão ter de redimir-se mais tarde. Se havia dentre os alunos quem não conhecesse com tanta veemência a dor, o martírio e o desespero dos que rangem os dentes na fúria incontida do procedimento criminoso, aí não mais se poderá alegar ignorância da desorganização mental e moral, pois a revelação é completa, vívida, perfeita.
Mas os trabalhos prosseguem até a ceifa. Muitos desejam desde logo eliminar o joio, permitindo ao trigo que floresça liberto da presença prejudicial de seu improdutivo companheiro. Os instrutores permitem que os que assim pensam desafiem a natureza e procurem por todos os meios identificar as plantas.
Muitos se dedicam a classificar os lotes e a avaliar a seqüência e a disposição para descobrir qual plantação segue distribuição regular e qual foi esparramada na calada da noite. Perdem seu tempo.
Outros tomam amostras e levam à análise percuciente dos métodos laboratoriais mais concludentes. Passam ali dias preciosos na investigação e, quando atingem o conhecimento exato de qual é o joio, qual o trigo, também é chegada a hora da colheita. Perderam seu tempo.
Sempre há quem descubra, por análise espectral avançada, método de diferençar as mudas ainda em fase pouco adiantada de crescimento, mas são impedidos de agir em longa sessão de debates, em que os instrutores levam os grupos à reflexão de que a só eliminação do mal não configura que as criaturas o tenham vencido em seu íntimo. Para configurar o ensino evangélico, há que se dar tempo ao tempo, de molde a possibilitar a total evidência de que há joio e há trigo, pela prova cabal do resultado de sua produção.
Houve caso, inclusive, de equipe emérita que estudou a possibilidade de transformação genética na base da planta, de modo a possibilitar-lhe o aproveitamento de alguma forma. Com muito esforço e trabalho, conseguiram fazer com que muitos pés corrigissem a sua postura existencial para favorecer crescimento produtivo. Tiveram o seu mérito reconhecido e tudo se cotejou com o trabalho do socorrismo ativo, que logra sucesso esporádico sempre que topa com alguma boa vontade do assistido. Todo o procedimento foi anotado e hoje se encontra devidamente registrado nos anais das diferentes instituições. No entanto, além da menção histórica que merece, como em nossa explanação, não serve para mais nada, dado o vigor evangélico dos ensinamentos do Cristo ser aplicado com muito maior proveito e eficiência.
Assim que chega o momento da colheita, reúnem-se os alunos e determina-se que o joio seja cortado em primeiro lugar e queimado. Separam-se-lhe as sementes para nova semeadura educativa. Logo após, trabalham-se os grãos bons, destinando-se os melhores para plantio e os demais para consumo. A atividade ainda perdura por algum tempo, até que se faz reunião festiva em que se consome o pão daquele trigo sagrado, coroamento da longa unidade de ensino.
Como tarefa final, todos devem relatar a experiência de modo absolutamente completo, para oferecer à avaliação dos mestres. Até hoje não se soube de caso de aluno algum que necessitasse refazer o curso.
Este nosso escrito dá pálida idéia do desenvolvimento das atividades, mas fizemos questão de registrá-lo mediunicamente para propiciar aos encarnados idéia de como se refletem no plano da espiritualidade os sagrados ensinos de Jesus. Se uma quarta parte de nossas reflexões fosse desenvolvida pelos mortais, tão-só no que respeita à parábola em destaque, poderíamos dizer que a humanidade estaria em condições de ser salva.
Vamos, amigos, consagrar o nosso estudo, a nossa meditação, mais atentamente a tudo que Jesus nos ofereceu por meio de suas argutas observações expressas sob forma amena e sedutora. Façamos vistas grossas para possíveis imperfeições vocabulares devidas à imperícia dos mensageiros, dos tradutores ou dos editores e exegetas, que gostam de imiscuir-se na sabedoria do Senhor. Leiamos os textos sagrados com o espírito depurado pela oração e, se tivermos oportunidade, concretizemos as experiências morais em grupos de representação, não no intuito de subir aos palcos para evidência de nosso entendimento a espectadores curiosos, mas para que consigamos penetrar na sublimidade dos conhecimentos ali inseridos. Plantemos didaticamente o nosso trigal, para nossa farta colheita de amor.







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O VULTO SAGRADO DO SENHOR





Simplício era dotado do poder da visão mediúnica. Homem simples e rude, tinha sempre a noção mais correta do que fazia, segundo podia observar a figura de seu anjo tutelar a adverti-lo se praticava o mal ou a incentivá-lo diante do bem.
Mas Simplício queria mais. Achava que o fato de contatar o plano etéreo era obra do destino e queria aproveitar-se disto em sua vida particular e efêmera na carne. Não conseguia, contudo, pois, sempre que via a possibilidade de ganhar algum dinheiro extraordinário com a presença de seus amigos da espiritualidade, lá vinha o santo protetor com a indefectível indicação de que o ato não condizia com as virtudes evangélicas a adquirir-se.
Certa feita, esquecido das recomendações, às ocultas, compareceu a certa cerimônia fúnebre em que pôde observar muitos espíritos a mangar dos presentes, pela indubitável falsidade que colocavam nos pêsames e condolências. Examinou a viúva desconsolada e rica e imaginou logo que poderia, aproveitando-se da situação de ter alguém com quem dividir as notações do certo e do errado, fazer valer a sua qualidade especial.
Pôs-se a analisar aqueles que rodeavam a figura magra e atraente da jovem mulher enlutada e percebeu que muitos poderiam ser afastados, tendo em vista que se sentiam temerosos da presença de seres mais potentes vibratoriamente. Estabeleceu, então, sagaz plano de aproximação e, em momento oportuno, ofereceu-se à viúva para contatar o marido recém-falecido. Tudo que faria teria o condão de ser absolutamente verdadeiro para não cair na desgraça da desaprovação do amigo protetor.
O interesse pelo estado do desencarnado não foi tão grande que justificasse qualquer entusiasmo pela propositura do nosso Simplício, mas, ativada a curiosidade dos circunstantes, acedeu a jovem senhora a comparecer à reunião ali marcada.
No dia do encontro, Simplício orou com fervor para que se dignasse comparecer o marido defunto, para dar consolo à mulher. Dito e feito, durante a sessão, pôde ver distintamente o que faziam os do plano espiritual, de modo que foi capaz de descrever com exatidão a figura apagada do recém-desencarnado, para ali encaminhado por determinação especial de seus guias, uma vez que algo de bom iria acontecer-lhe. De fato, ao dirigir-se à mulher por intermédio de nosso amigo, rogou a ela que mantivesse acesa a chama de seu amor, mas que buscasse esquecer os sentimentos carnais da paixão que os unira. Enfim, precisava a mulher dar curso à sua vida, já que sua saúde estava comprometida pela longa assistência ao enfermo e este não desejava ser o instrumento de seu sofrimento. Aguardasse com paciência o momento do reencontro no plano espiritual. Em lágrimas, a moça pressentiu a verossimilhança das anotações do médium, principalmente porque vazadas em expressões carinhosas que só o marido e ela conheciam em sua intimidade.
Ao término da sessão, manifestou-se ainda outro espírito, dentre os brincalhões presentes, a quem Simplício deu oportunidade de expandir-se em largas observações a respeito da vida e da morte, terminando por permitir-lhe que fizesse o prognóstico de que a viúva se casaria e teria um filho que poderia bem ser o reencarne do falecido. Nesse momento, surgiu a doce figura do protetor, que fez ao nosso amigo o sinal de desagrado, demonstrando claramente que percebia todo o plano urdido.
Simplício fez questão de contar tudo o que viu e de falar à jovem e maravilhada mulher que a previsão se dera através de espírito irresponsável e que não deveria ser levada em conta. Cumpria a obrigação do aviso mas acalentava a esperança de que não fosse atendido, pois pretendia oferecer-se candidato ao matrimônio.
Com a desculpa de novos contatos, Simplício se fez íntimo na casa e, não demorou, logrou o seu intento.
Casado e bem instalado, passou a dar consultas a respeito dos mortos. O seu caso inicial foi tido na conta de miraculoso pelos que desconheciam os mecanismos mediúnicos, de sorte que pôde a sua fama progredir e atrair círculo seleto de pessoas que iam entender-se com amigos e parentes do plano espiritual. O sucesso de Simplício foi ampliando-se sob a permissão de seus protetores, que viam na assistência espiritual algo bom para a divulgação da filosofia espírita aconselhável para a doutrinação dos que nada sabiam a respeito de tais teses.
Ficou estabelecido entre médium e orientadores que o vulto costumeiro do amigo e protetor nortearia as informações e que, se Simplício se utilizasse da malícia aplicada para a atração e a sedução da esposa, com finalidades espúrias, perderia o dom. O nosso amigo jurou fidelidade ao princípio, de modo que só reproduzia aos consulentes aquilo que lhe era permitido pelo trato.
Durante bons trinta anos, teve a graça do contato sadio, de modo que pôde oferecer apoio e consolo a inúmeras criaturas em desespero e desarmonia pela perda irremediável de parentes queridos. A certeza de que a vida prosseguia, a contar do ponto de transição da morte, sob novas facetas mas integral e segura, propiciava alívio e confiança nos desígnios divinos. Desse modo, Simplício conquistou para a fé espírita centenas se não milhares de pessoas.
Mas um dia chegou o momento da despedida. Em sombria tarde de verão, em meio a cerrada tempestade, Simplício largou a carcaça na beira da estrada e adentrou a soleira do templo erguido no etéreo. À sua frente, o vulto sagrado do Senhor.
Simplício queria encontrar o diabo a ver o Mestre pessoalmente. A consciência lhe atormentara a vida inteira, principalmente após ter feito o trato em que se comprometera a trabalhar pelo bem dos outros em troca da manutenção das comodidades que adquirira pelo meio que vimos. Tivera um filho, mas nunca obtivera qualquer informação de quem poderia ter sido antes. O jovem lhe dera muita satisfação, mas ligara-se muito mais à mãe, que o acalentara, visivelmente, como se fora o reencarne de seu ex-marido. Perpassou-lhe pela idéia, na falta de outro assunto, inquirir do Mestre se fora dada aquela regalia ao espírito em questão.
Jesus, impassível, anuiu com a cabeça.
Simplício viu na informação indício de que poderia ter até contribuído para algo de bom com o seu casamento. Lembrou-se da esposa e resolveu interrogar mais uma vez o Senhor, no sentido de pedir-lhe permissão para constituir-se em protetor dela, já que nunca contatara com qualquer espírito que lhe parecesse exercer tal função.
Novamente recebeu o assentimento do Mestre, imperturbável, como que aguardando alguma manifestação de vontade mais íntima e sincera.
O nosso herói percebeu que não seria dispensado se não enfrentasse diretamente o mais grave problema de sua vida. Fizera-se-lhe a luz: mesmo diante do Senhor, procurava disfarçar e lograr êxito em sua tentativa de engodo, para não revelar o imo de sua consciência. Percebeu, tardiamente, que, para Deus, nada pode permanecer escondido e que Jesus, ali presente, seu representante, teria condições de perceber todos os movimentos mais secretos de seus pensamentos, desejos e emoções. Desta vez, não emitiu palavra. Deixou-se descair sobre os joelhos, abaixou a cabeça e chorou.
Nesse momento, sentiu duas mãos fortes e cálidas tomarem-no pelos braços para erguê-lo. Envergonhado, ia pedir misericórdia ao Pai, quando notou que a figura que tinha diante de si era o seu próprio espírito guardião, com quem tanto havia confabulado na vida. Procurou no templo deserto a figura amena de Jesus e não mais o avistou.
— Meu filho, meu amigo, meu irmão — disse-lhe o protetor —, a figura que estás procurando nunca esteve diante de ti, mas foi o teu coração que a elaborou. A tua dúvida a respeito de teus méritos se justificava diante do fato de te reconheceres em débito. No entanto, trabalhaste muito para cumprires a tua parte em nosso trato. Se foi pelo medo de perderes as regalias ou se o fizeste pelo amor ao irmão necessitado de amparo e compreensão é o que descobriremos juntos, no estudo retrospectivo de cada caso. Prepara-te agora para a evidência de teu desempenho moral.
Do alto da esfera que encimava o teto, branda nuvem branca descaiu à altura dos olhos de nossos irmãos e ali se formaram reflexos poderosos da vida na Terra, como se fossem a recordação filmada a desenrolar-se perante os dois. À medida que as cenas iam desenvolvendo-se, os olhos de nosso Simplício iam marejando, pois percebia que seu coração se expandia em dor com o luto dos irmãos e que sua mente ardia do desejo de ver-lhes os corações tranqüilos e a consciência apaziguada. Espantava-se agora com a frieza que aparentara durante toda a sua vida, pois jamais suspeitara de que agia por impulsos emotivos. Antes, tinha a certeza de que tudo que fizera lhe fora fruto de muita reflexão e argúcia.
Finalmente, ao cabo das transmissões, foi-lhe permitido volver ao local do enterro, para observar a manifestação das entidades envolvidas no ato fúnebre. A esposa chorava, enxugando lágrimas sinceras e saudosas. O filho estava consternado e aflito por ter novas do pai no etéreo. Simplício queria vê-lo ali desenvolver a capacidade mediúnica de que fora apaniguado, mas o amigo recomendou-lhe paciência e prudência. Descobriu, por fim, imensa multidão de seres que lhe reverenciavam a memória e que oravam em seu favor. Eram os parentes que unira em vida e para quem não medira sacrifícios em suas longas preces de solicitação de intercessão. Quando apareceu aos que velavam pelo seu corpo no plano espiritual, foi estrondar de alegria em profunda demonstração de afeto. Simplício perdeu-se em meio aos amigos, a quem agradecia, lacrimoso e feliz, a intervenção que intuíra a seu favor.
Hoje, o amigo comparece a este canto perdido do mundo para relatar a sua experiência, na certeza de que assim o fazendo poderá despertar para a mediunidade e o socorrismo alguns leitores ainda renitentes por considerarem-se infelizes e insignificantes, por desconfiarem que, se obrassem a favor dos irmãos, algo de perverso, de falso ou de hipócrita veriam em suas atitudes. Antes o bem com medo do que o nada com segurança. Façamos, contudo, o melhor que pudermos, esquecidos de nós mesmos, de nossas imperfeições e agruras. Se formos incapazes de sentir amor pelos nossos semelhantes, nem por isso vamos deixar de agasalhá-los, de alimentá-los e de ampará-los. Sejamos frios, se assim nos parecer a nossa maneira de ser, mas deixemo-nos envolver pelo raciocínio de que o mal maior é o desprezo às palavras e ensinamentos de Jesus. Cegos para a luz do etéreo, saibamos, mesmo assim, imaginar o vulto do Senhor a nos aprovar ou reprovar cada ato nosso.
Deus será misericordioso para com todos!







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O MOMENTO DA GRAÇA





O ser humano, quando perpassa pela vida, usufrui vários momentos de poderosa graça.
Na infância, bem ponderados os prós e os contras, podemos perceber que, quase sempre, a alienação em relação ao desenvolvimento posterior do sentimento de culpa é período de extraordinária graça, quando o indivíduo se vê infenso de toda confusão e medo. É bem verdade que há crianças que sofrem horrivelmente, muitas vezes sem consciência do valor do sofrimento, e que vão dar origem a adultos atormentados por problemas diversos, alguns muito fugidios, localizados no fundo da mente, a revelarem-se através de procedimentos aparentemente descontrolados e inexplicáveis pela norma social vigente, outros francamente perversos e proponentes da mais absoluta repulsão aos parâmetros da sociedade, que soem fazer os humanos agredirem, na mesma medida em que se viram colocados na primeira idade.
Mas as ciências já se consagraram ao deslindamento desses procedimentos psicóticos, de modo que há inteira possibilidade de compreensão das causas e recursos para contornar os efeitos, quando não se consegue eliminá-los por completo. O que a nós nos estimula nesse processo de assistência aos sofredores é a tentativa de, por meios evangélicos, despertar-lhes total confiança nos desígnios de Deus, de modo a colocá-los em condições de recuperar, mesmo que parcialmente, a possibilidade de usufruírem momentos de paz na graça do Senhor.
Quando se lida com essas pessoas desajustadas ou irreverentes, o ponto de apoio para que se atinja o limiar da graça se dá sobre o raciocínio de que, conhecida a causa, se tem o poder de desativar o efeito. Daí a assistência se tornar basicamente racional para efeitos que levam a causas puramente emocionais. Se o assistente se deixar envolver por sentimentos de dó, de piedade, de compaixão, é compreensível, pois todo socorro deve provir do amor impresso no fundo da consciência. Se não houver interesse humano pelo companheiro na dor, pelo semelhante necessitado, declara-se inócuo para o servidor o trabalho a realizar-se.
Neste ponto da dissertação, pode-se pensar que os profissionais do ramo estejam totalmente equivocados quando propugnam que o tratamento dos pacientes seja o mais isento possível de contágio afetivo. Não estão. Ao contrário, qualquer indício de que haja interesse particular, especial, ou envolvimento pessoal entre clínico e cliente pode vir a constituir-se em séria barreira para o êxito do tratamento.
O amor que colocamos na base da formação do socorrista é interno e se expande por igual por todas as criaturas, sejam mais ou menos aptas ao convívio social ou espiritual. Esse fundamento emocional, se assim podemos dizer, é a base filosófica sobre que todo o edifício da compreensão e da fé no poder de cura se apóia. Não é porque existem estacas de concreto que firmam colunas rigidamente sobre o solo que devam ficar à mostra em condições de serem atacadas pelas intempéries e demais agentes corrosivos da natureza. Antes, devem ser resguardadas na profundidade da terra e devem tão-só apontar para a estabilidade que transmitem à construção. Essa a função do amor.
O momento em que este conceito se fizer compreensível para o encarnado em tratamento, certamente se constituirá em instante de profunda harmonia com o seu terapeuta, seu guia, seu guru, seu médico, seu instrutor ou orientador. É puro momento de estado de graça e não de dependência psicológica.
Mas não vamos delimitar os momentos de êxtase diante da existência e da magnitude da criação tão-só através dos efeitos da inconsciência da criança e da aquisição da consciência nos adultos. Há outros estados de graça que se obtêm pela felicidade mais concreta de se colocar no mundo um filho, de se lograr a descoberta de algum elemento farmacológico de cura de moléstias até então resistentes aos processos conhecidos, de se obstar algum acidente, de se aprovar lei de amparo à infância, à velhice ou ao trabalhador, e assim por diante. O sentimento de vitória no campo das conquistas materiais promove sincera alegria, dada a compreensão que se tem do bem promovido. Essas sensações do dever cumprido ou do objetivo alcançado se constituem em momentos do mais puro congraçamento humano, que serão levados à conta de valiosos ganhos no campo evolutivo.
Entretanto, o bem que se faz na esfera da ajuda moral, diretamente, como o aconselhamento ético, a manifestação estética representativa dos apanhados filosóficos da verdadeira sabedoria, sejam poemas, esculturas, quadros ou peças musicais, a pregação apostólica, a elucidação dos processos cármicos, o direcionamento para a virtude e para Deus, contém em si transbordamentos mais harmoniosos e promove sentimentos mais elevados e mais puros. Acima de tais êxtases, só os proporcionados pelo estágio místico superior que determinadas criaturas alcançam na vida e de que todos nós um dia poderemos gozar no instante da perfeita identificação dos valores divinos impressos no espírito humano.
Esperamos que nossas humildes observações correspondam, em nível de expectativa, pelo menos, às lucubrações de nossos caros leitores, em seus momentos de abandono ao raciocinar e ao sentir filosófico. Se cada um de nós pudermos dispor de alguns minutos todo dia para a reflexão a respeito de tudo de bom que nos oferece o Senhor por meio da natureza, que nos dá vida e nos sustenta, por certo, aos poucos, iremos adentrando estado de graça que nos enlevará e nos arremeterá incoercivelmente à presença do Pai. Não há que orar, nem que chorar, nem que ajoelhar. Também não há que raciocinar, que sentir ou que sofrer. Não há que rir, nem que se extasiar, nem que se admirar ou agradecer. Basta deixar a vida correr e possibilitar ao ser a percepção da pulsação universal, momento em que os fluidos espirituais perpassarão pelo organismo, pela mente, pelo perispírito, permitindo ao espírito sentir-se pleno como no exato instante de sua criação. É o estado superior da contemplação, sem pensamentos, sem memória, sem angústia, sem dor, sem ânsia, sem temores. É a graça divina a nos possuir e a nos arrebatar.
Aos poucos, as sensações do mundo denso vão restabelecendo-se, o sangue, através da pressão exercida, vai dando-nos a noção da vida, o coração faz-se presente, os músculos se contraem e se distendem em seu ritmo normal, o oxigênio faz o seu papel de regulador das funções orgânicas e a mente volta a oprimir-se com as habituais preocupações. Mas o momento da graça se fez presente a comprovar-nos que Deus é Pai e vela por nós.







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O BEM-AVENTURADO





Antigamente, o homem buscava na realidade a confirmação para suas imagens mais íntimas. Se desejava alargar as vistas, ia à beira da praia e julgava a grandiosidade de Deus por aquilo que era capaz de açambarcar do horizonte longínquo. Era um perfeccionista em si mesmo, pois se considerava apaniguado por poder assimilar idéias tão abstratas, a ponto de dizer-se o rei da Natureza, o primeiro da Criação, o ser feito à imagem e semelhança do Criador.
Mas o homem precisou apequenar-se diante de suas próprias descobertas. Para além daqueles horizontes, mais havia. Quanto se julgava grande por poder perceber a pequenez da gota, assombrava-o agora a grandiosidade dela diante das moléculas, dos átomos, dos núcleos e de seus componentes. Imaginou-se grande pela abrangência de sua capacitação de ver; precisou julgar-se ínfimo pela sua incapacidade de compreensão diante do que via, do que intuía, do que imaginava. De sua própria dedução de grandeza originou-se a sua noção de pequenez.
Bem-aventurados os que perpassaram por tal fase de desilusão, pois deles será o reino dos Céus! Esse espírito de humilhação necessário para a compenetração da real dimensão humana deve postular para si lugarzinho minúsculo ao lado do Senhor, pois haverá que considerar-se que o Criador não fez o homem ou qualquer criatura para arremessá-los de vez na voragem dos tempos, da insensatez e incompreensão da verdade.
A vontade humana, acima referida, de querer ser único diante da benignidade do Pai, transformada agora em inquietante condição de inferioridade, transmudar-se-á em infinita glória no momento em que todos forem capazes de reconhecer na miserabilidade de sua condição existencial a própria grandiosidade do Criador. E é essa transformação que intentamos ajudar o nosso irmão encarnado a realizar. Esse objetivo, contudo, não nos satisfaz plenamente, pois julgamos que o Cristo já ofereceu todos os recursos para que não houvesse mais crimes e deserções. Mas o homem teima em se proclamar grandioso, confundindo até as palavras acima que expressam a sua grandeza diante do Pai, em proveito de interesses de subterfúgios diante dos compromissos e obrigações cármicos.
Não deveríamos estar a profligar ações más nem a intentar traçar caminhos a seguir, embora o façamos com extrema boa vontade e extraordinário espírito de confraternização. E de onde provém essa superioridade dos pregadores? Não se trata de superioridade mas de antecipação da compreensão, tendo em vista pesados sofrimentos que desejaríamos evitar para nossos confrades.
Irmãos, vamos serenar a nossa angústia e atenuar o nosso desespero diante da suposição de que tudo que o Pai nos deu é preciso conquistar com sacrifícios e em dor. Deus nos propiciou condições perfeitas de reparação dos males e nos ofereceu recursos de que não nos aproveitamos para debelar o influxo das viciações que insistimos em permitir que se assenhoreiem de nós. Se somos tão vorazes de bens materiais e se sabemos que a vida se esvairá de um instante para outro, por que não nos aproveitarmos do momento presente para fazer ao Pai a demonstração de nosso agradecimento e de nosso amor pela vida que nos proporcionou?! Elevemos o nosso pensamento a ele e roguemos-lhe a devida compreensão deste nosso ser em desenvolvimento espiritual e em desfazimento físico. Solicitemos-lhe que nos revele o significado da existência, porque isto nos despertará para a verdade. Tenhamos fé em que tudo decorre segundo os padrões estabelecidos pelo Pai para a regência da Criação, segundo as leis estatuídas. Saibamos que somos nós que desvirtuamos a nossa visão e compenetremo-nos de nossa significação, sem acrescentar méritos nem menoscabar a dignidade que foi depositada em nós.
Não aceitemos ficar à margem da vida, esquecidos dos poderes mais elevados do plano espiritual, para o que devemos reconhecer nossa incompetência e pedir amparo, força e luz, na certeza de que seremos atendidos.
Bem-aventurados os homens que se dedicam ao agradecimento das benesses recebidas, pois deles será o reino de Deus!

Esta mensagem restabelece os nossos vínculos com aqueles que têm julgado os nossos ditados demasiado complexos. A mensagem anterior, intitulada O Momento da Graça, buscou incorporar ao conhecimento humano a atitude de total desprendimento do meio ambiente, simbolicamente considerado como local em que se situa o ser, para religação ao plano da espiritualidade superior. O mistério dessa conquista pode afrontar a muitos que não se julgam merecedores sequer da libertação do peso da miséria mais perniciosa para seu desenvolvimento físico. Há indivíduos que não têm sequer o apanágio da leitura, para quem até a simplicidade do texto acima está proibida. Que dizer, então da complexidade ideológica da posição filosófica considerada na outra proposição?! Pode parecer até algo totalmente obstrutivo e absolutamente alienador.
Claro está que nossa intenção não visa à separação das pessoas, mas a sua união em torno do ideal comum dos espíritos de luz encarregados da evangelização do orbe terráqueo. Essa nivelação e igualdade entre todos, todavia, não depende, evidentemente, das providências do etéreo, que se limita a observar a disposição atual das sociedades e das consciências e a revelar a necessidade daquela equiparação. Assim sendo, está-se permitindo que mensageiros do plano espiritual venham revelar aos encarnados toda a gama da capacitação a que poderão aspirar, desde que para isso dediquem a sua atenção, o seu trabalho e o seu amor, sentimento considerado aqui como a força motriz para o atendimento das diretrizes evangélicas propugnadas por Jesus em seu ministério.
Havemos, portanto, que compreender o nosso desiderato e reconhecer que o homem é deveras pequenino, sempre que se considerar dono do mundo em sua restrita visão carnal de horizontes delimitados por inteligências comprometidas com interesses de manutenção, tendo em vista o repúdio que se observa ao sacrifício das posições cômodas delineadas pelo arcabouço social vigente.
Vamos todos orar em conjunto: sábios capazes de reconhecimento da importância do estado de graça obtido pela aquiescência e benevolência do Pai ou míseros mortais comprometidos pelo carma mais penoso, imposto como resultado de atitudes irresponsáveis e cerceadoras do crescimento espiritual. Saibamos o que pedir para obter o de que mais necessitamos, ao tempo em que sejamos capazes de reconhecer estar sendo atendidos.

Pai nosso, de infinito amor e bondade, eis, diante de vós, vossos filhos arrependidos. Sabei, Senhor, que reconhecemos a nossa pequenez e que chegamos a tal conhecimento após analisar cada ato em desacordo com vossas leis. Mas sabemos, Senhor, que possuímos os mais maravilhosos dons da Natureza, pois somos criaturas vossas. Por isso, não nos abandoneis à nossa sorte, Pai; antes, amparai-nos em nossa miséria, enviando em nosso auxílio os vossos filhos mais fiéis e impedi-nos que nosso orgulho possa ferir os princípios básicos do Socorrismo Fraterno.
Permiti, Senhor, que nossas últimas forças se destinem aos amigos situados em condições tão inferiores que nem conseguem intuir a vossa benignidade e o vosso amor, rejeitando até a si mesmos, como se fossem os seres mais abjetos. Para esses irmãos na ignorância e no vício é que vos pedimos, pois eles mesmos não conseguem fazê-lo. Dai-lhes, Senhor, a condição da evolução, para que possam reconhecer-se filhos vossos, mesmo na angustiosa situação em que se encontram. E a todos nós fazei que sejamos agradecidos e humildes, para podermos sentir o quão bem-aventurados somos.







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O AMOR RECONHECIDO





Ontem (20.5), se deu a passagem do Dia Mundial do Mau Humor. Por piedosa atitude de Deus, o homem pode ufanar-se de patrocinar o culto do mal-estar e da dor, já que possui para si o dom do livre-arbítrio. Uma vez desencadeada a idéia da sagacidade das pessoas, não mais se admite que ninguém possa contrariar o que tiver sido estabelecido.
Hoje, esquecido da visão apropriada para o mau humor, o homem desperta para outras tentativas, com o fim de se distrair e empurrar a vida com a barriga.
Certamente, as facécias são preferíveis à soturnidade e a esperança de se conseguir conforto intelectual deve prevalecer sobre as frustrações e o pessimismo. Por isso, não vamos censurar que os humanos se divirtam um pouquinho. Seria demasiado grave exigir-lhe continuada ponderação e sofrimento. No entanto, o que temos visto é que, em geral, os indivíduos primam por disfarçar a realidade, colocando sobre ela os mantos impenetráveis de seu egoísmo e de seu orgulho, para parafrasear o nosso Eça. De resto, o apetite voraz das paixões e a descoberta contínua dos prazeres têm proporcionado à maioria tormentos integrais de esquecimento dos objetivos pelos quais nasceram.
Agora que estão encarnados, os homens buscam satisfazer os seus cúpidos desejos de vanglória, ensejando-se oportunidades de manuseio de bens que só lhes poderão trazer supremacia em relação aos demais. Deixemos bem claro o nosso pensamento: os homens só fazem aquilo pelo qual lutaram tenazmente, mas a sua sobrevivência em condições de supremacia, qualquer seja a esfera de sua atuação, os conduz por descaminhos intelectuais e morais de sérias conseqüências no campo espiritual. Seria preferível que não tivessem tanta liberdade de ação ou que sua compreensão se despertasse mais nitidamente para o volume das virtudes a serem adquiridas e das viciações a serem abandonadas.
Cá estamos argumentando diretamente a respeito das atitudes dos encarnados, esquecidos até mesmo de que o nosso discurso é também o produto da própria lei que rege o comportamento de todos. Se nós fôssemos tolhidos em nossa manifestação, certamente iríamos ter do que nos lamentar, pois impossibilitados ficaríamos de exercer o nosso ministério de amor.
Esta consciência do próprio ato é que tem faltado àqueles que se espojam na carne, como se fora essa a única existência possível para os seres. É preciso, segundo seu ponto de vista, aproveitar o tempo, carpere diem. Empregamos a vetusta expressão latina para demonstrar que a tese é antiga e que os homens continuam inalteravelmente sob o domínio de seus desejos mais subalternos.
Vamos encerrar a nossa pregação com o aviso de que é de obrigação para todo grupo de alunos da Escolinha de Evangelização pregar aos que se desviam de sua rota cármica a necessidade do regresso aos primitivos objetivos. Se o fazemos protocolarmente e através de roteiro conhecido, em estrada batida e rebatida, é porque queremos desvencilhar-nos de nossa tarefa do modo mais próximo da verdade, e esta está totalmente contida na preocupação daqueles que conhecem o caminho da dor e do sofrimento e vêem os irmãos seguirem o traçado, sem consciência das conseqüências funestas de sua imprevidência.
Havemos, pois, irmãos, que retornar à nossa habitual maneira de ver o mundo, que se apresenta pleno de desafios e de estimulantes aventuras para todo aquele que é capaz de reconhecer os méritos da criação. Vamos entreter-nos com as facécias do bom humor, até mesmo quando se apresenta transvestido, de forma a provocar as reações espontâneas de quem pretenda envolver os irmãos na alegria passageira, efêmera, do leve contato do dia-a-dia. Mas não nos esqueçamos de que, por trás de cada brincadeira, pode esconder-se a seriedade da obrigação e do dever.
Se lhes dissermos que nosso ditado está ensejando-nos motivos de bom riso entre os companheiros, acredite, porque nos vemos bem atrapalhados com este desenvolvimento que nos parece pífio e absolutamente sem sabor. Os que sabem de nosso desforço em tornar as mensagens mais plausíveis e agradáveis conseguem auxiliar-nos com suas vibrações amorosas. Os demais, contudo, os que verdadeiramente desejam que nosso objetivo se veja inteiramente cumprido, se limitam a orar contritamente, em apoio ao nosso desiderato de concluir os nossos deveres.
Cada pessoa apresenta particular reação diante do esforço que os companheiros apresentam em sua performance escolar, entretanto, todos os colegas, assim que convocados para o socorrismo, se apresentam com boa vontade e desejo de cooperar.
Do mesmo modo, gostaríamos de ver agirem os nossos leitores. Ao contatarem com o nosso texto, saibam ver nele as nossas dificuldades, a nossa insuficiência e a nossa inaptidão, mas reconheçam a nossa dedicação, a nossa preocupação e o nosso empenho de levar-lhes algo com que ocupar o seu intelecto, além das habituais manifestações de verberação e de acrimônia.
Se alguém deliberar perseguir os mesmos objetivos de compreensão do humano devir e se se consagrar à pesquisa do valor da vida na face da Terra, em função do desenvolvimento e do crescimento individuais, para a busca da glória em honra do Senhor, muito nos agradará e justificará todo o nosso trabalho. Caso contrário, pedimos que relevem a nossa iniciativa, fruto de nossos parcos conhecimentos, e se dediquem com mais apego e atenção às mensagens de nossos companheiros, mais afeitos à pena e ao pensamento. De qualquer modo, caso vejam algo de bom no que conseguirmos até o final desta transmissão, é porque chegaram a compreender intuitivamente, pelo menos, que a bondade de Deus se esparge por todas as suas criaturas.
Fiquem, portanto, na paz do Senhor e orem fervorosa prece para que a luz se faça para todos nós.
Grupo do Amor, tendo dado oportunidade a que um de seus componentes pudesse demonstrar, através de atrativo envolvimento pessoal, que as razões mais ponderadas para o entendimento da necessidade da aquisição das virtudes ganham em propriedade e eficácia, quando envoltas por sentimentos de piedosa fé no poderio do Senhor. Que seja esta a preponderância que se requer dos sentimentos sobre os frios cálculos do raciocinar e agir livremente. Que tudo possa conduzir-nos ao Senhor! Felicidades!







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O DESEJO SAGRADO





Após vinte longos anos ao lado da esposa, o sofredor percebeu que a vida lhe houvera sido por demais penosa. Em prece de grande ardor, propôs-se, perante Deus, a acompanhar a infeliz criatura até o final de seus dias, mas manifestou o desejo sagrado de vir a livrar-se dela para sempre.
Lembrava-se dos primeiros tempos, em que viveram felizes, principalmente com a chegada do primogênito. Mais três criaturas se fizeram acompanhar, de modo que o amoroso pai tivera ensejo de muito labutar para oferecer a todos crescimento sadio e proveitoso.
Mas a esposa lhe fora infiel. Tendo arrumado amante bem jovem, deixou o lar e embarafustou pela vida, durante largos cinco anos, ao cabo dos quais retornou murcha, abatida e arrependida. O jovem repudiara-a por outra e, não tendo para onde ir, buscou agasalho seguro no amor do marido.
Este a perdoou incondicionalmente e lhe deu segurança e afeto. Os filhos, taludinhos, não viram o regresso da progenitora com bons olhos, de sorte que lhe cobravam a todo instante os sacrifícios que lhes impusera com sua ausência.
Mas tudo se acomodou finalmente, de modo que as crianças foram crescendo e empregando-se no comércio ou na indústria, aliviando a pesada carga do trabalhador braçal.
Fato especial da época da defecção da esposa foi ter sido levado pela bebida por diversos descaminhos, até que encontrou o amparo de acolhedor centro espírita, na pessoa de amigo da família, temeroso por ver as crianças perderem-se com o desvario da mãe e a incúria do pai.
Deveras, Antenor passara por maus pedaços, mas, por ocasião da volta da esposa ao lar, compenetrara-se já de que a vida propicia momentos de sofrimento para testar a força e a determinação dos encarnados, servindo-lhe ainda para o devido crescimento em virtudes. Tudo isso ouvira falar nas palestras do centro e cada palavra lhe havia soado aos ouvidos como a mais pura verdade.
Mas Etelvina não conhecera essa fase do marido quanto à recuperação moral e aceitação espiritual do carma que lhe fora destinado. Crendo-se abandonada nas noites de sessões, a que se recusava terminantemente a comparecer na companhia do marido, rejeitada pelos filhos, que sempre buscavam fora de casa o que fazer, nostalgicamente presa ainda aos enlevos físicos que gozara ao lado do amante, resolveu que o melhor para si era voltar à vida livre, sem, contudo, desligar-se da proteção do teto que a agasalhava. Às escondidas, sem que precisasse arranjar desculpas, enquanto o marido ia trabalhar e os filhos ficavam fora ocupados com seus serviços ou estudos, a nossa pobre amiga ia encontrar-se com diversos homens com quem mantinha íntimo relacionamento. Não se comprometia com nenhum, não oferecia ensejo a descabidas paixões, mas se espojava nos vícios do sexo e dos psicotrópicos.
No entanto, Antenor acabou por desconfiar das atitudes cada vez mais despudoradas da mulher, principalmente porque principiou a fugir dele nos momentos de contato íntimo. As olheiras e as atitudes desencontradas provocadas pelos tóxicos acabaram por desvendar ao marido a vida particular da esposa. Pouco bastou investigar para perceber o que se passava.
Principiou, então, a sua luta surda para recambiar a mulher ao bom caminho. Não fez escândalo, mas foi fechando-lhe as portas por meio de estratagemas felizes, como quando levou para morar consigo certa irmã mais velha, viúva, a quem confidenciou a necessidade de estreita vigilância. Não revelou os últimos acontecimentos, mas os cinco anos de abandono foram suficientes para justificarem a sua prevenção.
Assim, após dois anos da descoberta, ei-lo diante de Deus a rogar-lhe que lhe permitisse abandonar a liça após o desencarne. A luta parecia-lhe injusta e desigual, uma vez que jamais dera ensejo à esposa a qualquer recriminação, tendo-se mantido casto durante todo o tempo em que se vira sozinho a cuidar dos filhos.
A vida reservava-lhes ainda mais dez anos de convívio infeliz e contido, em que não faltaram tentativas baldas de novas aventuras, sempre frustradas pelo aparecimento oportuno do Antenor, avisado pela irmã ou por algum dos filhos por ele colocados de sobreaviso.
Etelvina não desconfiara jamais de que estava sendo seguida por toda parte e nunca se absteve de, abertamente, oferecer-se a quanto homem lhe parecesse interessante. Só que nunca deram certo as suas manobras no intuito da concretização de seu ato desatinado. Desconfiar do marido não desconfiou, mas suspeitou das entidades espirituais, pois temia estar tendo todos os seus pensamentos anotados e referidos a ele nos trabalhos do centro.
Se não estava totalmente certa em sua suposição, pelo menos chegara perto, pois quem estava por trás da vigilância não eram os protetores do marido mas os dela mesma, que se encarregaram de mantê-la pudica enquanto responsável pela educação dos filhos e pela estabilidade emocional do esposo. Se ela tivesse decidido, a qualquer tempo, novamente, sair de casa em caráter definitivo, não teriam como obstruir-lhe a intenção, mas, ao permanecer junto à família, puderam exercer o seu dever, mesmo que à custa de incutir-lhe na mente a idéia de que o marido pudesse estar ciente de todos os seus malévolos desejos.
Um belo dia, Etelvina, ao atravessar a rua, desatenta para o trânsito em virtude de estar dando bola para um comerciante à porta de seu estabelecimento, foi colhida por automóvel em alta velocidade, deixando ali mesmo sua vida.
Ei-la de regresso à pátria espiritual. Seus guias e protetores desvelaram-se ao seu lado, até conseguir que se desvencilhasse dos ásperos liames que a prendiam à matéria e, por anuência especial dos mentores do grupo, levaram-na para breve repouso e rápida recomposição perispiritual, pois lhe haviam programado a assistência ao velho marido. Se tivesse de resvalar para as trevas, no devido tempo, ser-lhe-ia dada a oportunidade à vista de seu merecimento. Por enquanto, era trabalhar, o que lhe foi minuciosamente exposto pelos seus guias, os quais se obrigaram a acompanhá-la dia e noite, sem que tivesse sido informada disso.
Antenor, assim que voltou do cemitério, começou a análise de seu procedimento junto à esposa. Sabia-se traído e, até mesmo, desprezado. Conhecera as reações emocionais da esposa e vira nela a personagem que lhe fora predestinada como estigma de possíveis falhas de caráter que tinha necessidade de sanar. As primeiras impressões que ia colhendo de seu raciocinar apontavam-lhe o caminho da recuperação e do bom sucesso. Parecia-lhe ter cumprido a sua missão, jamais tendo sequer levantado a voz para acusar a volubilidade da esposa. Antes, nos últimos tempos, ouvira calado inúmeras recriminações por se sentir presa em casa, sem direito a diversão alguma, a não ser um ou outro cineminha ou festa familiar. A televisão não a satisfazia em absoluto.
Mas Antenor teria pela frente mais bons vinte anos para meditar. Após o primeiro, julgava que sua atitude poderia ter sido mais cordata e condescendente. No segundo, não via nos caprichos da esposa mais do que o reflexo de sua própria ignorância no trato com as mulheres. No terceiro, chegou a imaginar que, se tivesse dado total liberdade àquela criatura, talvez ela pudesse ter visto nele, realmente, aquela figura de guardião apaixonado. No quarto, decididamente concluiu que sua prece havia sido precipitada e que, talvez, devesse ainda auxiliar a esposa no etéreo, pois a imaginava às voltas com doloroso arrependimento. No quinto ano, já não tinha mais dúvidas quanto a não ter tido procedimento correto diante da doutrina espírita, que determinava como padrão de comportamento a lei universal do amor. No sexto ano, começou a desconfiar de que o culpado do procedimento da mulher tinha sido ele mesmo, sempre muito preocupado em trabalhar e dar assistência aos filhos, relegando-a a papel extremamente secundário. Ao cabo do sétimo ano, ajoelhou-se e pediu perdão à companheira, prometendo-lhe nova existência carnal na qualidade de apaixonado serviçal, a lhe possibilitar ensejo a todo crescimento moral a que tivesse direito. Enfim, no dia da despedida da carne, Antenor antevia o esplendor do regresso ao etéreo, onde seria recebido pela inefável figura de anjo de candura e pureza em que transformara o espírito da esposa.
Em vão intentara contatar com ela nas sessões de doutrinação a que comparecia regularmente. Em vão consultara os seus guias e protetores a respeito do paradeiro daquela entidade, a quem se via preso por laços de indestrutível contextura moral e espiritual. Em vão procedera às preces mais comovidas para intuir a presença daquele ser maravilhoso ou se deixara embalar pelo sono mais profundo, para reconhecer em sonho a figura esplêndida da mulher de sua existência.
Aqui chegando, sem sofrimento, buscou entre os espíritos presentes aquele que maior luz desprendia de sua organização perispirítica e arremessou-se-lhe aos pés, clamando por perdão, pois via naquela luz o reflexo da pureza e da excelsitude de seu fanal da misericórdia divina.
O irmão que o recebia não permitiu que a farsa prosseguisse. Desde logo identificou-se como seu anjo protetor e despertou-o para a realidade de sua vida. Fora absoluta e inconscientemente levado a acreditar em que a esposa fosse criatura perfeita. Deixara-se enovelar pela obsessora entidade, mercê de jamais ter apaziguado o seu coração. Agiu sob impulso exclusivo de seus sentimentos e relegara o conhecimento espírita ao campo do progresso individual e pessoal. Aceitara a influenciação perniciosa, pois antevia a possibilidade da eterna felicidade com o só menosprezo de seu amor-próprio. Imaginara erroneamente que o homem deve aceitar a luta sem julgamentos de valor. Anulara-se diante dos demais, sem humildade e sem brio. Em vida da esposa, aceitava mal o trabalho de conduzi-la ao caminho dos deveres e das obrigações. Temera enfrentá-la no campo das virtudes. Após o desencarne, deixara de refletir a respeito da vida, embora tivesse todo o amparo espiritual e moral das orientações do centro que freqüentava e dos livros que lia. Conhecedor do trabalho de desobsessão, não reconheceu o que se fazia sobre si mesmo. Antes, acomodou-se novamente, agora à situação de possível encarne de subalternidade e de vilipendiação. Muito teria para progredir. Para isso, iniciaria naquele instante a sua próxima tarefa: localizar no báratro o espírito que deixara abandonar-se à própria incúria e retornar à carne para novo desafio redentor. Ficasse com Deus!
Antenor surpreendeu-se com análise tão clara de seus pensamentos mais íntimos. Reconheceu-se na imagem produzida pelo seu orientador e, antes de sair para a pesquisa de obrigação, ajoelhou-se comovido e rogou a Deus perdão para seus pecados, manifestando-lhe o sagrado desejo de ver triunfar o amor que nutria por aquele espírito desditoso, triunfo que considerava necessariamente ter de provir de muito trabalho, esforço e dedicação na compreensão das virtudes que embasam o correto pensar e o puro sentir. Que se fizesse a vontade do Senhor e não a sua e tudo voltaria a correr segundo os princípios da verdade.







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O BENEFÍCIO DA DÚVIDA





Sabemos que existe belíssima mensagem com o mesmo título (in: Estudando Moral Evangélica, Irmãos de Fé), entretanto, vamos desafiar o grupo e solicitar dele novo desenvolvimento que chegue a resultados plausíveis no campo do entendimento da realidade espiritual. Oferecemos aos amigos o nosso melhor instrumento e o incentivo necessário. Vejamos como procedem diante do inusitado, do inesperado e do inoportuno. Felicidades!

Eis que todas as anotações acima poderiam causar em nosso médium profunda dúvida a respeito de quem poderia estar por trás dessas assertivas e desafios. Pelo que se pode presumir, trata-se de nossos orientadores a propor aos alunos algo bastante insólito, como seja o dever de se desvencilharem de tarefa ex-abrupto, quando se sabe que todo desenvolvimento mediúnico de caráter evangélico tem de ter sido submetido, obrigatoriamente, à chancela dos superiores. Então, concluirá o leitor observador, isto significa que até mesmo o intróito apresentado como elaborado ao sabor do improviso faz parte do conjunto da mensagem.
Certamente. Esclarecendo, devemos dizer que o inusitado, o inesperado e o inoportuno se deram no âmbito de nossa Escolinha. O texto resultante é que é trazido para a mesa de nossos trabalhos mediúnicos, pois seria assaz complicado buscar aprender a transmitir por meio da psicografia e, ao mesmo tempo, elaborar todo um roteiro que possa apresentar-se íntegro em suas partes componentes, principalmente porque devemos demonstrar, através desse trabalho escrito, o que estamos aproveitando em nossos cursos, no que respeita à moral e à doutrina espírita, sobre que precisamos velar para mantê-la como base do enriquecimento espiritual de nossos possíveis leitores.
Sendo assim, não veja no teor deste texto, por mais que se aproxime da linguagem de todo dia e por mais elementar que pareça, nada que não tenha sido produzido com muito estudo e cuidado.
Por meio dessa linguagem aparentemente fácil e corriqueira, é intuito nosso provocar reações de dúvida e de insegurança em relação a tudo que estamos deixando impresso no papel, pois achamos que essa é a dúvida a que se referiam os nossos instrutores como benéfica para o desenvolvimento do tino de observação de nossos amigos.
Se não, vejamos. Neste ponto do discurso, pelo menos para o nosso escrevente, as linhas em branco se estendem intermináveis e ele mesmo não vê como possam vir a ser preenchidas proficientemente dando seqüência ao tema em exposição. Sabe que sua atenção está sendo tomada pelo próprio teor do texto, de modo que põe em dúvida, não a nossa capacidade de elaborar o roteiro, que virá a ter fim lógico e coerente com a propositura inicial, mas que o texto acabado não venha a se mostrar digno de pertencer ao conjunto das obras elaboradas pelos irmãos que nos precederam. De resto, a sua experiência tem-lhe demonstrado que, por diversas vezes, as equipes se utilizaram deste mesmo recurso para enfeitar o seu ditado e a argumentação, ao final, se revelou sólida e irretorquível. O que está estranhando agora não é, portanto, a atitude mental, cerebrina, da equipe, mas o fato de ter mantido a imantação bem suave, a ponto de oferecer-lhe campo para indecisões, para hesitações e para meditação profunda a respeito de tudo o que vem escrevendo, como se pudesse, ele mesmo, estar a elaborar a mensagem, à vista daquela mesma experiência a que acima aludimos. É mais um recurso nosso para estabelecimento da dúvida.
Neste ponto, prevenimos ao leitor mais atento e acostumado com os apanhados de caráter mediúnico que, muitas vezes, irão deparar-se com igual situação à acima descrita, na qual envolvemos o nosso escriturário. Quem já passou por isso sabe das preocupações que causam tais atitudes. No mínimo, a atenção desses intrépidos auxiliares encarnados das equipes espirituais deve ter fraquejado e eles pensado estarem sendo vítimas de mistificação ou de animismo. No entanto, a provação faz parte da intermediação entre os planos, para favorecer ao encarnado o aprendizado do trato com as entidades que possam, elas sim, estar desejando falcatruar e enlear o trabalhador. Portanto, amigo, muita fé no próprio desempenho, mas atenção para que as dúvidas suscitadas não venham a constituir-se em empecilho para o seu oferecimento sacrificial ao socorrismo fraterno.
Seja ingênuo, sim, mas da boa ingenuidade de que fala o Cristo ao referir-se que o reino do Pai irá oferecer-se aos pequeninos; ou seja, institua para si o procedimento crítico a posteriori, aquele que agasalha a manifestação da forma pela qual se apresenta, mas que irá submetê-la ao mais rigoroso crivo doutrinal, de sorte que, se provinda das regiões etéreas mais elevadas, trará a segurança da luz da verdade, e, se emanada de criaturas ainda maculadas pelo erro e pelo vício, poderá oferecer-se como meio de se lhes fazer chegar a vibração de nosso afeto e a ternura de nosso amor, através da prece compreensiva de quem quer que todos os seres, igualmente, se reúnam em torno dos ideais cristãos.
Com base nas nossas razões, mais sentimentais que lógicas, esperamos ter comprovado que a dúvida é benéfica quando traz por resultado procedimento sadio e condizente com os princípios evangélicos. Se da dúvida só brotarem desconfianças e negritude espiritual; se da hesitação provierem o azedume do pessimismo e o sofrimento da incerteza de que Deus seja possuidor dos atributos da bondade e da justiça, então, o homem se deixará contaminar irreversivelmente pelas circunstâncias que o envolvem na carne e será incapaz de ver além do panorama que lhe é propiciado pelo horizonte da matéria.
Quem adquiriu certezas é porque estabeleceu para si o princípio da dúvida. Quem só teve certezas, sem nunca se ter deixado estimular pela dúvida, pode manter em si acesa a fé, a piedade e, a rigor, a virtude, mas não poderá compreender em profundidade a ação do amor e o efeito da justiça, correndo o risco de, um dia, ver-se perdido no emaranhado das ocorrências, sem recursos para descobrir a ponta do fio de Ariadne que o retirará do labirinto dos desacertos. Confiará, trabalhará e provará, diante do mundo e de Deus, que está pronto para ser auxiliado e se põe à disposição para ser socorrido. Não se constituirá, por si mesmo, em arrimo seguro para quem quer que seja. Espera receber; não está preparado para dar.
Poderíamos agora terminar a nossa longa dissertação, com a provável frase de efeito esperada pelo leitor, segundo a qual remeteríamos os que duvidassem de nossas assertivas para os raciocínios que eles mesmos estariam empregando para o seu ato de duvidar. Desvencilhar-nos-íamos bem facilmente e encerraríamos, crentes de que teríamos explanado, brilhante e inteligentemente, a respeito do tema proposto. Mas, ao invés disso, vamos propor-nos a dúvida de que o nosso texto tenha atingido os nossos objetivos. Talvez estimulemos o leitor a reflexões mais profundas; talvez obtenhamos de nosso próprio grupo atitude mais coerente com os legados que estamos recebendo de nossos maiores; talvez abramos, todos nós, os olhos para a dificuldade existencial que busca concretizar os ensinos de Jesus. Se dissermos que tudo se resolveu porque o nosso texto chegou, tranqüila, inesperada e logicamente, à sua conclusão, quando momento houve em que as folhas em branco se somavam incógnitas diante do problema que se propunha, fatalmente estaremos iludindo-nos e perigosamente oferecendo ao leitor falsas tábuas de salvação, se náufrago na vida.
Agora que, olhando para trás, vemos tantas palavras argutamente agrupadas para o efeito de responder à necessidade do desenvolvimento do tema do benefício da dúvida, lembramo-nos da frase do Cristo, que respondia ao jovem que desejava despedir-se dos que iam ficar em casa:

“Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o reino de Deus.” (Lucas, 9:62.)

Sendo assim, bom amigo, venha conosco para o socorrismo e arrisque-se, desconfiadamente, a merecer estar no reino de Deus.







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O POTIGUAR DESAVISADO





Nascido nas regiões distantes da capital, o rio-grandense-do-norte não tinha recursos para grandes feitos na vida. Vivia miseravelmente e não se deixava envolver por qualquer idéia que significasse progresso. Um dia, instalou-se na aldeola em que ia buscar o supérfluo para seu dia-a-dia, já que o essencial tirava da terra do patrão a que servia, estranha casa de atendimento espiritual a que se deu o nome de Centro Espírita de Umbanda Arco e Flecha.
Atendia certa entidade evoluída entre os indígenas, Poti, que não permitiu ver seu nome colocado à testa do empreendimento redentor por modéstia e para não desprestigiar, com sua pequena envergadura moral, tão nobre instituição. Sugeriu Arco e Flecha e explicou que as armas não seriam empregadas na caça nem na pesca, muito menos para abater outros inimigos que não fossem os vícios e os maus costumes.
O nosso Umbelino Dias se viu penetrado pela curiosidade, pois tinha transes mediúnicos estranhíssimos, em que via os indígenas da região combatendo os invasores brancos. Parecia-lhe ter vivido nessa época distante, mas tudo se lhe enevoava na cabeça, transida pela mais forte aguardente e carcomida pelos eflúvios do fumo mais denso de rolo, que escolhia na quitanda.
Pois Umbelino encheu-se de coragem e, em noite de sexta-feira, ao invés de se embebedar como habitualmente, aproximou-se da irmandade que se vestia de branco e manifestou o desejo de participar do encontro espiritual. Queria sentir a força das entidades ali reunidas e resolver de vez aquele drama que o intrigava desde a mais tenra idade.
Foi recebido com as devidas cautelas, pois chegou dizendo que tinha visões e que não permitiria ser enganado por ninguém. Deram-lhe modesto lugar para acompanhar os trabalhos e predispuseram certo capataz, encarregado de serenar os ânimos se houvesse distúrbio, para dar-lhe o competente corretivo, caso se aventurasse a perturbar o ambiente.
De fato, quando os atabaques estavam chamando o ponto da encruzilhada, momento em que os espíritos se encontrariam com seus cavalos, Umbelino se projetou para o centro do terreiro e se pôs de joelhos, a clamar por socorro, pois se via rodeado pelos espíritos dos brancos que lhe haviam invadido a aldeia e matado todos os filhos e parentes. Via claramente aquele que se tornara seu senhor e o arrastara, manietado e indefeso, para a cidade distante, onde foi obrigado a servir como escravo. Lembrava-se de ter presenciado muitos de seus irmãos servirem de repasto aos cães e que tivera muito medo, a ponto de se rojar ao solo, prometendo ser fiel ao deus da cruz. Aí suas lembranças se apagavam e, estranhamente, sentia que todos aqueles seus perseguidores não se aprumavam com as vestimentas dos brancos, mas portavam pinturas de festa, como os indígenas de suas lembranças.
Umbelino ia ser retirado do grupo mas Poti, incorporado em mãe-de-santo, impediu que fosse tocado. Estabeleceu-se, então, conversação que bem pouco inteligível foi para quantos estavam admirados, a presenciar os sucessos da noite. A conversa se deu no dialeto indígena da época do descobrimento do Brasil, totalmente desconhecido para o nosso Umbelino em estado de vigília.
Após longo debate, a entidade espiritual recomendou ao nosso amigo que eliminasse o vício do álcool e abolisse definitivamente o fumo. Se conseguisse cumprir a obrigação, deveria comparecer na sexta-feira seguinte para continuar o desenvolvimento de seus dons mediúnicos.
Ao acordar no dia seguinte, a cabeça extremamente dolorida pelos sucessos da noite, Umbelino, ainda de madrugada, saiu a cultivar a roça, com a mente voltada para tudo que lhe dissera a figura imponente do chefe tribal. Não compreendia como pudera confundir aquele autêntico representante das tribos indígenas da região, cujos traços reconhecia nos matutos e nos sertanejos, com a figura impolutamente alva do português comanditário da região à época de suas lembranças. E nessa expectativa ficou a semana toda, rigorosamente alheio à bebida e ao fumo. A importância da palavra de seu ascendente espiritual calara-lhe fundo na mente, de sorte que cumprida foi a obrigação com extraordinária facilidade.
Poti o recebeu com comovido abraço e o fez sentar-se ao seu lado durante a manifestação seguinte. Naquela noite, iriam ser assistidas várias entidades malignas, acusadas de distúrbios vários na região. Estavam ali encarceradas numa espécie de cubículo malcheiroso, apesar dos reflexos cristalinos, como se as barras que formavam a cela se fizessem do material mais puro das entranhas da terra. Umbelino lembrava-se de ter visto em seus sonhos aquelas sanguinárias criaturas: eram os que desbaratavam a aldeia e que friamente dizimavam os seus habitantes. Mas todos eram índios e não brancos; armavam-se de arcos e flechas inoperantes, que serviam para efeito de caracterização, e não dos arcabuzes e paus-de-fogo que lembrava serem portados pelos agressores.
O trabalho da noite foi intenso e cansativo. Cada vez que se separava um dos presos, era levado junto a algum dos cavalos, que quase se alucinava com a maléfica influência vibratória do infeliz. Cabia ao nosso Poti apaziguar a fera no âmbito da espiritualidade, ao mesmo tempo que o doutrinador encarnado lhe propiciava o conforto de sua organização, para o efeito da compenetração das condições em que se via a pobre criatura. Alguns foram encaminhados, ainda presos, para as regiões das trevas, onde seriam soltos com a ameaça de punição se voltassem à aldeia; outros se retorciam de dores e se manifestavam favoráveis ao aliciamento do amor, prometendo regeneração e arrependimento. Estes eram levados por equipes de socorristas para localidades acima da crosta, podendo perceber Umbelino que o desvelo dos protetores era intenso, no sentido de refrear as convulsões e de inculcar na mente dos infelizes a noção de que estavam sendo auxiliados.
Ao acordar na manhã seguinte, o nosso herói ainda tremia pelos sustos que passara. É bem verdade que, durante toda a sessão, nada lhe parecia correr em desarmonia. Era como se já tivesse participado de muitos trabalhos na categoria de espírito. O seu encarne é que não lhe trouxera as condições ideais para a devida compreensão, de modo que as loucuras da noite lhe repercutiam no cérebro como algo assombroso e sobrenatural. A sua fé católica abalara-se completamente.
Na semana anterior, fora à missa mas não se atrevera a comungar. Naquele sábado, criaria coragem e iria confessar-se, pois achava que tudo o que estava ocorrendo em seu cérebro só servia para ensandecê-lo. Tomava-lhe conta da mente certo medo atávico que absolutamente não compreendia. Fora arrastado pela curiosidade. Os acontecimentos foram tão chocantes que sua mentalidade acanhada se predispunha à fuga de todas as responsabilidades.
À noite, não se confessou. Na manhã seguinte, não compareceu à igreja. Estava faltando aos seus deveres. Inconformado com a sua atitude de rebeldia quanto aos valores que aprendera desde pequeno, incrédulo no que concernia ao que vira no centro de umbanda e guardara na memória, desarvorou-se. Aquele dia passou a beber e a fumar, como se isso lhe trouxesse o equilíbrio que mantivera em sua vida de trinta e cinco anos.
No entanto, ao chegar a próxima sexta-feira, Umbelino lá estava no centro, premido pelos sonhos que tivera durante toda a semana, os quais reproduziam as suas aflições de toda a vida, com cores novas e muito maior ação. As suaves visões de sempre transformavam-se em pesadelos horrorosos. Ao se ver tocado pelo irmão Poti, sentiu-se envergonhado pelas recriminações que sabia serem ponderadas e cabíveis. Naquela noite, receberia só os eflúvios energéticos do pessoal em atividade e seria mantido dormente, para não presenciar as ocorrências que poderiam impressioná-lo vivamente. Para lhe velar o sono, foi designada jovem índia, que se encarregou de responder intuitivamente a todas as perguntas que, em estado sonambúlico, tinha o desejo de fazer.
Foi assim que se viu informado de que a maldade dos invasores foi castigada em encarnações expiatórias em que foram reconduzidos à vida na pele dos indígenas revoltados pela supremacia e poder dos homens brancos, enquanto estes não eram mais do que os antigos perseguidos e massacrados irmãos. Por isso é que confundira a visão de uns e outros: na verdade, a justiça de Deus fizera com que os crimes cometidos se pagassem na mesma moeda. Quando Umbelino quis saber que papel fizera em tudo aquilo, foi despertado, para que retornasse ao lar.
Durante aquela semana, o nosso herói não bebeu nem fumou. É verdade que comungara sem confessar, mas o fizera como que desafiando a sua antiga crença, para ver como repercutiria o fato na próxima sessão. O medo cedera e a coragem extrapolava os limites de sua própria compreensão.
Diante de Poti, nova recriminação por ter tomado atitude de rebeldia e de insatisfação. É verdade que a blandície do indígena atenuava a dureza de suas expressões e que a evocação a Deus se fazia de modo a serenar-lhe o coração quanto às intenções da entidade, mas tudo lhe repercutia na alma dolorosamente. Durante a vigília, não sabia decifrar todos os mistérios, mas, em transe mediúnico, o seu entendimento parecia iluminar-se com as luzes da sabedoria.
Nessa noite, foi o alvo de todas as atenções. Após a palestra do irmão dirigente, foi levado à presença de cada irmão socorrista, reconhecendo cada um deles como colaborador seu em obras anteriores, quase todas visantes a desforras e vinganças. Num viu o companheiro com quem emboscara certo inimigo, noutro a parceira que ajudara a envenenar a dona da casa e assim, um a um, todos os que fizera participes de suas tribulações. No entanto, nenhum se achava na condição de supliciado da amargura; antes, ofereciam seus serviços com denodo, na plena consciência de que tinham de auxiliar na obra do bem e do amor. Após todas as rememorações, endereçou grave pergunta ao irmão superior, a respeito do porquê estava sendo alvo de tanta consideração. Estaria agora em condições de superar os desatinos que procedera em seus atos de vingança?
Mas não obteve qualquer resposta, readmitido que foi ao campo denso da carne.
Sua perplexidade marcava sua fisionomia. Umbelino já não se alimentava convenientemente. Instalou-se certa fraqueza que o impediu de trabalhar no dia seguinte e os familiares começaram a suspeitar de que as noitadas no terreiro estavam a perturbar a sua mente.
Doente, no leito, incapaz de reação, ei-lo diante do pároco, a lhe apontar, dedo em riste, a sofrida figura do Cristo dependurado na cruz. O padre bem se lembrava de que vira Umbelino a comungar, mas não se recordava de tê-lo no confessionário. Estava agora explicado o seu desatino. Como obrigação religiosa, se quisesse fazer jus ao perdão do Senhor, deveria rezar cem pais-nossos e trezentas ave-marias. Saiu o pastor das almas, recomendando à família que chamasse o doutor, pois temia por recaída nas próximas horas.
Ao invés do médico, veio o farmacêutico mesmo, cuja consulta era possível pagar-se. Os remédios tiveram o efeito da sonolência e Umbelino pôde sonhar à vontade com seus amigos e inimigos. Mas as visões agora haviam acalmado sobremodo e ele se via em épocas bem anteriores à descoberta, vivendo a simplicidade da vida da tribo, sem maiores atropelos, a não ser quando havia a notícia da vizinhança dos inimigos. Mas a sua gente era forte e rechaçava os invasores, de modo que as tribulações eram passageiras.
Com o desvelo da esposa, sonolento, pôde ser alimentado convenientemente, de modo que, na segunda-feira, se achava em condições de apresentar-se ao serviço. Tão rápida recuperação estranhou a todos, mas lá estava o Umbelino puxando o cabo da enxada com disposição e ânimo forte.
Extremamente vigiado, precisou forçar a barra para poder dirigir-se ao centro na sexta-feira seguinte. Prometeu que era a última vez que iria, pois precisava cumprir a sua última obrigação para não vir a ser perseguido pelas entidades. Pôs medo nos corações para justificar o seu empenho e lá foi para a que seria, na realidade, a sua primeira participação nos trabalhos do grupo.
Lá chegando, desde logo, foi aplaudido pelas entidades, pois a sua determinação lhes parecera de extraordinária coragem, principalmente por não ter sido iniciado nos mistérios da instituição. A começar daquela noite, iniciar-se-ia a sua educação, a partir da aprendizagem da nomenclatura de cada peça e de cada ponto. Não se perturbaria mais e suas visões não mais o remeteriam para situações concernentes a encarnes anteriores. Iria destinar-se à prática do bem e não mais necessitaria da igreja dos padres para firmar sua mente. Ficasse tranqüilo, pois ficaria amparado e sua família iria receber os eflúvios da satisfação de ver o seu chefe plenamente recuperado e no gozo da mais perfeita saúde mental e física.
Aí Poti, ele próprio, depositou sobre a cabeça de nosso amigo a coroa de flores que significava a união em paz com o Senhor e fez-lhe longa lista de obrigações que iria cumprir nos próximos vinte anos, quando desencarnasse em paz para reentrada em glória no etéreo.
Umbelino ficou feliz com toda a atenção recebida, mas, na noite seguinte, apresentou-se ao padre para confessar-se. Seria a sua última tentativa de unir a igreja à macumba. Ao relatar todas as suas visões e todas as suas atividades no centro, ouviu do irmão de batina que deveria decidir-se por Deus ou pelo demônio. Que não voltasse mais à sua presença, sem que estivesse plenamente arrependido de tudo quanto havia feito. Se aparecesse de novo na missa, sem a confirmação consciente de sua fé, seria excomungado. Assistisse às missas do lado de fora, até que comparecesse na região o senhor bispo, para o crisma dos infelizes que necessitavam do perdão especial de Deus.
Durante longos dois anos, Umbelino ia à igreja e postava-se do lado de fora, contido e feliz, curtindo a bebedeira da véspera, ansiado para acender o seu pito, após a cerimônia. Nunca mais compareceu à tenda espírita nem deixou de ter as visões de seus amigos aborígenes. Não viveu os vinte anos, acometido que foi por cirrose hepática, que o levou assim que se viu crismado.
Morreu absolutamente tranqüilo, em lúgubre tarde de inverno, e foi recebido no etéreo pelo amigo Poti, que determinou tratamento de urgência para a imponente figura portuguesa de feitor de escravos. Hoje, Umbelino, recuperado e arrependido, participa de grupo na qualidade de irmão socorrista, ora vestido de tanga, ora adornado por roupagens suntuosas, com a indefectível espada dependurada à ilharga, para o efeito da visão que atormenta as noites de alguns encarnados naquele fundo de sertão rio-grandense-do-norte. A maior parte do tempo, contudo, enverga suave manta branca, na busca da paz interior.







22

O OLVIDO





Esquecer o que ocorreu nas vidas pregressas é de lei, para que tudo possa vir a dar certo na corrente encarnação. É bem verdade, como nos lembra Emmanuel , que, às vezes, os homens têm o domínio de fatos, de acontecimentos, de ocorrências, que lhes são trazidos por seus guias, devidamente autorizados pelos seus superiores. Acreditar que essas lembranças sejam esporádicas ou evocadas por força de influenciação psicológica é inteiramente falso. Se assim fosse, bastava abrir escritório de representações espirituais e atender à clientela que para ali fosse, à vista de sua curiosidade e desejos megalômanos. Se clínicas conseguem sucesso em suas revisões introspectivas, é porque obtêm o alvará dos institutos espirituais encarregados do programa de benefícios de que podem dispor os encarnados.
Havemos de convir que, muitas vezes, o prognóstico falha, quando se trata das previsões da futurologia. Do mesmo modo, devemos alertar-nos para falsidades e perversidades que muitos estarão sofrendo ao adentrarem o mundo desconhecido dos encarnes malogrados. Da mesma forma que pode haver representações absolutamente fiéis à verdade e que o relacionamento com a prova atual seja perfeito, assim também podem ser evidenciados horrores que não condizem com a história pregressa do analisado.
Os cuidados que todos devemos ter com as sessões espíritas e com as comunicações dos irmãos desejosos de virem à presença dos mortais devem estender-se para essas sessões de terapia por meio do conhecimento das vidas pregressas. Lei comum a todos os trabalhos, o que de graça se obtém, de graça deve ser repartido entre os irmãos.
Se os nossos psicólogos, psiquiatras, psicanalistas se atreverem a utilizar-se dos recursos da mediunidade, poderão fazê-lo mediante a consulta a seus guias e preceptores, longe, entretanto, de fazer constituir esta parte do diagnóstico e do tratamento em profissão.
Por isso, é bom evitar o nosso caro leitor cair em esparrelas, em armadilhas preparadas para captação do dinheiro dos incautos. O que deve ser mantido oculto será, por mais que se esforcem os novéis bruxos transvestidos em médicos.
Há, entretanto, que se resguardarem os médicos espíritas, aqueles que sabiamente conferem ao conhecimento, fruto de sua aplicação aos estudos, a sua real magnitude, diferençando-os dos eventos programados e propiciados pelas entidades espirituais que lhes dão sustentação. Se o mal a debelar-se é físico, os conhecimentos do terapeuta deverão ser suficientes e aí se caracteriza sua aplicação profissional. Se a análise dos problemas sugerir a necessidade de acompanhamento espiritual, nesse momento o facultativo deve ceder a vez ao médium, de modo que o tratamento deixa de ser realizado diretamente pelo encarnado, devendo ser creditado aos seus protetores. Neste caso, o pagamento não deve ser cobrado em forma de emolumentos, honorários ou em espécie. Agradecimento de boa vibração representará lucro melhor auferido e ganho melhor aplicado.
Vamos retornar aos aspectos da memória que devem ficar ocultos aos encarnados.
Males que praticaram podem influenciar mal no sentido de promover desesperos inúteis e receios de vinganças, especialmente se os desafetos vierem a ser identificados. Injustiças recebidas podem significar desejos de desforra e prática do mal. Se as recordações forem inócuas relativamente a pessoas, ressaltando-se os fatos como conseqüentes de opressões gerais impossíveis de caracterizar autores ou vítimas, assim mesmo há necessidade de muita cautela, para que os indivíduos não venham a engrandecer-se ou amesquinhar-se, com incompreendidas atitudes que permanecem com esclarecimentos muito parciais.
Exemplifiquemos. Se o indivíduo vir premida sua cabeça em câmara de tortura ou perceber que foi decapitado por ter enfrentado as forças policiais, pode parecer que estivesse agindo em prol de direitos legítimos contra as injustiças e a perversidade dos poderosos. No entanto, há que se compreender a causa da presente dor de cabeça ou da angústia de viver, pois, se bem estivesse agindo, tendo sofrido por suas ações de desafronta, não há motivo moral a justificar o atual sofrimento. Haveria, aí sim, desequilíbrio na lei universal da divina justiça. Por outro lado, a percepção de que o desajuste atual só pode significar inferioridade espiritual, tendo em vista que as recordações foram insuficientes para elucidar toda a extensão dos dramas, crescerá o mal-estar mental, a insegurança, a incerteza, embora possa até haver atenuação do caráter físico da provação. Nesses dois casos, o acompanhamento da assistência deve ser constante e visar ao esclarecimento do carma individual. É, não mais, nem menos, um dos caminhos hábeis para o reencontro das pessoas com Jesus.
Mais importante que se socorrer do conhecimento dos encarnes anteriores, muitas vezes até encobertos aos próprios espíritos por perniciosos para o desempenho atual, para a compreensão dos males vigentes, é a atuação digna e ponderada e a fé em que Deus tudo provê para que realizemos o nosso melhor, para superar todas as nossas crises existenciais. Orar será o melhor remédio e conhecer o Espiritismo através da perfilhação consciente da doutrina, a par do estudo e da meditação de toda a codificação kardequiana. Não se deixar embalar por fantasias mas ter a certeza de que o esquecimento virá naturalmente e será, de início, até solicitado por quanta culpa nos afligir o coração.
Quando Jesus nos disse que o reino de Deus não se destina para os que olharem para os seus campos arados mas para o terreno ainda virgem, como lembramos em mensagem anterior (O Benefício da Dúvida), referia-se também à necessidade de se esquecerem todos os atos pregressos; os maus, por terem sido superados; os bons, por se terem integrado em nossas personalidades e, portanto, factíveis de quantas repetições forem necessárias. Se recordados, os maus poderiam confranger o coração dos puros, que já pagaram os seus débitos, e os bons fariam desenvolver o orgulho, a vaidade, o egoísmo e toda a caterva de viciações que se fazem acompanhar.
Rejeitemos, pois, esse nosso impulso de curiosidade, esse nosso arroubo pelo conhecimento do que conosco se passou um dia. Saibamos descobrir, no que somos hoje, aquilo que fizemos ontem e sempre, pois o reflexo de nós mesmos é que esperamos encontrar amanhã. Façamos esse verdadeiro sacrifício de compreensão da existência, para não darmos demasiado valor às coisas da matéria.
Se injustiçados, perdoemos; se vilipendiados, perdoemos; se maltratados, perdoemos. Se a nossa comiseração pelos infortunados não demonstrar piedade, desconfiemos do que fomos e, longe de abominar o passado, glorifiquemos o nosso futuro, propondo-nos agora mesmo à superação de nossos defeitos, mediante a seriedade de nosso trabalho em prol de nossos semelhantes. Aliviemos, definitivamente, a nossa carga cármica, agindo ao influxo do amor de Jesus.
Esta nossa dissertação se deve ao verdadeiro furor que toma conta da mente dos espíritas, que vêem na regressão a moderna modalidade a que melhor se afeiçoariam para levar aos descrentes a comprovação da realidade espiritual. Não será esse, contudo, o melhor caminho, que se parece muito com as mesas girantes de que lançaram mão os nossos maiores para chamar a atenção das gentes. Hoje não precisamos de milagres, pois temos imensa facilidade em contatar os médiuns sérios para transmitir o conhecimento que ainda falta ser adquirido para a evidência final da verdade do entrelaçamento dos mundos etéreo e carnal.
Além de ser atitude suspeitosamente supersticiosa, a curiosidade pelo que se fez em encarnes anteriores demonstra superfluidade mental e desejo de prevalência em relação a tudo que esteja ocorrendo nos inexpressivos reencarnes atuais. É busca de emoção, não é postura produzida por digna e fria meditação.
Bom será o conhecimento das verdadeiras causas dos males para quem tiver possibilidade de providenciar a cura deles e não com o fito de só desfazer-lhes os efeitos. Vamos ter de recomendar, a contragosto, que as pessoas ajam friamente, através de raciocínio lógico fundamentado nas razões espiríticas mais comezinhas. Dizemos a contragosto, porque achamos que o envolvimento sentimental nesse caso é inoportuno e improfícuo. Se quisermos, neste instante, fazer valer o amor como norma de conduta moral universal, devemos submeter-nos aos critérios da razão.
Fiquemos na paz do Senhor e não nos esqueçamos de que todos temos dívidas a saldar!







23

VERGONHA NA CARA





Eis título absolutamente invulgar. Faz pensar em histórias de sofredores impenitentes, desejosos de fazer malefícios aos pobres mortais não despertos para o efeito da reação. Posteriormente, presume-se que venha o arrependimento e que tudo vá resolver-se após cada qual se compenetrar de que era necessário ter vergonha na cara, para cumprir as suas obrigações cármicas.
Mas não será bem assim a história que iremos contar. Desejosos de ver capitular o nosso amigo escrevente, enveredamos por trilha sinuosa para sentir o seu potencial de amor e de confiança em seus preceptores. Diz-nos ele que, caso a mensagem não condisser com os pressupostos das normas evangélicas, terá o destino de outras que já foram para o cesto do lixo, devidamente amassadas, literalmente falando.
Pois bem, a nós pouco nos importa o fim que terá a folha de papel sobre que esparramamos estas palavras. O que nos parece mais importante é deixar impresso no coraçãozinho de nosso aprendiz de feiticeiro o desejo de bem organizar os seus trabalhos, de melhor distribuir o seu tempo, de forma a resgatar os seus débitos diante da existência.
Em outra oportunidade, encerramos o nosso texto dizendo que todos temos dívidas para saldar. Pois aí está evidenciado pelo fato e pelo ato que nós também não estamos imunes à regra. Vamos, portanto, ter de submeter-nos a rigoroso interrogatório moral para bem descobrirmos os meios de que dispomos para forçar o nosso comprometimento com a verdade.
Terminando esta curtíssima manifestação, vamos liberá-lo para seu transporte de hoje, recomendando-lhe que volte a oferecer os seus préstimos após o descanso. Boa tarde!




“Comentário”



Trouxemos um irmãozinho para firmar-lhe no espírito a necessidade de dedicação ao trabalho, necessidade psicológica inadiável.
Imaginemos que o nosso médium se abstivesse de apanhar o ditado por perceber, através da terminologia empregada, por detrás dos raciocínios aplicados e dos sentimentos evidenciados, que o espírito que lhe endereçava as recomendações mais estapafúrdias fosse digno e fiel representante de caterva provinda das trevas para o engano. Estaria, evidentemente, colocando de lado todos os textos apanhados e por ele mesmo considerados de bom nível, inclusive para orientação das pessoas em suas decisões de vida, fato absolutamente importante quando se sabe que a responsabilidade do existir envolve aspectos que ligam diretamente as criaturas ao Criador.
Pois bem, imagine-se você, bom amigo leitor, nessa mesma situação. Releia o texto do engodo e veja se você iria ou não deitar-se em busca de sossego e de tranqüila sonolência para o prometido transporte. Pois o nosso amigo, desde logo, sem perturbar-se, desconfiou do efeito de nossa iniciativa e pôs-se de sobreaviso para o recebimento dos competentes comentários que elucidariam de vez a situação.
Esta página tem o demérito de parecer extremamente falaciosa, mentirosa, maliciosa. Deveras, espíritos de potencial energético superior limitar-se-iam a vergastar os maus hábitos e a fixar aos encarnados o caminho a seguir. Muitos estariam prontos para sapecar o argumento do sacrifício pessoal necessário, para o que evidenciariam desde logo a sua própria peregrinação e, se não bastasse, a do Divino Mestre Jesus. Disto temos experiência vívida nas inumeráveis comunicações dos amigos que perlustram o orbe, missionários da luz.
Nós, contudo, inferiores aluninhos de primeiras letras, mas próximos dos invectivados do que dos invectivadores, restringimo-nos a burilar textos de pequenino significado, com inocentes armadilhas, uma vez que mantemos sob controle o tônus vibratório do nosso escrevente, sem perigo, portanto, para quem quer que seja. Talvez, um pouquinho para nós mesmos, que poderemos ser acoimados de imprudentes e inseguros.
Vamos agora burlar, de novo, a expectativa mais audaz e encerrar os trabalhos por aqui mesmo, dizendo que nós somos aqueles que desejaram ver os amigos na rua da amargura, a ponto de fraquejarem diante da necessidade de deitar fora o presente texto. Não foi jogado? Ora, pois! Se está aqui impresso é porque algo ocorreu de maravilhoso que sustou o impulso do médium e que impediu os editores de executarem o seu desejo inicial.
Qual foi o título mesmo que se atribuiu a este conjunto? Vergonha na Cara. Pois assim devem ser vistos todos os títulos por quem se sentir arrependido pelos malfeitos, e nós apenas estamos iniciando a nossa caminhada de recomposição perispiritual... Vamos obrar em amor pelo amor de nossos irmãos e imaginar que tudo que se possa fazer de errado será levado à conta de débito, de dívida a ser expiada em dor, em angústia, pela irresponsabilidade das atitudes.
Hoje ficamos nesse vaivém doloroso de quem fere a corda vibrátil das sensações e emoções humanas. Demos corda para que a rebeldia se instalasse e imediatamente prometemos texto íntegro com cara de que possa vir a ser publicado. Em seguida, desdissemos o afirmado, para, logo após, voltarmos à carga. Assim o escrito não ganha em substância, não se configura útil, não diz das verdades evangélicas, não cita passagens brilhantes de autores conhecidos, não estimula as reações mais sadias.
Eis revelado o nosso intuito. Toda vez que o escrevente, o médium psicofônico, o sonâmbulo e o curador estiverem diante da manifestação de seus amigos da espiritualidade, desconfiem de que a preparação possa ter sido perturbada, mas dêem vazão às comunicações. Se se definirem como boas, como merecedoras de crédito, como orientadoras de algum aspecto importante da vida, mantenham-nas em seu arquivo para posterior apreciação, quando os sentimentos estiverem serenados e restabelecidos os elos do raciocínio perturbado pela emoção do aparente desequilíbrio.
Quem sabe possa vir a configurar-se algo absolutamente coerente quanto ao conteúdo, embora totalmente desfigurado na forma. Eis que as palavras não se ajustam, os termos se superpõem sem nexo, as frases não nos dão a impressão de seqüência a sedimentar texto próximo do ideal da dissertação clássica. Mas a idéia é boa, apesar de não bem trabalhada. O estímulo se deu forte e constante, a imantação pareceu segura, o roteiro, ao final, possível e verossímil.
Fiquemos com a impressão de que a hora não fosse a mais propícia para oferecer os préstimos de tão útil instrumento a tão desordenado comunicador. No entanto, realizemos sério trabalho de investigação do nosso interior e sejamos capazes de ver no fundo de nossa consciência o nosso desejo de atribuir à espiritualidade todas as responsabilidades do ato de reflexão e de meditação.
Quando provocados por meio de elocução clara e explícita, louvamos os dizeres, a prudência, a sabedoria e o descortino de nosso amigo do etéreo. Mas se quem comparece somente nos pede para refletir a respeito da vida, da existência, do bem, do amor e da criação, sem nos dar base para nossos raciocínios, parece que vagamos no ar, desfalece-nos o ritmo, o pensamento evola-se, a frase se perde, o nosso cérebro demonstra fragilidade exemplar no que respeita ao humano procedimento e desligamo-nos de nossos amigos do espaço, crentes de que eles, e não nós, é que se perderam nos caminhos da insanidade.
Havemos, pois, de desejar ao Senhor o melhor resultado diante de seu ato criador, nós, pobres criaturas inseguras e imaturas?! Jamais! Deus sabe, de modo perfeito, onde se meteu. E quanto a nós, servos infelizes e inconstantes, sabemos exatamente para onde remeter a nossa visão do mundo?
Eis que, de novo, os argumentos se perdem nos meandros dos sentimentos e das sensações. Dar ouvidos ou botar fora?
Reflitamos apenas em que nem sempre somos conduzidos pelos fios do pensamento e que muito mais vezes nos deixamos levar pelas emoções.
Organizar as idéias é fato corriqueiro, comezinho, que qualquer de nós é capaz de fazer por nós mesmos e censurar em quem não fez. Edificar os sentimentos em compartimentos absolutamente claros e insofismáveis, de modo a fundamentarem o nosso proceder, é bem mais complexo e exige pleno domínio de nossas reações psíquicas.
Até os desmiolados mais broncos internados nos manicômios são capazes de elaborar raciocínios lógicos, faltos talvez da base da realidade e da verdade, a extraírem conclusões inverossímeis. Seu arcabouço emocional é que os levou à condição de párias.
Ajamos, pois, com serenidade, com suavidade e com absoluta isenção de julgamento e façamos por nós o que esperamos que nos façam, na lógica invertida de que, se nos fizermos o melhor, estaremos dando condições ao mundo de melhorar. Para isso, esperemos de todos que se prontifiquem a ajudar e, em nossa lógica invertida, saibamos que nossos semelhantes estão esperando o mesmo de nós. Se fizermos a nós o de que melhor proveito possamos haurir e se cumprirmos a aspiração de nosso irmão, em nossa lógica invertida, o mundo brilhará em resplendores de muita alegria e felicidade, no regaço do Senhor!







24

O GRITO





Angustiado grito de dor se ouviu, ao se prensarem as pernas daquele viajante de trem, quando a composição se projetou de encontro ao obstáculo da gare. O maquinista adormeceu e não percebeu que o trem adentrava na estação em alta velocidade. Não teve tempo para ai algum, deixando ali mesmo sua carcaça e dirigindo-se atoleimado para o etéreo.
Muitos seguiram-lhe os passos, de modo que, em breve, se viu envolvido por grande multidão a acusá-lo de irresponsabilidade e desídia.
Mas o passageiro que teve somente as pernas prensadas, sofria na carne a dor dos ferros retorcidos sob que se viu preso. Não perdeu a consciência, de modo que conhecia exatamente o que estava enfrentando.
Aos poucos, com a vazão natural do sangue, foi sentindo-se mais fraco e sua mente, acostumada ao latejar que lhe subia das pernas, pôs-se de sobreaviso para possível desenlace. Naquele instante supremo de lucidez, pediu ao Pai que tivesse comiseração pelo pobre maquinista que causara o desastre. Pediu proteção para os filhos e para a esposa. Agradeceu aos pais e demais familiares por toda a ajuda que sempre recebera e orou a Deus para propiciar-lhe desencarne pacífico e em harmonia com todo o bem que praticara.
Mas os bombeiros chegaram a tempo de socorrê-lo, de modo que, antes de desfalecer, recebeu os primeiros socorros, ingerindo o oxigênio concentrado que moderna aparelhagem lhe proporcionava. Adormeceu sob o influxo de injeção de morfina, de modo que só foi despertar no quarto do hospital, cercado por fios e relógios multicores que lhe apontavam as reações orgânicas.
Latejavam-lhe as pernas e suave formigamento vinha-lhe dos pés, mas nada que não fosse perfeitamente suportável. Estranhou estar só, mas logo percebeu que fora isolado do mundo.
Aos poucos, as idéias desencontradas foram recebendo suave organização e ele percebeu ao alcance da mão o botão de uma campainha, através da qual pôs em alerta a enfermeira de plantão.
Sua consciência dos fatos da vida fazia-o supor que perdera ambas as pernas. Ouvira dizer que as impressões físicas ficam gravadas na mente e que as nervuras ainda conduzem sensações próprias de quem está de posse de todos os seus membros. Contudo, não ousou olhar para o pé da cama, tendo suspirado profunda e dolorosamente antes, de modo a preparar-se para o choque. Na presença da enfermeira, solicitou informações relativas ao desastre, à extensão da aflição, aos mortos e aos feridos. Perguntou a respeito da família e deixou para o fim a interrogação íntima que o angustiava. A tudo, pacientemente, a profissional respondeu com eficiência. Ficasse tranqüilo que o que se poderia fazer estava sendo feito. Ouviu que os familiares estavam bem e que a esposa lhe aguardava o despertar na sala de espera em companhia de um dos filhos. Foi informado de terem morrido mais de cem pessoas e que podia dar-se por feliz por ter sobrevivido. Quanto às pernas, precisaram sofrer séria cirurgia, pois os ossos tinham ficado expostos, mas os médicos achavam que em breve poderia voltar a locomover-se.
Tudo pareceu-lhe vir à mente como se recebesse notícia de ressurreição. Lágrimas grossas de agradecimento escorriam-lhe pelas faces. Desejou ver a mulher para confraternizar com ela o renascimento daquela data.
A infeliz criatura entrou, demonstrando na fisionomia a dor e a preocupação de quem ficara longo tempo a aguardar a definição da própria vida. Era o amor transfigurado em sofrimento. Era a angústia fortemente demarcada no físico. Era o retrato da ansiedade.
Mas a notícia fora boa. O marido superara a crise e voltava à vida. A enfermeira havia escondido que, além de ter perdido as pernas, sofrera perfuração no tórax que atingiu os pulmões. A pobre moça não quis enfrentar sozinha a responsabilidade de ter de dar a notícia, tendo sido surpreendida por pergunta direta e insuspeita.
Angustiada, a esposa abraçou-o carinhosamente e prometeu cuidar dele com toda a ternura. Não compreendia como podia estar sorridente, quando tanta desgraça lhe ocorrera. No fundo do coração, talvez aventurasse o desejo de que teria sido melhor que tivesse morrido. Do jeito que estava, seria peso para toda a família. Ganhavam pouco e temia que o que possuíam pudesse ser absorvido no tratamento. Sabia que os gastos hospitalares estavam sendo subsidiados pela empresa responsável e imaginava que se pudesse ainda ter alguma compensação financeira pela tragédia que impediria o marido de continuar a exercer a profissão de revendedor e representante de diversas firmas. Mas temia que tudo seria insuficiente.
Deixara o espírito divagar para disfarçar a real preocupação com a dor da descoberta do martírio que sofrera. Estranhava agora aquele afetuoso sorriso com que a recebia.
— Que cara é essa, querida? Eu estou vivo e em breve iremos tirar aquelas férias há tanto tempo adiadas...
Isaura pôs tento nas palavras e percebeu que o drama ainda não tinha revelado todo o seu horror.
Isaltino desconfiou do mal maior. Olhou, finalmente, para as cobertas e verificou que realmente lhe tinham sido amputadas ambas as pernas.
Deixou sair de seu peito fraco estertor e abafado rugido. Os pulmões lhe doeram e ele desmaiou para não mais regressar ao mundo dos encarnados.
Do lado de cá, procurou saber do paradeiro do infeliz maquinista, por quem tinha orado tão dignamente. Ao avaliar a extensão de seu sofrimento, clamou ao Senhor que o perdoasse por ter acrescentado tanta angústia ao desespero final.
Não compreendia como pudera aguardar tão serenamente a morte entre os destroços do vagão e reagira tão diferentemente ao reconhecer que, mais que a vida, perdera as pernas. Parecia mais fácil recomeçar a existência no plano etéreo do que prosseguir na Terra, sob atroz sofrimento físico e ao desencadear de fortes emoções morais, uma vez que proibido se veria de realizar o bem, ficando na dependência dos outros.
Impedido de locomover-se, Isaltino ousou elevar a voz para avaliar a sua possibilidade de gritar por socorro. Mesmo ali o seu perispírito não lhe permitia manifestar-se em altos brados, mas o seu apelo foi ouvido e registrado por amigos da espiritualidade.

Quinze meses depois, Isaltino saía do hospital, amparado por irmãos socorristas, que tinham por missão fazê-lo refletir a respeito dos acontecimentos que o haviam tragado em sua voragem.
Entre as tarefas que deveria realizar, incluía-se uma de muita responsabilidade, que seria o relato doloroso dos acontecimentos para os encarnados, precisando deixar enfatizados os aspectos que lhe pareciam os mais importantes. Assim, o primeiro esboço que Isaltino rascunhou corresponde a este escrito que ora chega às vistas de nossos leitores.
Posteriormente, acrescentou algumas linhas a mais, onde estabeleceu certo relacionamento entre o sofrimento físico e o moral.
Finalmente, desejou incinerar o relato, demonstrando que o Senhor agira certo ao lhe proporcionar o desespero de ver a sua obra terrena terminar pela tragédia, dada a sua pregressa atuação.
Hoje, por último, revendo o texto sob a forma primeira e relendo todo o drama impresso em seu coração, acha que toda a aflição deve permanecer exatamente do modo que está, mas que não devem os leitores se ater aos aspectos dolorosos da perda da capacidade de locomoção, mas à total insanidade que demonstrou ao refletir a respeito da justiça divina, concluindo que o fardo que carregava era superior às suas forças.
Quanto ao relato, desequilibrado e inseguro, fica como prova inconteste de que precisa melhorar muito, se quiser, efetivamente, tornar-se socorrista fraterno voltado para a consolação dos infelizes.
Fiquem todos na paz de Deus!







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CORPUS CHRISTI





Este feriado religioso desperta, no crente comum da fé católica, o desejo de reverenciar a Jesus personificado na Terra. É data importante para o espírito cristão mais apegado aos valores da esfera carnal, uma vez que é a comprovação para si de que Deus, na figura do Filho, segunda pessoa da Santíssima Trindade, se dignou vir até os mortais para trazer-lhes a salvação.
É bem verdade que as festividades estão ganhando outra conotação, pois os enfeites das ruas visam a amparar os desejos humanos de grandeza e de lucro; de grandeza, para demonstrar que se é capaz de realização de trabalho de vigor incomparável, competindo entre si as populações de diversos bairros e cidades: é a transformação da fé em Deus em fé no humano poder; de lucro, também, pois o comércio usufrui o benefício do turismo e a fartura se instala como princípio básico da vida, quando a humildade e a morigeração deveriam ser extraídas dos exemplos do Mestre. Enfim, o Corpo de Deus, festa de cunho espiritualista por excelência, ganha foros de cidadania no íntimo da sociedade consumista.
Alguns padres e pregadores cristãos já se advertiram da malversação dos arroubos da religiosidade e buscam, aqui e ali, impedir que o comércio venha a se constituir no principal objetivo dessa comemoração, mas muitos outros, sentados em pedestais de honra e glória, vêem, na dedicação de seus paroquianos, a configuração de seu amor ao trabalho e a sua devoção ao padroeiro, principalmente quando evocada diretamente a figura do Divino Messias, em praças que têm por proteção o nome do Senhor.
Eis a nossa ligeira lição: que nossos amigos saibam distinguir o que é realmente sagrado no espírito humano, para render homenagem àqueles que, sem terem o conhecimento da revelação espírita, ainda assim são capazes de compreender a bondade e a justiça do Pai, ao lhe prestar culto de fé e respeito. Não menosprezemos, pois, irmãos, esses tantos que buscam a compreensão da existência por caminhos mais difíceis e árduos. Se o espiritismo aplaina inúmeras dificuldades para nosso entendimento, que seja mais este aspecto a somar para firmarmos o nosso conceito de amor fraterno e universal.
Reverenciemos, por nossa vez, o espírito de Jesus, seu corpo imaterial e sublime, capaz de feitos tão notáveis como a manutenção da vida neste setorzinho do Universo. Se não fora pelo trabalho e pelo amor desse missionário da divina luz, já teríamos nós posto fim a esta civilização e viveríamos imersos na selvageria mais feroz. Eis que o cristianismo, apesar de todos os percalços, ainda conseguiu realizações admiráveis no campo da desenvoltura moral e intelectual, a ponto de possibilitar aos espíritos que estabelecessem estes contatos com perspectivas do mais amplo sucesso. E tudo isto devemos a esse ser de tamanha misericórdia e excelso devotamento à causa do Pai.
Se formos capazes de orar a Jesus, pedindo-lhe intervenção junto ao Criador, para que nos favoreça com sua bênção, façamo-lo já, a fim de nos enchermos, nós também, do espírito santo do Senhor.
Glória a Deus nas alturas; paz na Terra e boa vontade entre os homens e os espíritos! Que todos nós nos unamos em festa neste dia de tranqüilidade e sossego, quando as ânsias se amainam e a fé se dilata! Fiquemos todos na graça do Senhor!







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GRITO DE GUERRA





Não deu certo a publicação? Vamos fulminar os nossos desafetos com raios mortíferos...
Claro que não!
Vamos, então, orar para que não venham a arrepender-se por terem deixado passar oportunidade tão valiosa? Que belo pensamento de vanglória e ilusório poder!
Deixemos a vida fluir naturalmente. Não é a mensagem espirítica que irá demover o homem de suas falcatruas, de seus projetos incompatíveis com os ensinos do Mestre.
Sabemos que certo grau de frustração se sente no coração de nosso amigo escrevente. Que fazer? Dar-lhe mais entusiasmo através de palavras de incentivo? Ele não precisa disso, pois conhece, melhor que ninguém, a utilidade dos textos. Então, que ajuda podemos proporcionar-lhe? A de sempre: a do trabalho de todo dia, a demonstrar que não tem desmerecido da fé e da confiança dos amigos da espiritualidade. E orar muito, para que se compenetre de que a humana labuta é árdua.
Imaginemos que, durante toda a sua vida, não seja publicada uma única página por meio da imprensa e fique a divulgação restrita a poucas cópias tiradas a sacrifício. A leitura será em âmbito diminuto. A felicidade do encontro com tanto brilho intelectual e moral não se realizou, a não ser para poucos apaniguados. Que culpa terá o nosso instrumento fiel e abnegado? Nenhuma. Cabe a ele tão-só escrever. Divulgar é trabalho que não lhe pediremos. Mas ele é dono de sua vida e de seu entendimento disso é que brotará a dedicação que puder oferecer ao socorrismo espiritual.
De nossa parte, basta-nos dizer que o trabalho interno da Escolinha está a realizar-se conforme o programado. Mais ainda, pois, de início, acreditávamos em três vezes por semana e hoje ocupamos a nossa pena cinco e até seis vezes, além de toda a possibilidade de acompanhamento da preparação e transcrição dos textos.
Não há, pois, que desanimar porque o mais importante está feito. De resto, uma publicação precoce poderia até ensejar distúrbios emocionais, dado o fluxo das reações ser imprevisível e se poderem consignar algumas de péssimo caráter, que provocariam perdas energéticas de vulto para o trabalho principal.
Vamos, então, convir em que tudo que passe dos limites desta mesa é lucro adicional ou oferecimento extra de trabalho. Veja bem: não estamos obsidiando nem fascinando o nosso escrevente. Ele pode suspender o ato mediúnico assim que julgar necessário. Para nós seria muito difícil superar as condições adversas que enfrentaríamos, mas o processo retroagiria para fórmulas empregadas antes e ainda correntes em outros setores, dada a precariedade das ofertas de disponibilidades. Contudo, curvar-nos-íamos à evidência do emprego do livre-arbítrio soberano de nosso auxiliar.
Vemos, pela repercussão de nossas palavras, que não pensa em abandonar o posto, nem nunca pensou. Ótimo! Teremos muito mais, então, que agradecer-lhe.
Fique agora na paz do Senhor e ore muito para que consiga bem compreender os fatos da vida.







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A VIRTUDE MACULADA





Quando determinadas virgenzinhas se deixam embair pela lábia de seus sedutores heróis, dizemos logo que tiveram sua virtude maculada.
Nada mais falso. Ninguém é tão ingênuo que não saiba proteger-se sob as saias da mãe. O que impera, no caso, não é a inocência, mas a ignorância, esta sim encontradiça até entre os progenitores.
Vamos ter de espezinhar alguns leitores que consideram tais temas impróprios para os escribas deste outro lado.
Quando a menina-moça se entrega ao jovem que vê como o príncipe de sua vida, sabe muito bem quais serão as conseqüências de seu ato, até mesmo a possibilidade de gravidez. O que desconhecem ou a que não ligam importância é a responsabilidade da educação, pois, insensíveis ao devido resguardo moral, vêem na liberalização de seus corpos a possibilidade de agirem segundo a sua vontade, independentemente da ascendência moral e da vigilância dos pais.
Tudo isto tem reflexos espirituais incontestes. Tais criaturas, no desejo de se libertarem da tutela paterna, se deixam levar para vida de extremos sacrifícios. Algumas conseguem maridos jovens e apaixonados, sem vícios, trabalhadores, com quem constroem e mantêm um lar. A maioria, contudo, não faz mais do que atormentar deliberadamente a sociedade, que vêem como coercitiva das manifestações de sua libido e de sua sensualidade. Aos poucos, porém, a pressão que se exerce dentro de sua consciência vai revelar-lhes que foram precipitadas em sua atitude e crescem de modo rápido, o que transforma a má atitude em algo perfeitamente consentâneo com a provação que deveriam sofrer ou conhecer.
Eis que há males, portanto, que vêm para bem e o que poderíamos considerar de perda da virtude nada mais foi que ganho da possibilidade de crescimento.
Esta nossa dissertação pode ferir a susceptibilidade de certos pais que vêem, em seu trabalho de educadores, o máximo do compromisso cármico, aspirando entregar as filhas ao futuro marido, como se se desincumbissem de tarefa marcada pelo destino, pelo carma. Esquecem-se de que esse tipo de visão está afeta a campo restrito da sociedade burguesa, precisando só de pequeno desajuste socioeconômico para alterar esse mesmo ponto de vista.
Vamos, pois, irmãos, confiar mais em que Deus vela e protege igualmente a todos os seus filhos e filhas. Se houve algo que fugiu aos nossos planos, não é porque estivesse escrito mas porque haveria necessidade de ocorrer.
Claro está que de tudo participamos e que, às vezes, pensamos estar cumprindo o nosso papel mas, na verdade, estamos caminhando ao inverso. É assim que muitos achamos que prender demasiado os nossos filhos ao nosso pé é o que se nos pede, quando deveríamos orientá-los em quaisquer circunstâncias da vida.
Verdadeiramente, há certas liberdades que não se devem defender, como quando as ignorantes criaturas se vêem apuradas diante de doenças incuráveis ou de vícios catastróficos para a vida. Mas ainda aí podem os pais atuar com discernimento, com amor e carinho, providenciando que o reingresso no etéreo se dê com melhor consciência do que seja o humano devir.
Quantas não são as vezes em que os pais despertam para essa realidade através da insolvência das dívidas dos filhos! São lições claras, ásperas, terríveis, mas úteis e necessárias.
Quando estivermos diante da tragédia e nos desesperarmos, é sinal evidente de que estávamos despreparados. Ajamos, pois, irmãos, desde já, segundo as normas evangélicas e saibamos ver em todas as palavras do Cristo algo dirigido a nós mesmos, apesar de muitas vezes não estarmos absolutamente naquela situação.
Se for preciso que a virtude seja maculada, façamos o possível para amenizar as conseqüências e isso se dará no preciso instante em que nos compenetrarmos da realidade da vida, principalmente se formos capazes de bem compreender as leis de Deus, a lei de causa e efeito, de ação e reação e a necessidade das reencarnações.
Façamos por bem compreender a vida e reagiremos sempre de modo consentâneo com a verdade cristã.







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O GRUPO DO AMOR SE DESPEDE





É chegada a hora de nossa partida. Se nos delongarmos mais na apreciação dos temas evangélicos, conforme o prisma que adotamos, iremos produzir apenas textos pífios, em cotejo com os dos irmãos que soem falar com o coração na mão. Vamos, então, suspender as nossas manifestações, mesmo porque novos campos do socorrismo aguardam por nós.
Esperamos não ter causado transtornos ou frustrações de caráter moral e que nossos pontos de vista tenham sido compreendidos e assimilados.
Fique, irmão, no regaço do Senhor!
Graças a Deus!
Grupo do Amor, pelo seu instrutor Ovídio.










SEGUNDA PARTE





SENTIMENTO E PROGRESSO















APRESENTAÇÃO





O novo grupo que se aproxima desta mesa não tem definido ainda completamente o roteiro a que dará seqüência. Visaremos, sobretudo, a opinar a respeito de fatos que ocorrerem no orbe, durante o período que nos for possibilitado o ato mediúnico, com vistas a favorecer o aprendizado desta matéria de nossa Escolinha de Evangelização.
Tal-qualmente as predecessoras turmas, constituímo-nos de espíritos ainda muito imperfeitos, embora tenhamos algumas capacitações em diversos campos da humana peregrinação, sendo alguns cientistas e outros professos em diferentes religiões.
Vamos iniciar os trabalhos, pedindo ao escrevente que se deixe interpenetrar de nossas vibrações de muito amor e carinho e que se afeiçoe ao trabalho para facilitar a nossa transmissão. Gratos!







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O DIA DE HOJE





Estivemos presentes quando da preparação do texto do mesmo título por confrades nossos (Equipe Evangélica). Ousamos vir de novo à presença do leitor amigo para trazer mensagem obrigatória, principalmente tendo em vista o nosso objetivo.
O dia de hoje apresenta-se absolutamente integrado no conjunto dos dias de trabalho que se oferecem à humanidade pela generosidade divina. Sabemos que nem todos se dedicam a tarefas que, oportunamente, poderão ser computadas em seus ativos, de modo que muitos estão esforçando-se inutilmente para a conquista de bens materiais, alheados das leis de Deus e das rogativas do Cristo.
No plano espiritual, tudo transcorre como habitualmente, de forma que as nuvens perpassam pelo céu, enquanto a azáfama se intensifica em todos os setores. A luta, vista sob tal prisma, parece nunca terminar. No entanto, se firmarmos o nosso olhar atento, poderemos perceber que diversas consciências se despertam para a realidade do amor divino e para a justeza das determinações emanadas do Alto, o que as leva a progredir, no sentido do real caminho a percorrer.
É como ocorre com os viventes. Olhando desatentamente, tudo parece repetir o dia anterior. Entretanto, quando temos a possibilidade de remeter o olhar para o passado dos indivíduos e das instituições, confirmamos a mesma condição tocante ao aspecto da espiritualidade que acima destacamos, qual seja, o de que há progresso e crescimento visíveis em relação a inúmeras criaturas.
No mundo material, o desenvolvimento é mais notório nas crianças e adolescentes, que, dia a dia, vão acrescentando hábitos e centímetros às suas personalidades. No que respeita aos adultos, a percepção de seu caminhar se torna mais difícil, uma vez que se assemelham às colmeias, onde as frágeis abelhas parecem desempenhar incessantemente o mesmo papel. Assim mesmo, o progresso se dá sempre que se põem em estado de contemplação do universo ou de concentração espiritual motivada por algum tema de interesse, seja por observação pessoal de fatos ou ocorrências, seja por influência de leituras de nível condizente com suas aptidões e pendores.
Quando o homem se julga, prudentemente, dominador de certos aspectos que lhe possibilitam a manutenção do estágio para que evoluíram, aí é que haverá necessidade de acontecimentos imprevisíveis para forçá-lo a repensar a respeito da vida e de seus procedimentos.
Qualquer retrato estático da existência, portanto, será irreal e refletirá tão-só momentânea situação ou condição dos seres retratados. Por isso, a nossa visão das ocorrências a serem comentadas e argüidas decalcar-se-á em roteiro evangélico, para dar o cunho da autenticidade cristã necessária para ser útil à meditação de quantos venham a constituir-se em nossos leitores.
Eis o objetivo presunçoso, talvez, mas absolutamente integrado aos parâmetros estabelecidos pelos nossos mentores. Se conseguirmos, através da observação dos fatos, relacionar causas e conseqüências, pôr-nos-emos em equilíbrio diante da história e seremos capazes de abranger o todo com nossa visão, de sorte a ensejar a mesma preocupação para o atento leitor que considerar útil a nossa participação em sua vida.
Oremos, irmãos, com muita fé em que seremos amparados pelas forças do etéreo encarregadas da supervisão dos trabalhos da Escolinha de Evangelização.

Senhor, Pai de infinita bondade, olhai por este pugilo de inexpressivos alunos e dai-lhes a possibilidade de realizar mais este pequenino desforço diante da imensidão de atributos que necessitamos conquistar para iniciar a nossa caminhada em direção à vossa glória. Pai, oferecei-nos os recursos para condigna imantação do ambiente de trabalho e favorecei-nos com a atenção lúcida do companheiro que nos serve de instrumento para a escrituração. Acima de tudo, Senhor, serenai o nosso coração e acendei luz em nosso entendimento para eleger temas de proveito para nós e para nossos possíveis leitores, a quem vos rogamos a piedade do despertar para vosso amor e vossa justiça, com a finalidade de lhes dar amparo para a compreensão de seus altos objetivos de vida. Perdoai-nos, Senhor, os nossos pecados e estendei sobre nós o vosso manto protetor. Quanto aos que se opuserem à nossa tentativa de realização, dai-nos, Pai, a força dos argumentos e a energia do companheirismo, a fim de que possamos adverti-los para a verdade e trazê-los para o afetuoso abraço da solidariedade universal.







2

O QUERUBIM DECAÍDO





Certo estafeta moderno, destes que se vestem de amarelo-cáqui para percorrer a cidade distribuindo a correspondência, resolveu desafiar o Senhor e incinerou todo o lote do dia. Evidentemente, o seu desejo recôndito era chamar a atenção sobre si e sobre sua capacidade de existir independentemente da criação. Pensava assim o orgulhoso rapaz:
— Se sou capaz de exercer o direito de escolha, por que não resolver pela queima da correspondência?! Se Deus ou seus prebostes são tão eficazes em fazer tudo funcionar às mil maravilhas, alertarão os missivistas e os destinatários, fazendo com que entrem em comunicação novamente, para restaurar o fio da meada. Se forem assim poderosos, farão com que seja eu surpreendido por denúncia oportuna e estarei, então, livre e desimpedido para aceitar o rebaixamento de posto ou a demissão. Sei o que faço: estou deliberadamente enfrentando as forças organizadas dos homens e as forças desconhecidas do universo.
Na mesma tarde, certo senhor, que deveria receber polpudo cheque anunciado por via telefônica, compareceu à agência e fez a queixa do não recebimento do documento. Exigia prova de extravio, para solicitar do emitente que preenchesse outro cheque, uma vez que tinha urgência do dinheiro. Não se utilizara dos meios bancários por razões desconhecidas, que acreditamos estarem envoltas nas brumas da criminalidade. Mas não declarou o que realmente continha o envelope aguardado, ou melhor, disse que eram fotos raras de família e que a perda seria catastrófica, pois estaria elaborando obra a ser publicada e tais fotos constariam da publicação. Tudo mentira, mas forçou a que o chefe do posto tomasse algumas providências no sentido de esclarecer o ocorrido.
Chamado o nosso Olavo diante do chefe, disse haver entregue toda a correspondência, até mesmo a carta em apreço, que teria depositado por baixo da porta da residência do conhecido senhor, a quem, durante anos, havia servido com desvelo. O senhor confirmou os dados históricos mas negou veementemente ter recebido a referida carta.
O chefe resolveu, então, solicitar que se aguardassem mais uns dois ou três dias, o que tornou o reclamante simplesmente furioso. À vista da reação violenta, Olavo escafedeu-se, deixando o chefe às voltas com decisão a ser tomada de imediato. Não querendo escrever carta que poderia ser comprometedora, dispôs-se a trazer informação precisa do ocorrido na manhã seguinte, predispondo-se a ir pessoalmente levar a solicitada carta à residência do senhor.
Nesse meio tempo, Olavo ria-se à socapa, vendo a que ponto atrapalhara o serviço na repartição. As conseqüências iam para além do que imaginara, mesmo porque odiava o chefe e detestava o serviço, embora convivesse com ambos há bons doze anos, desde que completara dezoito anos de idade e fora admitido para a função mediante concurso. O que o aborrecia era o parco salário e nenhuma perspectiva de subir de posto. Aliás, durante esse tempo, vários colegas tiveram oportunidade de serem chamados para encargos melhor remunerados, até mesmo quem tinha menos tempo de empresa, e ele ficara a ver navios. Pensou até em provocar algum acidente que o impedisse para o serviço na rua, mas acovardou-se pelo temor de ferir-se além do necessário. Resolveu, então, desistir do trabalho, não sem antes pregar a peça que vimos.
Naquela tarde e na manhã seguinte, sem que Olavo suspeitasse, o chefe da agência fez levantamento das cartas registradas e investigou uma a uma as residências marcadas no livro de endereços. Constatou que o serviço não tinha sido realizado, de modo que se viu obrigado a escrever, titubeante e furibundo, a carta que delatava o desmazelo de seu subordinado, a rogo do senhor. Por volta do meio-dia, lá estava a entregar ao exigente destinatário o seu ofício, ao mesmo tempo que imaginava quais seriam as atitudes mais objetivas para surpreender o ajudante no ato da insubordinação.
Em lugar de chamá-lo para conversa franca, preferiu realizar serviço de investigação, pondo pessoa conhecida nos calcanhares do lépido carteiro. Durante toda uma semana, a espreita resultou inútil, até que, finalmente, se pôde surpreender Olavo no ato mesmo de incinerar novo maço de cartas, em certo terreno baldio.
Chamada a polícia, lavrou-se o flagrante e o pobre desafiante de Deus viu-se a braços com processo que absolutamente não estava em seus planos. Enquanto achava que os procedimentos administrativos seriam suficientes para seu desligamento, antegozava as dificuldades com que atormentaria os infelizes parceiros de trabalho. Diante da configuração do crime prescrito em lei, a seriedade do problema passou a afligi-lo deveras. Se fosse condenado, provavelmente não iria para a cadeia, mas quedaria com sua ficha indelevelmente marcada, ficando impossível novo emprego no serviço público.
Resolveu, então, ver se conseguia, através de gestões junto ao chefe, fazer com que a queixa fosse retirada, mediante a promessa de se dar seguimento a rigoroso processo disciplinar no âmbito da empresa.
Diante do patrão, expôs os seus desgostos e as causas de suas atitudes. Estava de mal com a vida. Não via futuro em sua profissão...
Nesse ponto da exposição do choramingas, o chefe afrontou-o com carta datada de mês atrás em que propunha à direção da empresa que seu nome fosse lembrado para a chefia de agência, assim que se abrisse a primeira vaga. Aguardava-se a resposta, mas Olavo foi obrigado a reconhecer que os termos em que se vazara o ofício eram claríssimos na ênfase à sua capacidade e dedicação.
Aí Olavo não viu mais a mão de Deus mas sentiu o cheiro do Diabo. Se fora impulsionado tão fortemente a acreditar em que estava sendo mal visto pelo chefe, é porque houve quem o impelisse a isso. Só poderia ser...
Olavo levantou-se, pediu licença para retirar-se e saiu. Lá fora, enxugou diversas lágrimas insistentes e pôs-se a caminhar pelas ruas que percorrera tantas vezes, desde os tempos felizes de suas primeiras entregas, até o martírio da repetição inconseqüente dos últimos tempos.
Instintivamente, dirigiu-se para a sede religiosa do centro e pôs-se diante do altar, de joelhos, para pedir perdão ao Senhor. Enfrentava todas as conseqüências no campo da matéria, mas suplicava misericórdia para os efeitos morais e espirituais, cuja antevisão lhe estava sendo despertada pelo remorso e pelo arrependimento.
No dia seguinte, tendo sido chamado pelo chefe, apresentou-se ao serviço, uma vez que não fora oficialmente desligado, tendo tão-só sofrido severa suspensão. O bom homem reconsiderara a sua posição inflexível, principalmente porque ficara sabendo que aquele senhor que tão insistentemente reclamara dos serviços tinha sido preso por contrabando. Despertou-o sua consciência para o fato de que agira sob forte domínio emocional e resolveu dar segunda oportunidade ao nosso Olavo. Desfez a acusação perante a delegacia, o que deixou o escrivão satisfeito por atenuar-lhe o trabalho, arquivou o expediente que estava aprontando para instaurar inquérito administrativo e exibiu ao infeliz subalterno carta-ofício que recebera na véspera, em que se dava ao carteiro oportunidade de progresso na firma, por meio de convocação para curso na capital. De lá para funções melhor remuneradas era um passo.
O Senhor Pascoal, o chefe, considerou que Olavo deveria mesmo sair da cidade para evitar os rumores que se espalhavam contra si, ainda porque os colegas lhe haviam voltado as costas.
Na atitude do bondoso senhor, Olavo viu o dedo de Deus e julgou o seu arrependimento a causa direta de sua recondução ao emprego.
Ao agradecer, foi surpreendido por breve alocução de seu ex-chefe:
— Meu amigo, eu sou crente do espiritismo kardecista. Na noite em que deliberei segui-lo, para conhecer o destino que dava à correspondência, recebi a notícia de que deveria tomar cuidado com a repetição da passagem bíblica da queda dos anjos. De princípio, pensei que a advertência se endereçasse a você e dei continuidade ao meu plano. Mais tarde, em nova mensagem, fiquei sabendo da alta importância da categoria do arcanjo que cairia e passei a desconfiar de que era a mim que avisavam. Por fim, para não ter mais qualquer dúvida, vieram trazer-me a notícia de que certo querubim havia decaído da confiança do Pai. Aí adquiri a certeza de que tudo se referia a este pobre servo do Senhor, humilde trabalhador braçal da casa espírita. A referência à hierarquia significava inconteste metáfora que eu é que me projetava para baixo, arrastado por meus sentimentos de impiedade e desforra. A carta solicitando sua inscrição no curso para posterior promoção era o indício que faltava. Roguei ao Senhor que me perdoasse e lhe peço a você que aceite o meu pedido de desculpa. Vá com Deus, meu filho, e, se puder, busque entregar junto à correspondência dos centros espíritas o seu próprio coração e o seu comprometimento com a causa do Senhor. Fique com Deus!
Olavo saiu aparvalhado do escritório, incrédulo mesmo de que tudo pudesse ter-se resolvido por aquela forma. Desconfiou de que muito mais se pode encerrar sob os fatos mais corriqueiros e prometeu de si para consigo mesmo realizar, do modo mais perfeito possível, todos os seus serviços.
Hoje...







3

LÁGRIMAS DE FELICIDADE





O homem que se emociona diante da verdade intuída, por entrever nela a presença de Deus, cria para si ambiente de muita paz e confraternização. Sendo assim, bom amigo, se você é capaz de se emocionar diante dos escritos que retratam o afeto, a benquerença, a compreensão entre as criaturas, reconhecendo o valor e o sacrifício dos bons amigos e companheiros valiosíssimos dos planos espiritual e carnal, pode crer que um pouquinho já está detendo das virtudes angelicais.
Claro está que a emoção tem de ser sentida com absoluta isenção do pieguismo barato e egoísta de quem se percebe frustrado por não possuir o mesmo grau de desenvoltura moral ou intelectual, ou por não se sentir apaniguado pelos mesmos poderes espirituais. Nesse caso, as lágrimas são de dor, de despeito, de inveja, muito mais do que a pura e fiel representação da vibração de felicidade que desejariam significar.
Vamos ouvir o nosso destino, irmão, e se nos for oferecida ocasião de real confraternização de amor, não deixemos passar a oportunidade por estarmos preocupados muito mais com os reflexos que nossa personalidade possa oferecer, para imprimir nos sentimentos alheios valores que absolutamente não possuímos. Fiquemos integrados em nosso ambiente e seremos capazes de usufruir as benesses divinas, pois, para aquele que é sincero e puro, o Senhor estende os seus braços protetores, por meio da confraternização universal.
As palavras de introdução de nossa mensagem visam à exposição do caráter das pessoas que buscam nas leituras dos textos espiríticos algo mais para orientar-lhes o procedimento, a fim de direcionarem a sua vida com propriedade e segurança. Entretanto, depende do grau de aperfeiçoamento cultural espírita o aproveitamento dos textos. Assim, quando alguém for ler Emmanuel ou André Luís, irá perceber que suas vibrações diferem, segundo a personalidade de cada um. Às vezes, os temas se tornam por demais científicos, ficando a poesia meramente subjacente no espírito altamente desenvolvido pelo socorrismo e pelo amor. Pode-se falar de tudo, sem que nenhuma palavra contenha qualquer vibração emotiva mais à flor da expressão e, apesar disso, provocar na mente e no coração do leitor, em seu espírito, repercussões de profundo envolvimento sentimental. Outras vezes, poetas encarnados, preocupados com sua visão própria da vida, mal conseguem alinhar alguns termos extraídos do vocabulário mais adequado para traduzir sentimentos e emoções, sem que causem qualquer reação emocional nos leitores.
Desse modo, encaramos os textos segundo dois pontos de vista confluentes: o espírito com que se lê e os atributos dos autores que os escreveram.
Cresça, caro amigo, em méritos intelectuais e morais que você se capacitará a absorver, na intimidade dos escritos, aquele objetivo nem sempre denunciado de favorecer-lhe o progresso em direção ao reino de Deus. Se você fizer a sua parte, verá que o proveito de cada releitura só acrescentará mais emoções e conhecimentos, pois o entendimento irá aperfeiçoando-se e a possibilidade de assimilação das intenções dos autores se intensificará, promovendo real evolução espiritual.
É por isso que os mesmos textos repercutem de modo tão diferenciado no espírito de cada pessoa. Uns logo se afeiçoam à maneira de escrever dos autores; outros passam a detestá-los de pronto. No entanto, o escrito é o mesmo. Por que não fugir de uma e de outra maneira de encarar as mensagens, especialmente as espirituais? Em lugar de tocar fundo em nossas cordas, buscando ouvir a nossa música, na voz dos intérpretes da divina criação, façamos por deixá-los tangenciar as suas próprias notas, no intuito de nos inebriarmos com a musicalidade original deles. Para isso, cabe-nos estudar, meditar, refletir e ler, ler muito, repetir as leituras, para entender, para compreender, para captar as sutilezas das vibrações morais que se escondem por detrás das palavras e das frases.
Neste ponto de nossa dissertação, é preciso acautelarmo-nos para não dar ao leitor a impressão de que por trás de nosso texto possa encontrar-se algo de superior procedência. Quando nos referimos aos autores espirituais, estamos falando daquelas entidades ímpares, que se atrevem a discorrer a respeito dos temas mais sublimes dos Evangelhos, desenvolvendo os assuntos ensinados pelo Cristo, para facilitarem-nos a percepção a nível de conhecimento para aplicação em nossa vida, de molde a transformá-la substancialmente. Nós não. Nós somos meros aluninhos de primeiras letras, que estamos vindo expor com muita dificuldade, do modo mais claro e direto que nos é possível, os conceitos que vamos aprendendo em nossas aulas da Escolinha de Evangelização. Se nos atrevemos, muita vez, a aventurar-nos um pouco mais nas searas do amor, do trabalho, da justiça, da caridade e do socorrismo, se falamos ainda a respeito de alguns temas técnicos, como mediunidade e programação de vida, se avançamos nos caminhos da moral e do procedimento evangélico, é como meio de efetuar os nossos exercícios escolares, a par do aprendizado dos mecanismos da mediunização que constam do nosso currículo.
Claro está que buscamos insuflar em nossa redações o nosso sentimento de amor e de respeito pelos encarnados. Mas poucas são ainda estas vibrações, de sorte que o mais que conseguimos é, como neste trabalho, alertar para o que é fundamental para a aquisição de todos nós. Mais que isso, só indicando a figura excelsa do Mestre e seu evangelho de luz.
Para nós, o resultado de nosso esforço, certamente, nos propiciará, em seguida, a possibilidade de nos emocionarmos pelo fato de estar diante de mais uma tarefa cumprida, o que nos irá arrancar algumas lágrimas de pura felicidade. Do mesmo modo, esperamos ver emocionado o nosso escrevente, diante do fruto de sua concentração e dedicação exemplares, o que nos provocaria mais fortes reações de satisfação e alegria. Agora, o que nos engrandeceria diante de nós mesmos, no sentido de bem compreendermos que estamos na rota certa, seria encontrar em todos os nossos companheiros leitores a boa vontade de se sentirem bem, alegres e saudáveis, após o contato com este nosso trabalho. Isto seria o real coroamento de nosso objetivo.
Para que tal ocorra, vamos orar com profunda emoção o pai-nosso e a ave-maria, certos de que receberemos o influxo das vibrações de nossos protetores e demais amigos da espiritualidade que conosco se solidarizaram para a concretização desta tarefa.
Pai nosso, que estais nos Céus...
Ave, Maria, cheia de graça...
Agora que rogamos à Divindade o seu perdão e ao plano espiritual mais elevado o seu auxílio, deixemos o nosso leitor na mão de seu destino, aquele mesmo, esperamos, que o conduzirá à captação das verdades existenciais que o remeterão diretamente ao seio de Deus.







4

O ESPANTO DO DESGRAÇADO





Hermínio era um pobre ser despojado de tudo. Criminoso nato, não sabia controlar seus instintos e buscava ver em todas as coisas algo que pudesse contrariar para investir contra elas. As pessoas, então, eram por demais acicatadas pela sua fúria e, no entanto, não era dementado nem louco furibundo; o que fazia, produzia após elaboração racional. Quando lhe perguntavam, na prisão, por que praticava tantos males, chegando aos requintes da perversidade, dizia que era para ter alguma ocupação na vida.
Certa vez, recebeu a visita de uma entrevistadora profissional da televisão e fez questão de expor todo o seu aterrador sangue-frio e despreocupação.
— Faria tudo de novo — disse a infortunada criatura. — Bastava dar-me a oportunidade...
Nesse instante, milhões de telespectadores sentiram certo frio na espinha, pois se situavam na posição de possíveis vítimas de iguais desmiolados e fanatizados pelo odor do sangue. Outros muitos colocaram-se na pele do criminoso e não se sentiram à vontade, pois perceberam que, mutatis mutandis, muito do que faziam, que acusavam de impróprio mas que repetiam invariavelmente, também não os levava a arrependimento algum. Enfim, o nosso herói às avessas provocava os arrepios mais díspares, segundo o poder de absorção das verdades e da realidade de cada um.
Houve, no entanto, estranha reação em muitos indivíduos bem situados na composição social em que se inseriam. É que esses tantos, intimamente, desejaram ver o infeliz delinqüente sofrer todos os atropelos, dores e sofrimentos de suas vítimas, incluindo até aquele pavor que sentiam pelas revelações desse indivíduo desviado do caminho da moral e da fraternidade, como colocavam espiritualmente aquela esquisita figura humana.
Alguns poucos desconfiaram de que o entrevistado estivesse fazendo cena, certo de que haveria público para estimular com suas palavras, desacreditando de que alguém pudesse ser tão mau quanto se proclamava. Esses tais, incautos, seriam vítimas especiais do assassino, uma vez que a esses é que tal tipo de criminoso dá preferência, para comprovação de que é capaz de realizar tudo quanto promete.
Conduta exemplar têm os médicos psiquiatras, que conhecem as reações psíquicas envolvidas nesses cérebros, cujo tipo de desvio padrão da mentalidade tida como normal configuram logo, de sorte que situam a figura em análise no quadro estabelecido para confrontação dos diferentes aspectos. Para estes, a entrevista não causou impacto nem se constituiu em novidade; foi tão-só mais um exemplo a confirmar os estudos feitos. Se perguntados a respeito do que fazer, diriam:
— O paciente deve receber tratamento psiquiátrico adequado para atenuar os aspectos de sua megalomania embutida na sensação de que, ao praticar os atos de vandalismo, esteja exercendo sagrados deveres diante de seu ego não reconhecido pela sociedade. Em outras palavras, despertar-lhe a consciência para o próprio defeito e aguardar, pacientemente, que readquira a noção do espírito gregário que foi esfacelado por algo que o magoou em algum ponto de sua infância. Há os que se curam, mas são poucos, de sorte que o preso deve ser mantido afastado da convivência com outras pessoas, especialmente se se promover qualquer disputa em que alguém deva prevalecer como líder. Uma de duas: ou se torna pela força o dirigente supremo da instituição clandestina; ou se faz temer por atitudes absolutamente imprevisíveis e violentas, separando-se dos demais. De qualquer forma, não adiantará um passo o seu tratamento. O isolamento é de lei.
Espíritas sinceros e estudiosos receberam a transmissão com mais serenidade que o comum dos mortais, mas não de forma tão fria e profissional quanto os especialistas da mente humana. Se perguntados a respeito de suas sensações diante dos descalabros que se ouviram, diriam, simplesmente:
— O irmão está sob o efeito de forte obsessão, quer seja de espíritos malévolos que o pressionam para raciocinar à margem dos preceitos sociais, quer por retaguarda histórica de anteriores eventos, neste ou outros encarnes, que delinearam o procedimento atual decalcado na soberana lei de causa e efeito. Não tememos ver-nos na condição de vítimas de pessoas com tal vezo assassino, pois, ou merecemos ser atacados por termos tido anteriormente mau comportamento, cuja expiação seria essa forma de enfrentamento com a dor; ou não merecemos e, nesse caso, não seremos sequer ameaçados. O instinto assassino de tais criaturas não impede que sejam orientadas pelo plano espiritual para dar fim ou causar prejuízo tão-só àqueles que têm débitos para com a divina justiça. Bem ponderados os acontecimentos, no momento da lucidez para a compreensão dos fatos pelas vítimas, todos reconhecerão que estavam nas mãos do destino que ajudaram a formular. No que tange a nos colocarmos na posição do infausto entrevistado, nem por sonho seremos capazes de entender seus mecanismos mentais desvirtuados. Talvez pudéssemos, por esforço de concentração, rememorar atos falhos já superados por trabalhos redentores, mas isto não seria conveniente para o nosso estágio atual na escala evolutiva, nem seria educativo para além do que nosso conhecimento intelectual nos é capaz de revelar. Oremos para que o infeliz receba toda a ajuda que merece como filho de Deus, que é, e façamos forte vibração também pelas suas vítimas, para que compreendam a desgraça que o está abatendo e não se tornem, elas mesmas, implacáveis perseguidoras a cobrar do coitado contas que, com certeza, não conseguirá resgatar nos próximos séculos. Façamos por ele como faríamos por nós mesmos, cumprindo assim a lição inolvidável do Mestre.
Suponhamos agora o nosso manso entrevistado a receber a presente comunicação espiritual. Que reação adviria da leitura? Interessar-se-ia? Daria ao papel o mesmo destino de suas vítimas de sangue? Insurgir-se-ia contra o mensageiro? Aguardaria novas notícias por outras fontes para a comprovação da primeira?
Como reagiria você, caro amigo, se estivesse em tais condições de descalabro? Não é verdade que você, realmente, recebeu a mensagem, tanto é assim que a está lendo curioso? Espanta-se com a nossa colocação imprevisível diante do roteiro até agora seguido? Perguntar-se-á que tem de ver o título com sua realidade espiritual? Supõe que possa ser facécia nosso de absoluto mau gosto? Interromperá a leitura, qualquer possa vir a ser o desfecho que as linhas seguintes contêm?
Pois a forma pela qual você, prezado amigo, reagir será exatamente a mesma do criminoso acima aludido. Poderá até haver reação absolutamente coerente com o estado atual de irreflexão dele, a ponto de sorrir incrédulo de que tudo o que leu possa verdadeiramente significar mensagem do Além, uma vez que, supõe ele, os espíritos deveriam preocupar-se com harpas e musicalidade paradisíaca, sem qualquer interferência no humano devir. Poderia até admitir a escrita como simbólica e prever, através dela, o que poderá vir a ocorrer-lhe em futuro despertar, e verá, em sua ilusão, que o redator possa ter sido o próprio Satanás, a prometer-lhe sofrimentos para depois de morto. Ora, até o Demônio é passível de convencimento, não fora inteiramente corrupto e corruptor. Se a situação presente não é tão má, apesar de todos os prenúncios de castigos, mais tarde poderá vir a ser contornada e superada sem sofrimento...
Tais pensamentos, bom amigo, estão a demonstrar que a frieza do raciocínio persiste e que a mensagem não terá força alguma diante do espírito conturbado pela ascendência da matéria.
Quanto a nós, autores no etéreo, não nos preocupam muito as atitudes díspares do ramerrão, julgando mesmo que esses algozes dos encarnados estejam muitas vezes aí como instrumentos de Deus, para sacudirem a mentalidade dos que se habituaram a ver a vida pelo prisma da moralidade reinante, morna e cor-de-rosa, nas novelas, onde os príncipes e princesas convivem com o luxo e com o conforto da civilização dos apaniguados. Os estremecimentos são simbólicos e a dor é representada, de forma que o que se passa através do écran das pequenas telas significa intimidação imaginosa de algum autor mais arrojado, para produzir audiência e lucro às emissoras.
Quando se dão entrevistas que rompem com esse prisma, as pessoas se refugiam em preconceitos e figurações interiores de proteções espirituais cedidas à praça pela religiosidade vigente e dão tudo como o resultado mais vil e inconseqüente de atitudes isoladas e irresponsáveis. E passam a outros programas. No entanto, quando toda a configuração da realidade consegue ultrapassar a mera representação das telas e chega ao intelecto, ao centro dos sentimentos, à própria consciência, por meio de elaborada mensagem do plano espiritual, forçosamente a atitude diante dos fatos deverá ter outras repercussões mentais de mais profundo reconhecimento de que os sucessos da vida nos tocam diretamente.
Se o nosso caro leitor se atreveu, seja por que razão tenha sido, a prosseguir em sua leitura, embora lá atrás tivesse tido desejos de suspendê-la, recomendamos que continue a ler, agora não mais nestas linhas pobres e mal redigidas, mas no relato de seu coração, para poder avaliar se ali não se encontram escondidas, disfarçadas, sufocadas, mas latentes, todas as reações que o infeliz criminoso conseguiu externar, rompendo com as censuras sociais, morais e psíquicas que o comum dos mortais utiliza.
Por isso dissemos que nem sempre o plano espiritual dá maior atenção a esses criminosos declarados e impudentes. É que todos os homens e mulheres merecem dos socorristas igual e fraternal atendimento, mesmo porque o amor de Deus se expande pelo universo e é capaz de alcançar a todos nós.
Fique, portanto, caro amigo, na companhia do Criador!







5

O AMIGO DO PANDEIRO





Orozimbo era bom de batuque. Sempre que saía no carnaval, era o folião que melhor representava o grupo. Naquele tempo, a troça era ainda pequena, sem o fausto e o luxo que se vêem hoje em dia. Por isso, as pessoas que se destacavam eram apontadas na rua, pelo bom humor, pelos chistes e pelas facécias. Havia um ar de pureza pueril no entrudo, apesar de, muitas vezes, se realizarem verdadeiras batalhas campais. Hoje essa poesia primitiva cedeu lugar à riqueza, ao aparato, à beleza e aos conceitos de censura social e política buscados diretamente nos livros de estudos da Sociologia e da História. No tempo do Orozimbo, no máximo, achincalhavam-se galhofeiramente algumas figuras preeminentes, a maior parte das vezes até por simpatia e intimidade, à vista da flagrante união de pensamentos.
Mas Orozimbo não se sentia à vontade para a crítica, nem ferina, nem suave; o que desejava, na verdade, era divertir-se, no bom sentido do termo; era espraiar a sua verve, a sua felicidade e sua alegria de viver. Por isso, todos o aplaudiam e admiravam.
Chegado o carnaval, não havia quem não se perguntasse como sairia naquele ano o nosso bom batuqueiro. A fantasia variava: pirata, moleque de rua, malandro de favela, aristocrata em ruínas, o que a modinha da época lhe indicasse. Mas o pandeiro era indefectível. Saía de casa fazendo barulho, mexendo com as moçoilas, chamando-as de donzelas arreliadas, jamais ofendendo a quem quer que fosse. Orozimbo era a expressão máxima da alma popular transformada em festa momesca.
Certa ocasião, Orozimbo não compareceu. Resolveu que, naquele ano, iria internar-se em determinado salão de baile, que fazia furor na época, onde as mulheres e os homens se deixavam embebedar e a licenciosidade corria solta. Colocada tal festa nestes termos, o leitor de hoje fará idéia de festim romano, bacanal lascivo e permissivo, pois se lembra do que costuma ver transmitido pela televisão hodierna. Nada disso. A imaginação do povo é que fazia de tal festa de arromba muito mais do que realmente era. Se dos encontros fortuitos, alguns se aproveitavam para intimidades maiores, isso só iria passar-se bem distante daquele local.
Orozimbo, pois, não saiu à rua. Conseguiu economizar para o ingresso e, na noite do sábado, lá se postou à porta do salão para a esbórnia. Na mão, o indefectível pandeiro; ao lado, a sacola de confetes; no bolso, duas latas de lança-perfume e a carteira, para a bebida e a comida.
Entrou e extasiou-se. Nunca pensara que o ambiente poderia ser tão bonito. As pessoas que estavam chegando foram acomodando-se às mesas, com a fisionomia alegre. Notou, desde logo, que o povo sorria à toa, demonstrando na boca dentaduras alvas de quem tem dinheiro para o tratamento. Lembrou-se de seus cacos de dentes e amofinou-se. O seu sorriso largo e desdentado fazia sucesso entre os transeuntes das ruas. Naquele ambiente, revelava a sua origem mesquinha.
Reparou nas roupas. Pensara que seu traje a rigor, gravata borboleta obrigatória, que conseguira comprar com extremo sacrifício, eqüivaleria à roupa de todos. Erro de cálculo. As jovens ostentavam jóias caríssimas sobre trajos saídos da alta costura francesa. Os homens recendiam a perfumes raros e inebriantes, com seus ternos-smokings de corte perfeito.
Orozimbo estava encolhido num canto do salão, totalmente deslumbrado mas imerso em sombrios pensamentos. Jogara fora o que de melhor possuía: sua bonomia, seu sorriso aberto, sua felicidade. Conhecera a vida de modo duro, debaixo de muita luta e trabalho. Sua felicidade tinha hora marcada. Agora, corria o risco de perder tudo. Lastimou o dinheiro gasto e, quando a orquestra, por intermédio dos clarins, anunciava o grito do carnaval e o início da folia, Orozimbo saía por uma porta lateral, para nunca mais brincar no carnaval.
No dia seguinte, um serviçal do teatro encontrou, debaixo de um vaso de plantas ornamentais, um saco de confetes, duas bisnagas de lança-perfume e um pandeiro. Levou tudo para casa e, naquela noite, o bairro se encheu um pouco mais de alegria com a festa de seus filhos.
E foi só...

Decorridos tantos anos dessa narrativa, Orozimbo regressou do plano espiritual para avaliar em que termos se dão as festas atuais. Percorreu as ruas, os salões, extasiou-se diante das escolas de samba, irrompeu em lágrimas de felicidade quando percebeu que o sorriso desdentado tinha vez em todas as praças. Mas não se contentou em permanecer no seio da multidão alucinada. Desejou ir à cata de informações nas moradias das pessoas. Resolveu seguir certo grupo de foliões que pertenciam a determinada escola de samba que muitos aplausos arrebatou da imensa platéia.
Onde ficara o nosso herói para perder o desenvolvimento da história do carnaval? Resguardara-se em casa de estudos e imprimira ao curso de sua existência o hábito da morigeração e da tranqüilidade. Desde que abandonara de vez a vida efêmera das fantasias carnavalescas, tudo fizera para compreender os mistérios das diferenciações sociais. Bom de coração, leal e honesto, não teve dificuldade em instalar-se naquele centro.
A saída para a visita se dera por imposição de seus mentores, que desejavam mostrar-lhe que era preciso acompanhar o progresso da humanidade, para se poder volver à carne em condições de enfrentar os novos embates da vida social. Organizada a expedição, Orozimbo quis ficar sozinho a partir do momento em que destacou o magote de pessoas sobre quem iria exercitar a sua observação.
Foi assim que foi guiado até determinado salão em que se dava alucinante festa de travestis. De início, pensou estar diante de corpos femininos, quase totalmente desnudos. Espantou-se quando percebeu que as criaturas eram homens transformados em perfeitas mulheres. Não acreditava no que via, até que, de repente, percebeu certas máquinas estranhas a apontarem, sob intensas luzes, para o grupo que seguira. Havia fios e microfones, de sorte que pôde perceber que alguma transmissão estava em curso. Atrapalhou-se um pouco mas conseguiu um cicerone que lhe fez a descrição da televisão, conduzindo-o até diante dos monitores.
Orozimbo não agüentou o influxo das informações desconcertantes e manifestou o desejo de regressar dali mesmo para o centro de estudos. Desconhecendo os meios do retorno à instituição, foi postar-se no ponto de encontro combinado, para aguardar o regresso de sua turma.
Pôs-se ali freneticamente a raciocinar a respeito de tudo que vira e julgou ter sido muito precipitado por ter-se alienado da face do globo por tanto tempo. Aprendera muito com as instruções dos professores e mentores do educandário, mas não via como aplicar a mínima regra de procedimento moral evangélico, diante de tanta descompostura. Imaginou que, se tudo aquilo que viu no salão era transmitido para as residências, então toda a humanidade estaria igualmente perdida.
Nesse engolfar em si mesmo, permaneceu durante toda a madrugada, até que seus parceiros regressaram. Vinham alegres e satisfeitos com quase tudo que haviam visto e encontraram Orozimbo macambúzio e soturno. Com todo tato, inquiriram dele a causa desse estranho proceder de antigo folião, cuja história conheciam. Orozimbo, no entanto, se recusou a dar maiores explicações, referindo-se ao fato de estar perplexo com os rumos tomados pela civilização. Precisava voltar aos estudos, pois pretendia crivar os mestres de perguntas, a primeira de todas, por que haviam permitido que se ausentasse tanto tempo da realidade dos encarnados.
Na escola, não obteve resposta direta. Ao invés disso, os instrutores designaram um perito em relacionamento humano para acompanhá-lo através da cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceriam estagiando até que se compenetrasse o nosso Orozimbo de todas as modificações que notasse.
Hoje, dois anos após a partida, Orozimbo começa a dar mostras de cansaço e deseja regressar aos seus livros para a confrontação de seu aprendizado com a realidade que perquiriu entre os encarnados. Temeroso de novo encarne em meio a tanta turbulência, imagina meio de afastar-se do bulício da cidade grande para retemperar os seus nervos. Aceitará, contudo, o que lhe for oferecido, mas teme pela segurança de suas convicções. Quem sabe ainda o deixem mais alguns anos estudando...







6

DESFAZENDO MÁS IMPRESSÕES





Muitas vezes, os espíritos comparecem diante dos médiuns e lhes dão a idéia de que não se tenham preparado convenientemente para as mensagens do dia. A maior parte das vezes, essa impressão se dá a partir de algum titubeio inicial, quando o médium não se compenetrou ainda do teor do texto e do poderio de imantação da equipe que desenvolve o trabalho.
Após alguns minutos, entretanto, quando a comunicação vai ganhando corpo, como esta aqui, o mediador se sente mais tranqüilo e seguro, de sorte a ensejar melhor aproximação (approche). Desse modo, quase sempre, o preâmbulo dos textos indica certas hesitações naturais que são desfeitas logo em seguida. Sendo assim, bom amigo escrevente, seja você quem for, após o apanhado de seus ditados e encerrados os trabalhos do dia, ponha-se à disposição de seus amigos para possíveis reajustes e não estranhe se maiores venham a ser as solicitações de correção para o princípio dos textos.
É útil assinalar-se, também, que, ao final, com o roteiro pronto, o empuxo se dá com maior vigor, mesmo porque gostam os comunicantes de imprimir seu caráter particular ao fecho de ouro que prepararam, para decalcar na mente do leitor o ritmo adequado a propiciar-lhe sair da leitura melhor disposto para as reformas interiores que o contato mediúnico propõe.
Este nosso escrito está carecendo agora de apanhado exemplificativo seguro, que possibilite ao leitor perceber, na prática, o que vimos desenvolvendo. Vejamos se alguma lição podemos retirar do próprio ditado.
Fizemos com que o nosso escrevente relesse o título e a primeira frase e que nos informasse o que achava a respeito da estrutura inicial. Relatou-nos que não via nada a que pudesse objetar. Talvez — deixou impressa a sensação — se pudesse dar cunho mais técnico ou mais literário à peça, o que iria refletir-se em vocabulário melhor cuidado, de modo a representar, através de elementos mais sutis, que os espíritos redatores se inscrevem em categoria bem definida na escala estabelecida por Kardec, n O Livro dos Espíritos.
Pois, para conhecimento do nosso amigo, devemos afirmar que os dizeres de nosso texto, não só os que se consignam ao início, mas todos que decorreram por força da sintaxe e da semântica, a primeira a determinar as palavras-instrumentos, a última a delimitar o uso do léxico, se encaixam bem precisamente no que tínhamos em mira previamente e que recebeu o competente alvará de nossos superiores.
Imaginemos, para argumentar, que acatássemos a sugestão íntima de nosso benfeitor e trocássemos os nossos vocábulos por outros de melhor curso entre os seres mais intelectualizados que se atreverem a perlustrar o nosso modesto escorço. Suponhamos que, ao invés de dizer imaginemos, empregássemos algo como se de nossa ponderável excogitação ou lucubremos ou outro qualquer sinônimo até mesmo inusitado ou desconhecido de nosso mediador. Que proveito poderiam usufruir ainda, além do emprego do termo pelo qual optamos, aqueles mesmos indivíduos apaniguados por cultura superior? Ficariam regaladamente mais satisfeitos? Iriam realizar ponderações mais profundas? Ganhariam em riqueza moral e aprenderiam algo a mais que não estivesse devidamente catalogado em sua mente?
De resto, caro escrevente, analisando o parágrafo anterior, podemos notar que há determinada palavra que você repudiou, rejeitou, recalcitrando e intentando fazer-nos deixar de registrar, mas que conservamos para redigir estas observações. É o termo benfeitor, que empregamos dirigindo-nos a você mesmo. Ainda agora você se sente constrangido a acatar a nossa iniciativa, reagindo absolutamente contrafeito ao rumo que assume a nossa redação, preocupando-se com que, por certo, este mesmo período possa abortar.
No entanto, ao lhe imprimir na mente a possibilidade de estarmos controlando a extensão da frase e o significado de seus segmentos, você amainou os seus pendores para o descrédito e resolveu dar vazão aos impulsos que lhe chegam, ora decididos e firmes, ora tênues e imprecisos. É que estamos trabalhando com você na intenção de demonstrar aos leitores que há plena possibilidade de elaboração de mensagem de bom teor moral, ao mesmo tempo que a terminologia signifique, iniludivelmente, que os espíritos estão vigilantes para os aspectos redacionais, com o evidente objetivo de dar a todos a certeza de que se trata de pessoal treinado com o fito de transmitir aos encarnados, através de seus relatos, de suas sínteses, de suas crônicas, de suas missivas e até de seus discursos, as mesmas qualidades e virtudes que estão a pregar e a exigir se cumpram para melhoria das condições cármicas e para a realização das finalidades da vida.
Sendo assim, pelo teor da explanação, estruturam-se as frases e escolhem-se os vocábulos. Se há necessidade de se evitarem repetições, busquem-se palavras de mesmo nível sociolingüístico, sem a preocupação de se julgar que algo da mensagem esteja sendo afetado em sua pureza e originalidade. Se os conhecimentos mediúnicos forem suficientemente elásticos, fica fácil para o redator comparecer e levar ao revisor a intuição das alterações que deseja serem feitas, bem assim avisá-lo se aceita ou não as medidas que vem tomando para dar acabamento às comunicações.
Esta mensagem tem por objetivo ser técnica e, para isso, aproveitamo-nos de certos conhecimentos extraídos do aparato intelectual do nosso amigo, professor e estudioso da língua pátria, do vernáculo. Por isso, ainda aqui nos vemos na situação de ter de desfazer, não diremos propriamente más impressões, mas impressões que geram suspeição de que esteja havendo animismo e engodo.
Ressalvado esse aspecto e integrado o nosso leitor ao rol de informações que se contêm nesta nossa apreciação do ato mediúnico, resta referirmo-nos aos aspectos espirituais e morais que interagem no cérebro do médium ou do recebedor das mensagens, como elemento-alvo, destinatário final de nossas idéias e ensinamentos.
É que tudo não passa de mero desbloquear de sensações, às vezes angustiosas, de que os informes obtidos não sejam mais do que falácias, impressões subjetivas e intuídas de que tudo no mundo possa ser grande e triste mistificação. As pessoas ligam os seus desconfiômetros, com perdão da má palavra (ver a primeira parte de nosso texto), e não desligam nunca mais. É como se fosse marcapasso implantado no coração, que, se for desligado, leva o indivíduo ao desfalecimento e à morte.
Tal princípio é rígido e assim deve realmente ser, mas é preciso cuidar para que não se venha a transformar, ele mesmo, em tormento íntimo, para quem deseje estar sempre diante da autenticidade controlada. Às vezes, deve-se permitir que certos conceitos ganhem foros de cidadania, embora contrariem idéias, pensamentos, raciocínios e até sentimentos incrustados na personalidade. Deixar passar não significa, necessariamente, aceitar, acatar, admitir, mas dar permissão para que o inconsciente possa avaliar convenientemente o seu significado e o seu grau de verdade.
Desbloquear é o termo-chave desta mensagem. Veja se você, bom amigo, se utiliza desse expediente para prodigalizar à mente a possibilidade de crescimento em temas e assuntos que lhe sejam a um tempo desconhecidos e perigosos.
Por exemplo, ao ler os nossos dois últimos textos relativos ao carnaval e à repercussão da criminalidade, você não sentiu certo frêmito por ver o plano espiritual tão preocupado e envolto com a miséria humana da carne? Não estaria embutida em sua estrutura psicológica a prevenção contra os seres ditos etéreos que se imiscuem nas dores e sofrimentos dos que se encontram na densidade da matéria? Não seria justo inquirir-se se sua visão do mundo não inclui para a espiritualidade aquela antiga posição de desvinculação e alheamento integral da paisagem social e psíquica? Não veria você em nossos textos algo demasiado profano, em contradição com seu ponto de vista de que tudo que transcende à matéria deva ser considerado sagrado?
Eis o segundo termo essencial para ser compreendido por aqueles que desejam aprofundar a sua percepção de nossa intenções: reformar, remodelar, realimentar, recompor, para entender, assimilar e progredir.
Não vamos adiantar todo o nosso ideário de uma vez. Baste-nos esta pílula para dar ao prezado amigo a informação de que almejamos vê-lo a refletir sobre os aspectos externos de nossos trabalhos mediúnicos, mas, principalmente, no que se refere aos conceitos e demais elementos da vida moral, intelectual, evangélica, enfim.
Suponhamos que, após todas estas advertências, ainda o amigo consiga estabelecer dúvidas relativamente à moralidade de nosso procedimento, deixando, após análise minuciosa e atenta, crítica absolutamente construtiva, capaz de imprimir à nossa filosofia sérias derrotas.
Não importa. Se tudo se fizer no alto espírito da confraternização e do amor entre os seres, acataremos serenos as observações e nos predisporemos a rever os princípios que adotamos como norma de conduta para a elaboração de nossos comunicados. Mas não se furte o nosso feroz analista a nos propiciar condições de contato intuitivo, pelo menos, para fazer-nos ouvidos intimamente, de modo a injetar-lhe na consciência os nossos apanhados mais profundos das aulas de nossos instrutores e mentores. Certamente, com tais condições favoráveis, poderemos contribuir para melhor entendimento de nossos argumentos, ao mesmo tempo que ficaremos imensamente agradecidos por ter recebido influxo de energia propícia à recondução nossa à trilha da verdade.
Graças a Deus, temos tido a felicidade de contatar inúmeros indivíduos absolutamente sinceros e desejosos de progresso no âmbito das virtudes, na ânsia de se verem dotados dos sentimentos mais puros e dos conhecimentos mais importantes, para que venham a realizar vidas messiânicas, com o intuito de se promoverem a discípulos de Jesus, até mesmo na condição de apóstolos, sem qualquer resquício de impiedade ou de egoísmo. Seria ótimo se cada novo leitor pudesse compenetrar-se de que isso é perfeitamente possível e realizável, desde que disposto ao desprendimento de suas tendências materiais mais arraigadas e imperfeitas.
Vamos deixar-nos, todos nós, levar pela palavra do Mestre e amemos ao Pai, antes e acima de tudo, e ao nosso irmão como gostaríamos que fôssemos amados por eles. Se disso nos compenetrarmos, o mais virá por acréscimo de misericórdia.
Fique, bom amigo, na paz do Senhor e releia o nosso texto atentamente para verificar se foi capaz de eliminar todas as suas más impressões ou falsas interpretações de nossos trabalhos.







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O LEOPARDO FERIDO





Caminhava pela densa floresta soberbo leopardo. Até então sua destreza e agudo senso de direção o haviam orientado para caça farta e providencial, de forma que sua vida decorria às mil maravilhas. Poderosamente, enfrentara inimigos fortíssimos e conseguira triunfar sempre, até de peçonhenta serpe que o molestara mas não o atingira.
Contudo, certo de que conhecia a região muito bem, tanto as reentrâncias cavernosas como os fundos poços sob o lençol d água do lago, aventurava pressupor que sua vida transcorreria até o fim em harmonia e paz interiores. Era um leopardo previdente e se assenhoreara de seus domínios, infundindo o terror em quantos pudessem atrever-se a enfrentá-lo. Não contava, porém, com intrusos, adventícios de outras plagas, que poderiam vir em busca da tranqüilidade da região, incitados por desconhecidas razões.
Foi assim que conheceu o homem. Dotado de faro privilegiado, percebeu a presença dele antes que fosse reconhecido e pôde verificar que o pequeno bípede era extremamente perigoso, dado que trazia à cintura diversas presas abatidas. Se era capaz de reservas de alimentos graúdos da mesma forma que as formigas guardavam com que se alimentarem no inverno, era bom deixar aquele estranho vivente passar incólume, mesmo porque a caça abundante não iria abalar-se por tão insignificante criatura.
E o belo animal permaneceu no alto da árvore a observar atento o rumo que seguiria aquele ser estranho.
Mas o homem resolveu acampar. Miraculosamente, produziu fogo, que controlava a seu bel-prazer. Nesse momento, o leopardo decidiu afastar-se, mas os seus movimentos chamaram a atenção do homem, que o atingiu com misterioso e dolorido estrondo. Ferido, o felino embrenhou-se pela selva, sem tempo de refletir se não teria sido melhor enfrentar o minúsculo animal de pele esquisita.
Perambulou a fera durante muito tempo, sentindo queimação nas partes traseiras, na anca esquerda mais propriamente dito. Não queria passar a dor e o sofrimento levou-o a considerar se não lhe chegara a hora de deitar aos carniceiros e aos vermes a sua carcaça.
Acomodou-se do lado bom, repousou a cabeça no solo e sentiu profunda fraqueza invadir-lhe o cérebro.
Por seu turno, o homem, refeito do susto, prudentemente e a distância, pôs-se a trilhar a esteira de sangue que o ferimento a bala provocara. Após muito caminhar, deu com a fera ofegante, provavelmente em agonia. Resolveu, então, aguardar o desfecho lógico e ali permaneceu toda a noite.
Na manhã seguinte, insone em virtude dos sons perturbadores da escuridão, o homem pôde constatar que o belo felino ainda vivia, mas percebeu que, pelas redondezas, perpassavam sombras de animais atraídos pelo forte odor do sangue. Teria tempo e forças para afastar os intrusos?
Preventivamente, disparou dois tiros, não fazendo questão de direcionar sua arma para o alto mas no intuito duplo de espantar caso não atingisse animal algum que lhe valesse de troféu ou alimento. Ruídos de fugas apressadas denunciaram-lhe que seus disparos haviam logrado tão-só um dos objetivos.
Inquietou-se, porém, com o fato de ter-se o tigre erguido e farejado sua presença bem perto. Preparou-se para renovar a agressão da véspera, mas percebeu que o animal não lhe acenava com o perigo do revide. Antes, sofrido e apavorado, não conseguia mais forças para debandar. Afinal, caiu sobre os joelhos e rolou inerte pelo chão. Desmaiara.
O homem percebeu que estava ali a oportunidade de aproximação. Observou de onde vinha o vento e, tendo contornado a posição do animal abatido, foi ao seu encontro, de modo que ele mesmo sentisse o forte bodum que se exalava da fera enlameada pelas próprias fezes.
Condoeu-se o coração do moço. Imaginou-se dono da floresta, altivo e potente, e logo fraco e ao alcance de todos os inimigos. Mediu a distância que havia entre os dois e percebeu que, no apogeu de suas forças, seria abatido sem tempo de reação.
O homem filosofava e hesitava. Imaginou quanto tempo estivera por ali o soberano da floresta e arrependeu-se por sua intromissão. Considerou o valor da pele do bruto e não se conteve diante da irrisória quantia em troca de tão grande perda para a vida. Examinou a arma que trazia nas mãos e principiou o seu julgamento pelos crimes do relacionamento humano imperfeito e agressivo. Se ele, inofensivo diante da natureza, conseguia tão grande poder de destruição, é porque o homem um dia desejou sobrepor-se ao próprio homem.
Sentou-se na relva e percebeu que o grande felino ainda respirava. Inspecionou a bolsa e de lá retirou seringa cuja agulha introduziu em frasco de sedativo. Intentaria medicar o animal. Seria o mínimo que lhe poderia oferecer naquelas circunstâncias.
Após algumas horas de penoso trabalho, conseguiu costurar precariamente o corte por onde retirara o certeiro projétil. Injetou no paciente a sua última dose de antibiótico e afastou-se para não ser surpreendido ali no momento do despertar.
O homem rumou para a civilização e nunca mais voltou para a caça nem para a pesca. A vista do sofrimento lhe despertou os dormentes sentimentos de fraternidade e de compaixão. Não conhecemos a verdadeira história desse insuspeito indivíduo, perdido na multidão. Deve ter-se melhorado a partir de então.
O nosso leopardo ficou estendido no solo, largado à própria sorte. Reagiria o seu organismo? Conseguiria sobreviver? Seria atacado pela sanha dos que o sabiam inferiorizado e sem condições de reação, sendo devorado pelos inimigos? Que fim teria o nosso grande dono da floresta?

Prezado amigo, se prosseguíssemos com nossa historieta piegas e barata, dar-lhe-íamos o final mais apropriado, pode ter a certeza. Entretanto, qualquer seja o destino do animal, não seria outro que se pudesse contar com grandiosidade, pois os bichos sofrem as dores da vida e da morte, para lento e penoso progresso. Morrendo ou sobrevivendo, naquelas circunstâncias, pouco poderia fazer para incrementar de modo significativo os seus ganhos cármicos. Talvez o tiro que o atingiu lhe tivesse propiciado a felicidade de lhe encurtar a trajetória no âmbito de tal animalidade, mas esse resultado é incerto e vai depender da conquista de outros dons que lhe estejam ainda em falta. A nossa curiosidade, todavia, não nos leva a perquirir ainda além. Deus se apiade de sua alma e ofereça a toda a natureza a segurança de viver e conviver em harmonia!
O nosso desejo, evidentemente, expresso nesta época de tanta destruição e de tão graves ofensas ao meio ambiente, parece deslocado e absolutamente isento do sentido da realidade. É verdade que nossa besta-fera ainda existe em algum paraíso perdido, mas não demorará para ser deveras abatida pelo espírito humano decalcado nos princípios da materialidade mais grosseira. No ponto atual do desenvolvimento das tribos e gentes humanas, o mundo animal não tem mais grota profunda em que se esconda nem escuridão eterna em que possa aprofundar-se nos oceanos. Quando o homem não abate os irmãos animais diretamente, atinge-os pela inconseqüência de seus desajustes tecnológicos e sua imprevidência cármica.
Há bem pouco tempo, vimos passar o dia consagrado ao meio ambiente. Eram transmissões de televisão, eram artigos de jornais e reportagens extensas em diversas revistas. Discursos foram proferidos e o homem advertido de que a natureza está agonizante.
Movimentam-se os encarnados esclarecidos, sacrificam-se os que têm um pouco para oferecer em prol da harmonia da vida, mas a maior parte segue calada, absorvendo inconsciente cada pequeno palmo de couro, de pele, que se possa revelar como artigo de luxo. As entranhas da terra foram desvirginadas; bom para oferecer às criaturas o gozo da ventura de poder construir o paraíso à concepção dos humanos.
Desde que foram expulsos do Éden sagrado, parece que os humanos resolveram substituí-lo por cidades monstruosas em que as pessoas se acotovelam e se toleram mal e mal, enquanto possam obter umas das outras o que lhes permita sobrepor-se à maioria. Fechadas, contudo, em grandes conglomerados, devoram-se, sob o puro instinto de sobrevivência. Ao se expandirem, levam consigo tais valores pervertidos e promovem, onde quer se encontrem, os mesmos males que se habituaram a praticar, dizimando, queimando, arrasando, matando e roubando.
A forma de extração mineral é a maior fonte de poluição, após as grandes concentrações que se verificam nas perigosas indústrias da química e nos formidandos reatores atômicos. O homem cresce em conhecimentos mas decresce em saber e em moralidade. Se se utilizasse de seus recursos para salvar, ainda teria chance, não só diante do futuro material, mas principalmente perante Deus e a sobrevivência do espírito. Do jeito que faz, perde a possibilidade de sobrevida por meio do reencarne e não ganha os foros da boa cidadania espiritual.
A repercussão da ilusória capacidade humana de domínio da natureza, portanto, se dá ainda mais amplamente no âmbito da espiritualidade. Por isso é que têm os amigos do etéreo comparecido diuturnamente para a advertência cada vez mais premente e necessária. Bom que muitos ouvem o que se prega. Mau que a maioria persiste ignorante e agressiva.
Se o leopardo recebeu outra oportunidade de recompor-se, eis aqui a nossa oferta de redenção. Não se esqueça você, bom e elucidado amigo, de que a fera não regrediu nem progrediu em desacordo com seu status evolutivo, mas que o homem poderá ver-se diante de séria perda de possibilidade de progresso. O mal que for praticado contra a natureza repercutirá mais fortemente ainda na carapaça inviolável do perispírito, do que se possa supor diante da rutilância do Sol, que ainda tem como aquecer e dar vida. Fenda-se a camada atmosférica de proteção e você terá o Sol como o pior inimigo, aquele que lhe impedirá o progresso dos encarnes expiatórios e envolventes.
Quantos serão os milhões de anos que se farão necessários para recondução dos espíritos à face densa da Terra?
Vamos, pois, deixar de supor que o nosso domínio não possa ser invadido por força superior à nossa. Vamos pensar em que somos fracos diante da potencialidade universal de suprimir a vida da face do orbe. Vamos ser capazes de compreender a morigeração como premissa sensata para a sobrevivência do espírito em condições favoráveis. Vamos aplicar os dons de nossa inteligência na preservação dos bens naturais que estão ainda à nossa disposição. Vamos pensar as feridas ao leopardo por nós abatido e vilipendiado. Talvez ainda haja esperança para nós.
Elevemos a Deus a nossa súplica mais veemente e solicitemos dele a sua misericórdia e as suas luzes, para que a humanidade como um todo acorde para o bem da vida. Respondamos com humildade às iniciativas de nossos maiores e esplendamos em luz e em amor para com todos, conforme a demanda do Cristo—Jesus.







8

O AMOR DE DEUS





Deus é perfeito. Foi assim que Jesus o definiu quando indicou aos seres humanos o caminho da suprema verdade. Deus é amor e perfeição. A perfeição se impregna de amor; o amor é perfeito em Deus. Deus é a suprema inteligência. A inteligência de Deus se enche de amor. O amor de Deus é perfeito em inteligência. Deus é infinito. Deus é a infinita bondade. A bondade de Deus se conduz na perfeição de seu amor inteligente. Deus é justo e misericordioso. Deus é a suprema inteligência do amor infinito mais puro e perfeito que qualquer ser por ele criado possa vislumbrar. Deus é a suprema inteligência da perfeição da bondade, da misericórdia e da justiça. Deus é imutável. Deus é a perfeição da justiça exercida na infinidade de seu amor com suprema inteligência. Deus é Deus; o mais é criatura, perfectível e em aperfeiçoamento, como quis o Cristo—Jesus.
Você, bom amigo, como encontra Deus no seu dia-a-dia? Você pode vê-lo por toda a parte ou se limita a observá-lo a distância, com medo de macular a sua concepção e no temor de ofendê-lo? Você mantém sadio relacionamento com a Divindade ou se limita a inquirir dela as benesses em atraso ou sua benfeitoria que tarda e teima em não se apresentar?
Que idéia faz você da Divina Onipotência? Acha que Deus tudo pode mas já não mais pode nada, porque tudo fez e nada mais tem para fazer?
Que pensa você da Divina Onisciência? Julga que Deus tudo sabe mas que, uma vez que dispôs a sabedoria ao alcance dos homens, já não mais deseja nada saber, para punir os vermes que se arvoraram em sábios?
Como encara você, bom amigo, a Divina Onipresença? Considera que Deus já se espraiou pela criação e que, tendo despojado a todos os seres da perfeição de seus órgãos sensores, privou suas criaturas de poderem contatá-lo pessoalmente?
Como sente você, bom leitor, o amor de Deus pela sua pobre pessoa, insignificante e obscura? Pensa que necessita crescer para fazer jus à perfeição do amor de Deus ou considera que, independentemente de progresso, você já pode julgar-se no seio do Criador?
Ou nada pensa a respeito do Pai, porque desconsidera qualquer possibilidade da existência de ser de categoria absoluta que possa ter-se na condição de criador do céu e da terra, causa primária de todas as coisas?
Não se esqueça, bom amigo, de que o quer que você julgue, pense, imagine, considere, sinta ou firme como convicção, essa será a verdade. Não a verdade sua, particular, intocada e intocável, como fruto de meditação própria. Não. O que quer você conclua a respeito da realidade, essa será, concretamente, a verdade, o reflexo mais evidente de que tudo se realiza no universo e fora dele, como concepção maior da filosofia, como categoria superior da contextura humana, se condensa na individualidade de seu ser. O homem é o que ele é, como afirmamos que Deus é Deus; e seu universo é o universo, independentemente da realização do cosmo para os demais indivíduos.
Mas há uma diferença fundamental: Deus é perfeito, o homem, não; Deus é eterno, o homem, não; Deus é a suprema inteligência, o homem, não; Deus é amor, o homem, não; Deus é soberanamente bom e justo, o homem, não; Deus é a causa primária de todas as coisas, o homem mal concebe o pobre universo em que se espoja, em que se debate, em que prospera ou fenece, conforme se deixa, mais ou menos, envolver pela visão filosófica, moral ou sentimental dos divinos atributos. Enfim, Deus é imutável, bem como as leis que ditou para a criação e — graças a Deus! — o homem é mortal e não consegue vislumbrar mais do que lhe é oferecido pela sua insignificância.
Você, caro irmão, não se assustaria de sentir-se na pele humana com as qualidades inerentes à sua própria concepção do Criador? Que monstrengo seria o deusinho envaidecido e tolo, a comandar seus desejos, sem ter quem pudesse obedecer-lhe, dado que todos se revestiriam da mesma divindade?!
E, no entanto, na verdade, cada um de nós um pouco temos daquela perfeição, que arde em nós como centelha eterna, a comprovar que de Deus temos a semelhança e a imagem, pois dele proviemos e, irresistivelmente, para ele iremos.
“Sede perfeitos, como perfeito e o Pai que está nos Céus!” Eis-nos, de novo, voltando à exortação de nosso Guia Maior, do Mestre Supremo deste orbe em que todos temos atualmente a ventura de viver em carne ou de existir em espírito.
Para adquirir os atributos da perfeição, temos de fazer valer as regras que se impuseram para os terráqueos em seus relacionamentos cármicos. Para cumprir a palavra de Jesus, temos de nos compenetrar da verdade do Senhor, forcejando por alterar as nossas pequeníssimas concepções de miúdos seres inertes e inermes para o progresso, para a evolução. Se a carne é o nosso apanágio e a nossa grandeza, pois será dentro dela que deveremos haurir os benefícios da luz que do Alto descai sobre todos, será essa mesma carne que nos representará a nossa sordidez diante da falência de nossa caminhada.
Irmão, benigna e afável criatura que nos tem pacientemente seguido até aqui, agir em consonância com os deveres cristãos impregnados no evangelho de luz não é nem nunca será tarefa simples e fácil. Exigirá sempre sacrifícios extenuantes e representará sufocar a nossa vontade diante da vontade do Pai. Mas se esta não se realizar dentro do universo que criamos para nós mesmos, jamais poderemos ampliar a nossa visão para podermos pôr-nos cara a cara diante do Pai.
E a chave que nos irá abrir essa porta será a prece comovida, a prece agradecida, a prece pungente, a prece contrita e respeitosa, a prece que Jesus nos ensinou, com o espírito de Deus impregnado no fundo de nosso coração. Se conseguirmos avaliar a perfeição do Senhor e se formos capazes de concentração espiritual com a conseqüente alienação do circunstancial, bem poderá ocorrer que as palavras da oração se impregnem das vibrações mais consentâneas para o relacionamento com Deus, que está em toda parte e que aguarda tão-só a nossa manifestação de humildade e de enternecimento para demonstrar que nunca saímos de seu regaço de puro amor.
Fique, bom amigo, com Deus, no recesso, na intimidade de sua consciência, e saiba que, definidos os pontos fracos e avaliada a impotência de superação dos males que se acercam de todos, basta erguer pequenina prece rogativa de auxílio, que pressurosamente os representantes da espiritualidade superior acorrerão para o socorro, entidades que são conscientes da fragilidade humana, não havendo uma sequer que não tenha estado em situação semelhante.
Eis-nos, finalmente, aqui representados por este texto de ínfima pretensão, pois reconhecemos que nossa contribuição está falta de luz e de poder de persuasão, principalmente porque só reproduz o que fomos capazes de absorver de nossos mentores, em suas aulas de evangelização. Mas pequena aspiração temos, ou seja, que o nosso eventual leitor se digne a aceitar a nossa palavra como legítima, como lídimo e verdadeiro reflexo do plano espiritual, de sorte que seu horizonte possa estender-se para além da perspectiva corpórea, de modo que o seu universo único obtenha contextura transcendental e admita a presença do plano da espiritualidade. Só isto bastará para nos sossegar em nossa ânsia de obter dos encarnados o seu alvará para futuras leituras e aplicação de seu raciocínio em função da aceitação das verdades que se contêm nas obras da codificação kardequiana.
Vamos orar todos em conjunto a Oração do Pai, que encerra, em sublime extrato, todas as verdades da religiosidade. Não importa que o momento da leitura se distancie deste em que transmitimos a nossa mensagem. Fossem milhões de novas reuniões a fazer e a nossa perspectiva se encheria de alegria e profunda satisfação, realizando-se o nosso objetivo maior. Portanto, querido irmão, não se envergonhe, não se contraia, não se avexe, não se intimide e, de coração puro, reze conosco, pois estamos aqui e agora, bem ao seu lado, para lhe propiciar o maior influxo de energia espiritual que formos capazes de mobilizar em seu favor.







9

A FELICIDADE TERRENA





Objetivo maior da quase totalidade dos encarnados, a felicidade representa o móbil que faz com que todos ajam. Até mesmo aqueles impenitentes que sofrem, nos hospitais psiquiátricos, os horrores da total falta de contato com a realidade se sentem infelizes por verem que seus ideais se frustram dia a dia, ao não alcançarem os míseros projetos de simples investidura de personalidade imaginada. O seu querer é a realização de seu ideário, em busca da concretização do estado de felicidade almejado.
O rei no seu palácio, o príncipe nos seus sonhos, a princesa na sua angústia de tornar-se a figura primeira dentre todas, o ministro em sua vontade de poder, o religioso na ambição de indicar caminhos, todos vislumbram o dia quando perfarão a sua felicidade.
Não há ser encarnado que não tenha sentido esse desejo imenso, quase diríamos cármico, se não soubéssemos que a visão do espírito é, muitas vezes, mais abrangente, mais profunda e menos aferrada às contingências do dia presente.
Eis o mistério revelado: o encarnado vive o dia de hoje ao influxo de sua programação de ontem, buscando realização de maior permanência para o dia de amanhã. Muitos se compenetram de sua realidade intelectual e se ajustam às circunstâncias, admitindo postergar alguns planos, ao perceberem que o dia de hoje está bem próximo de sua visão de proveito e de vida. Assim, deixam diversos projetos para mais tarde, ao mesmo tempo que suspendem, temporariamente, a confecção de outros. De qualquer forma, tudo para eles não passa de momento de espera, pois sabem que o tempo passa e que terão de vir a conformar-se com novas situações. Tais pessoas, contudo, não se encontram senão em certos setores sociais, aqueles mais abonados, aqueles mais estáveis e menos arrostados pela possibilidade de falência. São os que mantêm o estado vigente.
No entanto, passado o tempo das vacas gordas da idade madura, ao se delinear no horizonte próximo a perspectiva da velhice, a acomodação tende a transformar-se em paciência, em solidariedade familiar, em amizades mais duradouras e permanentes. Chega-se à conclusão de que o gozo da felicidade não pode postergar-se mais.
Ao se adentrar na velhice, ainda recrudescem os desejos da absorção do gozo de tudo que a vida possa oferecer e o homem passa a usufruir tudo com maior intensidade, embora não demonstre exteriormente qualquer ânsia ou inconformismo. É o momento do puro prazer, da extrema felicidade.
Mas a vitória final vem eivada de sombras, a maior de todas produzida pelo vulto da morte. Quando as doenças e os achaques se manifestam, o sentido do prazer e da felicidade se deteriora bruscamente, pois se acendem nos espíritos das pessoas as luzes da desconfiança, da dúvida, da incerteza. A felicidade se escoa por entre os dedos e todos os planos de ventura começam a se delinear para além da vida física.
É aí que os desejos filosóficos se instalam e os homens começam a planejar tudo de novo, como se fosse possível dominar as suas realizações em campo energético totalmente desconhecido. Quase sempre as religiões se enchem de indivíduos de idades avançadas, pois são as promessas solidárias com esses impulsos íntimos de perduração do desejo de felicidade que movem os velhos para Deus, para seu Reino de Amor e Ventura. Acostumados a ver, no passado, tão-só a época dos planos e, no presente, o momento de preparação para o gozo futuro, impotentes para grandes realizações intelectuais e morais no momento do depauperamento físico, restringem-se a orações e pedidos, a maior parte das vezes, de perdão por faltas cometidas ou por caridade não praticada.
Nesse instante supremo de arrependimento e de dor, supõem preparar-se convenientemente para enfrentar o julgamento do Pai, devidamente perdoados pelo padre ou pelo ministro. E, em felicidade e paz, penetram no mundo da espiritualidade.
É esse dia-a-dia que viemos comentar e deblaterar. Se o ser humano encarnado visa a conquistar a felicidade, é preciso saber que a peregrinação corpórea pode repetir-se indefinidamente, de modo que todo e qualquer plano para se reproduzir o espírito da felicidade em fictício paraíso pode só representar que a pessoa se deixou imbuir pela matéria tão profundamente que pretende carrear para o plano da imortalidade exatamente os mesmos princípios que embasaram todo o seu procedimento de vida. Ao contrário, se se compenetrar de que a felicidade maior não se coaduna com os percalços terrenos, já que no etéreo não existem essas condições de tempo, de crescimento, de estabilidade e de deterioração, mas que tudo caminha para o aperfeiçoamento de cada pequeno atributo, que, uma vez adquirido, não se perde mais, aí poderá criar situações de vida mais reais e consentâneas com os objetivos maiores do espírito, de acordo com a lei da evolução.
Sendo assim, o planejamento da vida poderá comportar inúmeros tópicos onde se incluem aspectos de sacrifícios, de desprendimentos, de doações, de dor e de sofrimento, não buscados ou incentivados mas admitidos e aceitos como efeitos incoercíveis de causas que precisam ser eliminadas para o fim visado de aperfeiçoamento. O conceito de felicidade mudará profundamente, mas não deixará jamais de embasar os projetos de vida. Aquilo que significaria puro gozo carnal, dos sentidos e das sensações, passa a ser o efeito da mais pura convicção de que Deus é amor e o homem a criatura destinada a encontrar-se com ele.
O Grupo do Jornal, portanto, visando ao dia-a-dia de seus leitores, traz-lhe mensagem em que tudo parece concentrar-se em ideais de eternidade. Mas o que é para o encarnado a vida senão a soma de cada dia vivido e passado segundo os roteiros orgânico e social que se encontram estabelecidos na face do orbe? Se os nossos amigos se deixarem embalar tão-só por sonhos de realização material, certamente irão lamentar-se profundamente pelo desperdício de seu encarne por ocasião do próprio julgamento a que todos estamos sujeitos por ocasião do reingresso no plano espiritual.
Não nos precipitemos diante da matéria, mesmo que nossas condições sejam as mais penosas possíveis. Abramos o nosso coração para o Senhor Jesus e aceitemos o seu evangelho como roteiro superior, a guiar as nossas ações e reações. Se constam de nosso planejamento de vida a formação de família e a criação de filhos, vamos, desde logo, saber que o principal não está em dar-lhes do bom e do melhor, no intuito de facilitar-lhes a vida premunindo-os de passageira felicidade. Antes, alertemo-nos para a necessidade de vigiar-lhes o crescimento moral, apontando-lhes as virtudes como o alvo maior a que se deverão destinar em suas peregrinações, mesmo que se venham a deixar de lado certas premissas terrenas de gozo e tranqüilidade.
Vejam bem, não estamos propugnando que todos possam amealhar tão-só os haveres de que se servirão para guindarem-se aos planos superiores da espiritualidade. Não seríamos ingênuos ao ponto de não compreender que há necessidade de certo conforto e de certo adiantamento intelectual, para a compreensão dos valores existenciais, mesmo porque a configuração no espírito das leis de causa e efeito, da reencarnação e do amor universal, exigirá a lúcida consideração do que deve ser derruído e do que deve ser preservado, dentre as normas e conceitos estabelecidos pela civilização humana e diuturnamente insuflados na mente e no coração de todos os cidadãos.
Quando os indivíduos conseguem assimilar os princípios cristãos, sentem-se um pouco como aqueles seres isolados da sociedade a que acima aludimos, os habitantes dos hospícios e manicômios, pois irá parecer a eles que estão desligados da realidade circunstante. Mas haverá absoluta diferença: os que inventam o seu ideário de felicidade criam também o seu mundo particular; os que regem seu proceder pelas regras de Jesus imiscuem-se na excelsa glória do Senhor. Uns não são tocados pelo amor; os outros são conduzidos pela solidariedade, pela confraternização e pelo afeto, na mais sadia tentativa de cumprir as leis do amor, da justiça e do trabalho.
Assim, o Grupo do Jornal pensa ter vindo à sua presença para que você reforme desde já o seu dia-a-dia, propondo-se planos de realização mais consentâneos com as verdades eternas, mas aplicando-se a cada instante em sua realização, ciente de cada dia será absolutamente igual ao anterior e que o futuro na carne só reserva felicidade para quem conseguiu ser espiritualmente feliz no dia de ontem.
Ouçamos ainda o Cristo, quando nos diz que nos baste o dia de hoje.

Felicidades, amigo! Guarde um pouquinho dos nossos dizeres para refletir a respeito de seus projetos de vida. Fique na paz do Senhor, hoje e sempre!







10

DOR DE CABEÇA





Lamenta-se nosso mediador de que esteja com um pouco de dor de cabeça. Para evitar achaques maiores, prevenido, deixou de tomar o competente ácido acetilsalicílico, a aspirina, que lhe poderia aliviar a dor mas incentivar outras reações que temeu poderem ser prejudiciais aos trabalhos do mediunato.
Tudo isso quer parecer-nos mero aspecto de supersticiosa atitude subjacente, mesmo porque, por experiências anteriores, sabe ele que não só o remédio não nos impediria de trabalhar, como ainda poderíamos suplantar qualquer efeito colateral. Por outro lado, resta a hipótese bem viável de que o nosso médium aguardasse ser curado de sua dispnéia durante o transcorrer dos trabalhos, de modo que, mesmo que viesse a sentir os sintomas após, tudo decorreria em plena normalidade.
Eis que o nosso discurso toma rumo novo. Será que todos os mortais costumam reagir da mesma forma? Terão os cuidados a que acima aludimos mas referentemente a qualquer vinculação com os planos espirituais?
Por certo, os católicos, quando saem do confessionário e se dirigem para a comunhão, conseguem sofrear todo instinto mau naquele período de tempo. Mas não haverá subjacente a esperança de que tudo possa voltar a se desenvolver como antes, quando, ao embalo de sua norma habitual de conduta, cometeram os mesmos desvios do padrão evangélico que gostariam de prosseguir cometendo? Não haverá no fundo desse comportamento grande hipocrisia? Para que se purificar diante de Deus, se o objetivo maior é continuar exercendo o direito de errar, por força de que os momentos diante do Pai estão marcados e reservados?
Não espere você, bom amigo, que a sua dor de cabeça venha a passar por força de sua aplicação ao trabalho. Faça, também, por compreender-lhe a causa e empregue a medicação conveniente para se apresentar diante de Deus a todo momento. Não faça reservas no Céu, como se você fosse viajar com hora marcada e tudo o mais. Vire-se para o lado que for: você estará sempre de face para o Senhor. Quer esconder-se? Onde poderia você furtar-se à vista do Pai? Não será, pois, na intenção de melhorar que se irá encontrar o seu maior valor, mas na própria melhora, no momento da cura e na preservação da saúde.
Vire-se para o lado que for: você estará sempre de face para o Senhor!




Comentário



A exposição se fez na vontade de se orientar a pessoa para não ceder a certos caprichos ou idéias infelizes. Se é bem verdade que nem tudo se obtém de modo claro, diante de pensamentos bem definidos, uma vez que os resultados nem sempre se coadunam com os planos estabelecidos, também é preciso considerar que um mínimo de reflexão se deve ter diante das ações que desencadeamos, muitas vezes em atenção a costumes arraigados em nossa cultura, outras tantas por observarmos nossos próprios tiques e hábitos, nossa maneira de ser, nosso estilo, nossa típica forma de reagir diante dos sucessos.
Antes que entremos por caminhos de difícil retorno, vamos parar um pouco e meditar a respeito de cada movimento intelectual nosso, observando o que se pode atribuir à mera influenciação dos instintos, que lutamos por compreender e dominar. Deixemos a nossa razão estabelecer novos roteiros de vida, se assim for preciso, mas não nos enleemos nos vícios ou nas vicissitudes por força de certa intemperança emocional.
Será bem difícil atingir o ápice desse caminho ascencional, em cujo topo nos aguarda Jesus de braços abertos. Mas façamos um pouquinho cada dia, mesmo se à custa do sacrifício de certos prazeres, cuja essência e existência muitas vezes nem percebemos.
Vamos exemplificar, a pedido de nosso escrevente. Seja o fato de se chegar a casa de volta do trabalho e se vestir com roupa caseira, na intenção de demonstrar-se absolutamente relaxado. Tal atitude de conforto material pode refletir-se imponderavelmente em sério desajuste intelectual, pois o indivíduo se despoja de seu senso de responsabilidade, de modo que, mesmo que tome de um livro espírita para ler, irá fazê-lo de modo alheado, despreocupado, superficial. Ao contrário, se o sujeito, ao chegar a casa, buscar concentrar-se no que terá pela frente, com igual mérito e espírito de responsabilidade, poderá dar o devido e real valor aos aspectos filosóficos, religiosos, poéticos ou evangélicos de sua atividade de leitura, a qual ultrapassará a mera intenção de ler para afirmar que leu, para assumir a postura do estudioso diante da lição que tem de assimilar e integrar aos seus conhecimentos, a fim de, um futuras atuações, aplicá-la devidamente para proveito próprio e dos semelhantes.
Fique, caro amigo, ciente de que o nosso comentário tem razão de ser, mas não se desiluda da vida, achando que tudo que vem fazendo merece censura. É bom que se analisem as atitudes, os hábitos, as ações, os pensamentos, a própria maneira de ser; entretanto, isso não quererá forçosamente dizer que tudo que se faça mereça recriminação e esteja sujeito a graves alterações. O que pleiteamos junto ao estimado leitor é séria reformulação no modo de encarar a vida, o que não significa necessariamente que vá sofrer dores de cabeça prejudiciais aos seus trabalhos. Nada disso. Caso você sinta as primícias de leve pressão, pode socorrer-se dos remédios que o Espiritismo lhe deixa disponíveis, pois os médicos que os receitaram estão atentos para a ictiologia dos males e para possíveis reflexos em outros setores do organismo.
Valha-nos a linguagem metafórica para que possamos repetir-lhe: vire-se para o lado que for, Deus estará sempre voltado para sua face.

Em tempo. A dor de cabeça de nosso estimado confrade não o impediu de trabalhar tão eficientemente como de hábito. No entanto, ao término da sessão, está perfeitamente cônscio de que deverá medicar-se, se quiser evitar essa dolorosa sensação. As causas são conhecidas, o remédio também; resta agora aguardar os efeitos.
Fique na paz do Senhor!







11

PEQUENÍSSIMO HIATO





O Grupo do Jornal deseja externar os seus agradecimentos ao bom amigo que nos serviu de intérprete nesta jornada de eventos mediúnicos. Devemos frisar que os dias em que aqui estivemos se revestiram da máxima alegria.
Pode estranhar o bom amigo, seus familiares e demais pessoas que nos acompanham os trabalhos, que aqui estivemos por muito pouco tempo. É que era desejo nosso tão-só desenvolver o tema da necessidade evolutiva a partir do momento presente, como tomada de consciência dos objetivos da vida. Se é bem verdade que o mundo tem a capacidade de analisar o passado e de determinar o futuro até certo ponto, também devemos observar que esses indícios de vida em continuidade costumam dar aos encarnados a falsa noção de que tudo que fazem de errado será um dia consertado, seja pelo desenvolvimento natural dos fatos, seja por intervenção de alguém mais poderoso, quer no plano da carne, quer no do espírito, de sorte que o presente fica relegado a algo inexpressivo, apesar de que tudo ocorre dentro de seus limites.
Essa temática é extremamente sutil mas os pontos de análise e crítica bem pouco extensos. Se formos ampliar a nossa visão, iremos somente repetir a exemplificação, inocuamente, ou aprofundar a visão cármica para além dos limites das necessidades prognosticadas para a aventura no orbe.
Eis, portanto, que cumprimos o nosso compromisso, devendo agora partir para influenciações individualizadas, que é o verdadeiro setor que elegemos como campo de atuação.
Graças a Deus! Fiquem com o Senhor, no recesso de seus lares! Felicidades!





TERCEIRA PARTE





SENTIMENTO E RAZÃO















APRESENTAÇÃO





O grupo que ora se apresenta constitui outra turma de alunos da Escolinha de Evangelização. Devemos informar que nossa permanência também será curta, pois o aprendizado a que nos destinamos é iminentemente prático.
Vamos estabelecer sucinto roteiro de atividades, de modo que o mediador não deve sofrer com o impacto de nossas mensagens. Este dia reservou-se para as primeiras tentativas, de forma que o texto poderá até surpreender pela ingenuidade temática.
Escreva, então:







1

O BILTRE





Caminhava solitário pela estrada peralta criatura eivada de falhas de moralidade. Era sintomaticamente um cavalheiro na aparência, mas iludia a todos quantos pudesse pilhar desguarnecidos.
Sabemos que nosso linguajar está perturbando o irmão escrevente, mas não desejamos indicar qualquer modificação. Ao final, se for o caso, poderemos efetuar as alterações que julgarmos oportunas.
Assim caminhava o nosso biltre, quando se surpreendeu diante de si mesmo. É que, do outro lado do caminho, avizinhava-se, em sua direção, alguém que lhe parecia ter saído de dentro do espelho. Sósia perfeito, inclusive na indumentária, o nosso irmãozinho não sabia o que pensar.
Estranhamente, o perfeito clone com quem se deparou não externou qualquer surpresa, nem demonstração de que estivesse maravilhado com a semelhança. Tão-só bocejou suave “Como vai?”, formal e protocolar, e prosseguiu caminhando lentamente na direção de onde viera a nossa personagem.
Para facilitar, vamos atribuir o nome de João ao nosso amigo, pois deveremos ainda referir-nos muitas vezes a ele.
João não sabia bem o que pensar daquela estranha coincidência. Teria sido gêmeo de algum irmão afastado do lar por motivo imperioso? Que se teria passado no plano das intervenções espirituais, para que a natureza pudesse produzir alguém com tanta semelhança?
João, perplexo e irritado por não ter provocado reação de igual extensão no caminhante solitário, resolveu segui-lo, pois antevia problemas sérios se o irmão decidisse entrar em contato com certos indivíduos que havia ludibriado.
Não demorou para ambos se verem penetrando aldeiazinha próxima, de onde saíra sorrateiro o nosso João.
Assim que se deparou entre os habitantes do lugar, a sua imagem e semelhança se pôs a conferenciar com eles com extrema afabilidade. Dir-se-iam velhos conhecidos. De repente, o desconhecido voltou-se para o local em que estava escondido e dirigiu-lhe a mão estendida com o dedo em riste, como a apontá-lo para os demais.
Imediatamente, João voltou-se nos calcanhares e desapareceu estrada afora.
Dizem que nunca mais praticou qualquer ato que não seja de absoluta lisura, dentro dos estatutos sociais e morais por todos aceitos e preceituados. A só visão de si mesmo a endereçar seus inimigos contra si bastou para auxiliá-lo a ver que os homens são o que são, mas podem ficar bem melhores se aceitarem os compromissos que têm para com a verdade.
Fato concreto: João é hoje missionário do Senhor e renega tudo de mau que tenha praticado, nesta e em anteriores existências. Agradecido ao Pai, mandou realizar grande fotografia sua de costas, que colocou na porta de sua casa comercial, como que a indicar que o homem que ele é quer ver pelas costas, de modo que possa sempre estar diante de si mesmo em função da melhora que se promete de coração.

Eis aí, irmãozinho, a nossa primeira narrativa. Está vazada em termos meio surrealistas. Mas os contos que não são fantásticos não parecem causar aos terrícolas mais qualquer frêmito. Assim, não se acanhe em apanhar estes ditados aparentemente fugidios e misteriosos. Após certo volume, você terá rigorosamente diante de si os nossos objetivos plenamente expostos.
Fique agora na paz do Senhor e procure organizar o seu tempo para poder executar todos os seus trabalhos. Vá na graça do Senhor!

Todo o escrito de hoje deve servir de parâmetro para estabelecer o critério de julgamento deste novo grupo. Quando se forem datilografar as mensagens, todos os dizeres devem estar contidos, mesmo os que aparentemente sirvam tão-só como orientação ao mediador. Inclusive, estas anotações finais devem ficar bem expressas, talvez até em destaque.







2

O FOLGUEDO JUNINO





Com tal título, pode-se pensar em que vamos contar história trágica de balões incendiando casas e florestas ou de crianças perdendo dedos, a vista ou a vida, através da detonação intempestiva de bombas. Nada disso. Nem vamos relembrar os festejos antigos à beira da fogueira, sob o som das violas e ao compasso das quadrilhas. Chega de pinhão, de pipoca, de batata-doce e de namoricos.
Queremos, isto sim, enfatizar as festas que se realizam no fundo do coração das pessoas que se esmeram em proceder, em junho, em conformidade com as vidas dos santos que regem as três principais datas: Antônio, João e Pedro. Se o primeiro casa, o segundo informa e o terceiro estabelece a firmeza da fé e da religiosidade, é preciso saber que os três dedicaram suas existências corpóreas conhecidas às demais criaturas, pregando a verdade e chamando à razão cármica.
Antônio dedicou-se à prece e aos pobres. João batizava e dizia ao povo para que se deixasse de lado a vida pecaminosa. Foi morto por isso. Pedro fundamentava o cristianismo nascente, concitando os homens à evangelização. Terminou tão crucificado quanto o Mestre, embora tivesse passado pela fase do medo e da negação, conforme previsão de Jesus.
Todos nós admiramos de fato aqueles que se doam por uma idéia, por ideologia alevantada, à multidão de irmãos, incondicionalmente. Sabemos que o sacrifício é terrível e não nos aventuramos a perseguir idéias tão perigosas para nossas débeis constituições espirituais, morais, psicológicas e físicas. É preciso saber, contudo, que o dia virá em que o testemunho será de lei e que, se titubearmos, iremos postergando o momento da glória e tornando cada vez mais dolorosa a decisão.
A nossa fala visa a amenizar o caminho pedregoso. Ouçam-nos, portanto, caros amigos.
A partir da compenetração da verdade evangélica e da absorção da tese espirítica de que o homem existe na face da Terra para ascender mais rapidamente aos páramos celestiais, vamos crer em que tudo o que fazemos tem repercussões morais e espirituais. Não há necessidade, portanto, de grandes demonstrações de fé, de enormes sacrifícios, de desprendimento absoluto. Haverá tempo para isso. Por enquanto, antes de realizarmos qualquer movimento em prol seja do que for, respiremos fundo e não nos deixemos envolver por ideário materializado por aspirações mundanas. Se, claramente, o que objetivamos realizar pode ser considerado contrário aos mandamentos cristãos, refreemos o impulso e coloquemos verdadeiro óbice moral, para não reincidirmos em nosso vezo. Saibamos reflexionar por instantes, por segundos, por átimos de tempo, para irmos, paulatinamente, conseguindo dominar as nossas ânsias mais impuras, menos saudáveis.
É treinamento básico para futura santificação, porque, ninguém se engane, para atingir o reino de Deus, não haverá de ser qualquer pobre pecador igualzinho a nós neste patamar de nossa evolução.
Mais tarde, após termos percebido que a natureza está ajudando-nos a aprimorar os nossos atos, pois a psique humana irá refletindo beneficamente toda retenção de desejos prejudiciais para o físico ou para a mente, então, adquiriremos força para empreendimentos mais profundos e enérgicos.
Por ora, pois, fiquemos neste pequeno aviso e brindemos a esses três verdadeiros santos do mês de junho, tornando cada um deles a nossa mira, na ventura desta vida.

O nosso texto aparentemente fugiu à programação denunciada na transmissão anterior, entretanto, não se veja neste trabalho algo que não se possa considerar, inequivocamente, bem paradisíaco, isto é, algo que se aspira a conseguir para os outros. Se introduzimos a nossa pessoa naquele plural de endereçamento que ainda agora estamos utilizando com outro sentido, é para dar aos leitores o sinal da modéstia e do compartilhamento do destino. No entanto, a nossa pretensão é de termos superado essa fase dolorosa do testemunho, pois devassamos o nosso íntimo e temos perfeita consciência dos males que ali se alojam e que necessitam extirpados.
Vamos, pois, reiterar a afirmativa de que o nosso texto está absolutamente integrado no conjunto de nossas mensagens, que apelidamos de surrealistas. Poderíamos pensar em caracterizá-las como super-realistas, uma vez que parte de nossa realidade para apreciação dos eventos carnais, mas o que sabemos do espírito do homem encarnado, sem sermos pessimistas, é que procura diminuir a verdade, reduzindo-a a minúsculo punhado de barro, fácil de amoldar, de acordo com sua poderosa e volúvel vontade.
Sendo assim, estes tópicos finais devem integrar o conjunto de texto e comentário, como se fora uma única e mesma exposição, sem “graças a deus!” intermediário e sem data, menos ainda a clássica separação com o título comentário. O máximo que aceitamos é a presença de pequeno entreato indicado por linha em branco e só.
Vejam, queridos amigos, que nossos dizeres vão até à minúcia do apanhado técnico, pois cremos que o interesse de nossos leitores se define principalmente pelo controle que se possa exercer das minudências. Deus é o infinito; o bem, o devir, o direito, a justiça, o amor, a lei do trabalho, a eficácia das reencarnações cármicas, tudo o mais que constitui a grandeza do humano poder evolutivo, essencialmente o reconhecimento ao Senhor através da prece amorosa e o auxílio diuturno aos que sofrem, enfim, tudo o mais que religaria a criatura ao Criador é mero detalhe sem importância.
Fiquemos nesta irreflexão e esperemos que o nosso desabrido texto contunda veementemente todo aquele que se julgue apaniguado por estrutura moral superior, de modo a fazê-lo ciente e consciente, como nós, de que o desenvolvimento está sendo providenciado e qualquer dia destes seremos alçados à categoria de anjos.







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O REMORSO





Anacleto era bom homem. Tudo que desejava na vida era ser fiel aos princípios evangélicos. Mas, certo dia, deixou de dar esmola a pedinte, apressado que estava para pegar o ônibus. Em sua rápida corrida, deixou-o com a mão estendida. E isso foi tudo.
No entanto, a mente começou a martelar-lhe a idéia de que deveria ter feito o bem que deixara para trás. Ali mesmo no ônibus, antes da próxima parada, já havia deliberado que desceria para efetuar o ato caritativo, pois, para espórtulas, deixava reservadas certas notas na carteira.
Assim pensou, assim fez. Parado o ônibus, desceu e resolveu volver a pé o caminho entre os dois pontos. Afinal de contas, andar um quilômetro, mesmo que atrasasse um pouco para jantar, não faria diferença.
No trajeto, ponderava a respeito de seus objetivos de vida. Ia distraído, a rememorar desde o princípio o quanto havia feito até ali em prol da humanidade. Concluiu que sua dedicação era grande mas que pouco podia oferecer aos irmãos em crise econômica ou moral. Deixou escorrer algumas lágrimas e acabou não percebendo que passara do local em que abandonara o pedinte. Quando deu de si, estava bem além, na direção oposta a seu destino.
Voltou nos calcanhares e topou de cara com o malandro que o incitara à piedade, contando as notas que arrecadara naquela tarde. Notou, então, que o volume era superior a qualquer quantia que já portara em sua carteira e que o pedinte, ereto, parecia bem melhor disposto de saúde que ele mesmo, sempre com alguma tossinha ou fina dor de cabeça pelas poucas horas de sono, tempo roubado para leituras e meditações. Julgou a pobreza moral do irmão e resolveu dar-lhe o que lhe estava faltando: a noção da moralidade divina para que pudesse enriquecer-se espiritualmente.
O esmoler, contudo, não entendendo o gesto daquele que reconheceu como o passante que correra para o ônibus, sentindo-se traído pela exposição de seus haveres, concluiu de imediato que alguém que tão rápido desaparece e volta a aparecer só poderia ser da polícia. Pernas pra que te quero, fugiu em desabalada carreira, deixando Anacleto, frase em meio, perplexo e confuso.
Imediatamente, o nosso amigo pôs-se a considerar que, pela vez segunda, deixara de auxiliar a mesma pessoa. Passou-lhe pela cabeça, então, se não era desafio superior para que trabalhasse com afinco pela recuperação daquele ser perdido na devassidão moral. Ponderado, deixou para mais tarde a reflexão de como atingiria o seu alvo de benemerência e retornou ao roteiro habitual.
Naquela noite, Anacleto teve sonho muito estranho. Via-se envolvido com ex-padre, mendigo, assassino perigoso, a rir dele por estar correndo com baldes de dinheiro para lhe entregar. Quando chegava perto, o dinheiro se transformava em cruzes luminosas e brilhantes, que intentava despejar por sobre o solerte mendigo, que se esquivava e desaparecia, enquanto as cruzes se espalhavam pelo chão, transformando-se em miríades de fagulhas, como se fossem bênçãos divinas, conforme as que se lembrava terem descaído do Alto, em noites absolutamente felizes. O sonho parecia não terminar nunca, entretanto, ao despertar, verificou que não se haviam passado dez minutos desde que se deitara. Assustado com a lembrança indelével que ficou marcada em sua memória, levantou-se e pôs-se a meditar a respeito de tudo.
Nesse momento, em que estava sentado na poltrona ao lado da cama, fez-se-lhe visível suave presença de mulher, de rosto absolutamente resplandecente, qual figura angélica de extraordinária pureza e inefável beleza. Acreditou estar diante de algum espírito de luz e pôs-se de joelhos, agradecendo a visão poderosa que só lhe poderia indicar que estava sendo visitado por ato de puro amor e comiseração.
Em prece comovida, agradeceu a Deus a ajuda extraordinária que estava recebendo e dispôs-se a ouvir o que a excelsa aparição teria para dizer-lhe.
Foi assim que ficou sabendo que tudo que vinha fazendo refletia o mais intransigente egoísmo. Diante da primeira frase de verberação contra sua intenção de comprar o Céu, Anacleto esfriou o entusiasmo. Todo sacrifício que fazia era tido na conta de orgulho, de vaidade, de amor-próprio? Com que humildade deveria proceder? Deveria espojar-se no chão, humilhando-se diante dos irmãos que riam dele à socapa, como o espírito de seu sonho riu em sua frente?
As respostas vinham prontas e subitâneas, através da maviosa voz da sublime entidade, no entanto, a revolta se instalara na mente e no coração de Anacleto, que não ouvia as argumentações e as explicações. Por fim, num desabafo, disse em voz bem alta e clara:
— Se vocês sabiam que eu iria reagir tão mal, evidenciando as verdades que vocês estão a demonstrar, por que vieram atormentar-me? Isso é falta de misericórdia, de caridade. Vocês não vieram de Deus mas do inferno e estão a querer iludir-me. Vade retro, Satanás!
A entidade ainda permaneceu durante alguns instantes à frente do nosso irmão, mas, diante de tanta força repulsiva, esmaeceu e desapareceu.
Anacleto julgou que tudo não passara de plano infernal. Recapitulou os fatos do dia. Viu o ônibus aparecer de súbito para impedir-lhe o gesto de amor. Certamente, por obra do Diabo. Viu sua compenetração na caminhada de volta, impedindo-o de dar a esmola no momento certo. Fora trabalho do Demo. Reconheceu o mendigo na figura que contava o dinheiro do dia e que fugiu à sua intenção de ajudar. Atividades de Belzebu. Sonhara em pesadelo de agonia que não conseguiria fazer o bem. Idéias do Tinhoso. Alcançara visão de personagem deslumbrante a iludi-lo, aparentando a beleza que entontece e embriaga. Artes de Satã. E desfilou todos os nomes conhecidos do Cão, em cantilena de ladainha interminável.
De manhã, acordou deitado no leito, coberto e disposto, como se nada tivesse acontecido. Tinha lembrança clara de tudo que ocorrera, mas parecia mais de ter sido vítima de ilusão que de reais acontecimentos.
De volta para casa do trabalho, no mesmo local do dia anterior, desde que saiu pela porta do edifício, localizou o mesmo pedinte, do outro lado da rua. Suspeitou estar sendo perseguido pelas mesmas entidades e formulou plano para burlar os artifícios do báratro.
Sem dar na vista, procurou a viatura policial que estacionava de prontidão na esquina e tentou convencer os guardas que deveriam prender o falso mendigo, relatando o que surpreendera no dia anterior. Os guardas não lhe deram muita atenção e disseram que o infeliz indigitado nada mais era do que pobre demente, velho conhecido das forças policiais.
Anacleto deu um passo atrás e viu nos dois soldados certo risinho sardônico, como que produto de malícia diabólica. Não insistiu e desapareceu na esquina, voltando a pé para casa.
Desde aquele dia, Anacleto tornou-se o mais fiel crente da igreja evangélica do bairro. Hoje canta os hinos com satisfação e se sente plenamente feliz quando entrega o seu dízimo ao pastor, que sabe bem onde aplicar o dinheiro. Quanto ao mendigo, sempre que topa com ele, busca evitar o contato, direcionando os seus passos para outro lado.
O espiritista convicto havia compreendido o amor como arma de sucesso espiritual, mas não havia entendido que só deve utilizar-se dela contra os vícios e os malfeitos, de modo a abatê-los sob os auspícios das forças mentais e sentimentais e nunca no interesse do progresso. Hoje, o nosso amigo crê que regrediu diante da vida, pois sua consciência prossegue escarafunchando suas atitudes, mas ainda não foi capaz de compreender o remorso que o fez deixar sua viagem para casa, para voltar em busca da mão que deixara estendida.
Fermenta-lhe o cérebro em novas idéias e pensa que o pastor a quem dá o dinheiro pode um dia deixar transparecer algum chifre, hermeticamente camuflado por certo halo de invisibilidade que torna as pessoas mais belas do que realmente são. Parece que o raciocinar do nosso amigo ainda vislumbra nas pessoas algo que se encontra bem dentro de si mesmo.
Oremos a Deus, para que, antes de terminar os seus dias, consiga volver o pensamento para as palavras que o acusavam de egoísta, ou entrará, deveras, nas trevas profundas, onde o cheiro do enxofre e o calor das chamas desequilibrarão por muito tempo a sua personalidade desconjuntada.
Há males que vêm para bem. Mas há bens que repercutem como males. Eis a vida e suas vicissitudes.







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O HOLERITE RASGADO





Godofredo era funcionário público. Todo mês recebia o comprovante de seu pagamento depositado diretamente em conta bancária. Godofredo exercia as funções humildes de servente de escola modesta de bairro humilde da capital paulista.
Desde logo, devemos afirmar que qualquer semelhança ou coincidência com fatos reais terá sido meramente inferência do leitor, acostumado a ver em nossos escritos o retrato fiel de alguma personagem real transvestida e ornamentada no relato, para efeito de verossimilhança do narrado, mas absolutamente precisa quanto aos elementos psicológicos e morais. Pois bem, o nosso Godofredo nem de longe se refere a qualquer ser vivente e atuante na sociedade dos homens, tendo saído de nossa imaginação como Baco saiu do joelho de Júpiter.
Isto posto e para que não reste a menor dúvida, devemos dizer que Godofredo nem pai tinha, pois a mãe o dera à luz sem que qualquer contato tivesse com ser humano algum, virgem e imaculada como Maria, em seu aspecto físico, mas derruída por doença de grave espectro moral, viciada em fumo e álcool, tendo morrido muito cedo. E para que não se fique pensando em concepção por intermédio espiritual, devemos dizer que a pobre mulher foi inseminada artificialmente por infelicidade de contatar o sêmen de indivíduo que se masturbara e deixara a toalha contaminada ao alcance de sua mão.
Se alguém estiver fazendo cálculos e pressupondo que os espermatozóides teriam sucumbido à exposição atmosférica, poderíamos aduzir inumeráveis circunstâncias de manutenção de sua potencialidade. De qualquer modo, em havendo interesse do plano espiritual, fica claro que alguma atitude de preservação do sêmen pode ter sido tomada para o efeito.
Ao nascer a criatura, de parto normal, o médico já houvera percebido o hímen perfeito, de modo que precisou utilizar-se do bisturi para evitar maiores sofrimentos à parturiente.
Mas todos esses detalhes não se justificam para quem está interessado no efeito moral do fato de nosso Godofredo ter despedaçado o seu holerite, como chamativamente apelidamos o nosso texto.
Outro esclarecimento devido, nesta altura, é a necessidade que temos, incoercível, de dizer que os ditados de nosso escrevente têm recebido, desde há tempos, os seus títulos como primeiro apanhado, ou seja, os espíritos responsáveis pelas transmissões iniciam seu trabalho ditando ou informando, primeiro que tudo, o nome, o título, os dizeres que querem ver inscritos no frontispício da mensagem. Sendo assim, resguarde-se o leitor de que a época das mensagens sem títulos faz tempo que se encerrou. Esporadicamente, por força de serem trazidos irmãos sofredores, existe a possibilidade de se deixar em branco a primeira linha para posterior nomenclatura identificativa, mas isso só em casos que tais. Insistimos nesta explicação, para demonstrar que estamos atentos às observações daqueles que julgam haver diferenças grandes entre o que se promete no entreabrir do texto com o desenvolvimento que posteriormente se perlustra na leitura. Este texto, por exemplo, deixa bem para trás os dizeres iniciais, pois derivou fundamentalmente do Godofredo para o escrevente e deste para o leitor. Enfim, nós não temos sempre a obrigação de dizer clara e diretamente as coisas.
Voltemos à história de nosso Godofredo. Aliás, à moda inglesa, deveríamos, imitando os antigos, dizer estória, para especializar o termo que se refira à mítica, à invenção, diferençando daquele referente aos fatos e acontecimentos verdadeiros. Estamos aproveitando-nos dos conhecimentos lingüísticos de nosso médium para prolongarmos o nosso texto com o intuito de bem caracterizar a nossa intenção que se desvendará de modo claro no desfecho deste narrado.
Por ora, devemos dizer que nem tudo se acha escondido na mente de escritor de nosso intermediário, de sorte que, especialmente no que se refere ao teor do texto, fica ele tão perplexo com sua estrutura como qualquer leitor ávido por resultados, como para fazer valer a sua dedicação de tempo à leitura, tanto quanto o dinheiro que gastou com a obra. Se este sentido pragmático não estiver nas cogitações deste nosso amigo leitor, então, humildemente, lhe deveremos pedir perdão por nossa arremetida impiedosa.
Voltemos à figura do Godofredo. O nosso escrevente estava, inclusive, cansando-se de nossas derivações incongruentes, tanto que quase dá curso ao texto empregando o nome de Gumercindo à personagem. Ainda bem que estávamos atentos e o corrigimos, embora tentados estivéssemos de dizer que o Godofredo também carregava o nome de Gumercindo, ficando bem para a personagem, por exemplo, o nome de Godofredo Gumercindo de Almeida. Mas isto não estava em nosso projeto original, de forma que fiquemos tão-só com Godofredo, sem apelido de família, embora se pudesse supor algo como Silva, Pereira ou Jesus em sua anotação civil no cartório. Mas isso assim seria se a história fosse verdadeira. Como o que escrevemos é estória...
Mas Godofredo, naquele dia, recebeu o holerite em estado absolutamente febril. Tinha passado mal à noite, com gripe avassaladora. De tanto respirar o pó do assoalho levantado pela sua vassoura — chape, chape, chape —, estavam os seus pulmões seriamente atacados, o que lhe facilitava a entrada e permanência dos germes das doenças na parte interna de seu sistema respiratório. É bem verdade que a garganta vivia irritada, mas nada que um bom gole de pinga não limpasse. O duro era quando a febre se manifestava.
Naquela madrugada, o pobre servente precisou enviar o filho mais velho à farmácia, para lhe trazer o competente antibiótico para debelar a doença. Pediu os últimos trocados à esposa e verificou que teria de esvaziar a carteira.
De volta da farmácia, o filho avisou que ficara devendo parte do valor do medicamento e que só conseguira trazer o remédio por ser conhecido do farmacêutico de plantão.
Godofredo engoliu em seco a sua dor e ponderou que, no dia seguinte, receberia o salário. Por isso, compareceu à secretaria da escola, para pegar o aviso de pagamento, pois não trabalharia naquela semana, tão atacado se encontrava. Aproveitou para solicitar guia para licença médica e, antes que dobrasse a esquina, pegou o holerite e despedaçou-o, arremessando os retalhos de papel ao vento. Que o lixeiro os apanhasse, pensou, sem dó do companheiro.
No posto de saúde, onde eram bem conhecidas por todos as suas solicitações de afastamento médico do serviço, bateu um papinho com os amigos, enquanto aguardava a presença do doutor. Lá ficou curtindo a febre, até que recebeu o competente visto do médico para quinze dias de licença. Assim que saiu do consultório, chamou o amigo enfermeiro e pediu que lhe desse injeção antitérmica. Não pedira antes para demonstrar ao doutor que estava realmente necessitando do afastamento.
Naquela tarde, Godofredo não pôde sair para a pinguinha de praxe. Estava estendido no sofá da sala aguardando transporte para o hospital, onde se internaria para extração de um dos pulmões. Antes disso, sob total assistência médica, estrebuchou e morreu, atacado de irreversível cirrose hepática.
Agora Godofredo paira de um lado para outro no Umbral, acusando o governo por ter feito dele um imprestável. Bem que deveria ter percebido logo que aquele salário de miséria o conduziria à sepultura bem antes da hora. Arrependia-se do emprego que mantivera à custa de muita canseira e sofrimento e — chape, chape, chape —, varria imaginária sujeira no fundo da caverna, envolto em espessa poeira a lhe atacar os pulmões. Quem sabe não está na hora de outra licença médica?...







5

SEM COMPAIXÃO





O nosso irmão médium pede-nos desenvolvamos comentários em torno do assassinato transmitido pela televisão, em que um sujeito de origem inglesa, sob impulso de irresistível rancor, saca de arma de fogo e desfecha vários tiros em pessoas da administração pública e repórteres, logrando atingir de morte a um dos executores da ordem judicial de demolição de uma sua casa.
Estamos tentando dar todas as informações, para que o nosso leitor se sinta à vontade na identificação do caso em apreço e para demonstrar que estamos totalmente isentos de qualquer perturbação emocional, diante de tanta alucinação e aparente sangue-frio do criminoso, principalmente pelo influxo informativo dado pelos telejornais, na ânsia de transformar o evento em notícia sensacionalista.
Claro está que o balázio endereçado à pobre vítima indefesa gera protestos íntimos de quem se sente injustiçado pelo arbítrio do criminoso, como se fora ele mesmo o atingido. Aqui, no entanto, devemos volver os olhos para as clássicas explicações: nem a vítima era tão inocente, nem seus familiares tão descomprometidos com a vida, que não lhes será de proveito a ocorrência. Vejam bem, não estamos analisando o caso em pauta, mas transcendendo nossas observações para dar ao leitor visão de conjunto mais abrangente.
Ponha-se, caro amigo, na pele daquele que foi meramente ferido. Dirá você:
— Felizmente, o machucado não foi fatal. A bala arrebentou músculos e atingiu o aparelho circulatório subcutâneo, mas não ofendeu tendões ou artérias, de modo que o restabelecimento se dará em breve. Não haverá seqüelas. Graças a Deus!
É compreensível que a reação se dê nesses termos. Evidentemente, os dizeres da esposa, dos filhos, dos pais e irmãos do desencarnado, vazar-se-ão de forma bem diferente:
— Não poderia Deus ter obstado a bala, desviando-a para centro menos vital? Se, pelo menos, ficasse vivo, nós o teríamos conosco. Agora sentiremos a ânsia de vê-lo, de contatá-lo, de tê-lo ao nosso lado, mas um grande vazio é o que nos espera. Que Deus se apiade de sua alma e nos conforte em nosso sofrimento! Pelo menos, resta-nos o consolo de saber que não houve dor e que a morte foi instantânea. Façamos agora justiça com o criminoso...
Tais expressões estão eivadas de sentimentos contraditórios, dada a confusão sentimental do momento da perda. Contêm o sentido da ausência física e não acenam para a possibilidade do reencontro espiritual. No fundo, ao final, resta a esperança de que, nas mãos de Deus, tudo se resolve.
Que estará pensando, no imo de sua consciência, o criminoso? No caso em pauta, em que o indivíduo lutava para conservar sua residência desapropriada pelo poder público, pode estar até antegozando a ventura de ser mantido pelo Estado, que deverá agasalhá-lo e protegê-lo das desditas terrenas da fome e do perigo, enquanto cumpre pena em prisão segura. Se era só em sua vida, a perspectiva da reclusão até lhe assegura a possibilidade de usufruir exatamente aquilo que lhe estavam tirando. Evidentemente, os entraves morais surgirão um dia, sob o impacto das reflexões que o isolamento fatalmente propiciará a respeito do destino que tiveram a sua vítima e família. De qualquer forma, hoje, com o sangue a revolutear inquieto nas veias, ouviríamos dele:
— Que se dane o mundo! Eu estou inteiro e agora o governo tem de me sustentar. Se quiserem tirar minha vida, podem fazê-lo, já que eu mesmo me denunciei pelo gesto público, ciente e consciente das conseqüências. Se quiserem me deixar preso pelo resto da vida, eu mesmo providenciarei para que se cumpra a pena de modo completo. O que eu não quero é ser devolvido ao seio da sociedade absolutamente desprotegido. Queira Deus que o meu ato repercuta na mente das pessoas, de forma que os legisladores estabeleçam novos padrões e diretrizes para desalojar aqueles que não têm de si mais do que pobre residência em infecto local...
E vai por aí a lengalenga interminável e tendente a sufocar possíveis crises de esclarecimento vital, quanto aos objetivos maiores do peregrinar na carne.
Quanto aos espíritos guardiães das várias personagens, terão que trabalhar muito para restabelecer o equilíbrio mental de cada ser envolvido no acontecimento, principalmente do criminoso, para que não se julgue como instrumento de Deus, para exercício da divina justiça, e da vítima de morte, para que não se lhe encha de ódio o coração.
No que toca aos telespectadores, a visão dos disparos e o conhecimento da repercussão deles em pessoa presente à cena mas não mostrada pela reportagem podem inquietar, no sentido de que os que estavam ali a registrar os acontecimentos agiram só profissionalmente, tendo havido tempo suficiente para reação que visasse a impedir o gesto agressivo. Essa desconfiança de que os repórteres agiram friamente ao consignar as imagens faz supor que a humanidade está totalmente mergulhada no egoísmo como forma de sobrevivência. Nesse ponto de sua meditação, diriam:
— Que pensam esses indivíduos com uma câmara ou microfone na mão? Será que desejam só satisfazer a visão sanguinolenta do sensacionalismo barato que deseja o editor do jornal colocar no ar, para estarrecer os telespectadores? Será que o público terá sempre e cada vez mais de presenciar cenas absolutamente incongruentes com os ensinos morais e evangélicos? Será que Deus não colocará cobro nesse jornalismo, através do esclarecimento das verdades aos responsáveis pelas emissoras? Será que não há representantes evangélicos ou católicos ou espiritistas nas câmaras legislativas para elaboração de leis coercitivas de tanta libertinagem televisiva? Será que o governo eleito pelo povo não irá sensibilizar-se com a crueza da transmissão e não irá, pelo menos, recomendar aos poderosos donos das empresas que moderem sua gana pelo insólito, pelo imoral, pelo antinatural? Será que as congregações religiosas não vão sair de seu comodismo para impedir, senão o fato, que não está nas mãos de ninguém, pelo menos a transmissão de suas imagens, que se apresentam como a realidade verdadeiramente distorcida, já que o que se vê é só o reflexo de condicionamentos espirituais, morais e psíquicos, a resultar em comportamento?
E por aí seguiriam as interrogações sem respostas, quando, na verdade, os nossos amigos poderão alterar toda a programação só com a fácil atitude de desligar seus aparelhos, forçando que as emissoras reformulem seus roteiros. De fato, são poucos os que assistem a tais cenas se, estatisticamente, cotejamos os telespectadores com o total da população. Se a transmissão atingiu a alguns que, imprevidentes, se distraíam com o noticiário, resta-lhes o recurso do protesto formal e veemente junto a todas as entidades ou pessoas acima aludidas em sua fictícia fala.
Vamos encarar a reportagem sob o ponto de vista espírita-ortodoxo-kardecista. Para isso, deixaremos que o discurso da personagem se realize no âmbito mental, sentimental, moral e espiritual de nosso caro leitor. Não iremos colocar palavras em sua boca, pois sabemos muito bem que sua visão da realidade se coaduna com o carma estabelecido para cada indivíduo em processo de crescimento, de reajustamento, de expiação. Se o noticiário, de alguma forma, foi capaz de atingir-lhe o centro nervoso, desarticulando-lhe as reações em algum setor de seu aparato psicossomático, é chegada a hora de avaliar com precisão o que não está afinado com a doutrina, se é a visão da vida, se é o conhecimento da teoria, se é o trabalho da assimilação dos ensinos evangélicos. No mínimo, se o nosso caro telespectador espírita não tiver orado pelas diversas personagens do drama, seriamente precisará revisar os seus postulados, para restabelecimento do roteiro original de aceitação da verdade espiritual como princípio de sobrevivência neste mundo de engenhosidades deletérias e de surpresas eletrônicas, que se transmitem pelo espaço, por meio das ondas e das vibrações sutis da atmosfera.
Veja como o homem pode ser atingido a distância pelos balázios que certo inglês desequilibrado vibrou em alguém que lhe representava o mal a ser abatido. Veja como a espiritualidade, através de nossa manifestação, pode propiciar o socorro à ferida aberta pela incompetência humana atual. Faça você mesmo, caro amigo, a sua parte, para amenizar os efeitos de tantos atos impensados e imprudentes. Feche os olhos ao sensacionalismo e transforme o noticiário sanguinolento em motivo de maior aplicação à obra do Senhor.
Fique na paz de Jesus com o nosso mais profundo desejo de que tudo na vida possa representar-lhe progresso e tendência ao reino do Senhor!







6

ESTRANHO PLANEJAMENTO





Ernesto era ser de superior qualidade. Dificilmente se postava diante de outras criaturas sem lhes deixar algo de bom na lembrança. Quando se via diante de algum par em formosura moral e espiritual, perfilhava-se humilde e procedia com tal finura que ele mesmo jamais se decepcionava com os ensinamentos que lhe eram prodigalizados.
Mas Ernesto tinha grave problema: precisava cumprir várias tarefas do socorrismo ativo que lhe foram ditadas antes do encarne. A principal delas era dar recursos para determinada entidade encarnar e, aos quarenta e cinco anos de idade, ainda não conseguira fazer a esposa engravidar.
Tendo desconfiado de que algo de errado havia no plano material, executou todos os exames que a humana medicina poderia oferecer-lhe. Recebeu, entretanto, a garantia de que tudo estava muito bem com o casal, de sorte que os médicos amigos não sabiam a que atribuir o fato da não realização do desejo de procriar.
Espiritista emérito, consultava os amigos e protetores do plano etéreo, recebendo sempre a solícita resposta de que esperasse, que tivesse paciência, que o procedimento estava adequado, que as providências na espiritualidade estavam em andamento. Ernesto ouvia atento e interiormente demonstrava a preocupação de que a esposa estava beirando os quarenta anos e de que ele não poderia educar as crianças com pulso de pai, protetor e companheiro.
O tempo passou e Ernesto envelheceu. Aos sessenta anos, não mais sentia esperança de realizar o sonho tanto acalentado e revelado por via mediúnica e nos contatos que mantinha durante o sono. Tinha consciência de suas obrigações, colocava fé no poder de Deus, mas a esposa de há muito não ovulava e ele nem pensava em substituí-la, mesmo que lhe ocorresse o desencarne.
Ernesto não se afligira nem se tornara macambúzio por ter falhado esse aspecto de sua vida. O que ele não compreendia, nem os espíritos guardiães lhe explicavam, é porque não obtivera da matéria algo tão importante para o progresso espiritual.
“Enfim,” pensava, “se Deus não quis, razões deve ter tido para isso; razões que, certamente, me serão explicadas após o desencarne. Aguardemos, pacientemente, porque milagre de gravidez tardia, só no Velho Testamento.”
Mas a medicina se desenvolveu e Ernesto se deparou com a possibilidade de vir a ter o tão esperado filho através da conjunção in vitro de seu esperma com óvulo a ser fornecido pela esposa. Consultou os seus amigos médicos, contudo, estes o desencorajaram, pois o sêmen poderia garantir-se, mas a esposa não mais tinha a capacidade de fecundação. Por outro lado, implantar-lhe feto no organismo seria extremamente perigoso.
Afastada essa última esperança, Ernesto agradeceu a sugestão de doar seus semens para o depósito da instituição, para uso de alguma mulher interessada, retirando-se cabisbaixo, buscando compreender os desígnios do Senhor.
Caminhava pela rua, desatento, quando foi surpreendido por estampidos fortes provindos de dentro de banco que estava sendo assaltado. Ladrões perigosos passaram por ele disparando, jogando-o por terra com forte encontrão. Ernesto não reagiu, mas o meliante, temendo alguma surpresa diante do velho que se agitava no solo, deu-lhe três tiros irrefletidos e providenciais.
Eis o nosso Ernesto do lado de cá.
É preciso dizer que, se os seus objetivos pareciam ter ficado para trás, entretanto, cumprira todos eles. O que ocorreu, na verdade, foi o atendimento de certo pedido que fizera antes do encarne, quando solicitou aos companheiros, de comum acordo com a esposa, que suas vidas se destinariam para o bem incondicional à sociedade. Qualquer criatura que lhes aparecesse no seio da família poderia sofrear os impulsos de benemerência, com o desenvolvimento de parcela do egoísmo inerente ao orgulho de possuir filho exemplar ou de realizar trabalho incomum. Tudo foi acordado mediante a promessa de que os intuitos ficassem perfeitamente camuflados, de modo que até o planejamento das informações de que deveriam procriar e educar ficou minudentemente delineado.
Ernesto, assim que despertou para a vida espiritual, recobrou a lembrança dos dispositivos da encarnação e se viu leve como pluma por saber que cumprira proficientemente todas as suas tarefas. Consultou os amigos e obteve a informação de que a cara esposa também estava absolutamente em dia com suas obrigações.
Voltou-se, então, para os trabalhos de assistência ao desencarne da esposa, que não poderia demorar. Fez questão de comunicar-se com ela na mesa do centro que freqüentava, mas se viu diante de sério dilema: dizer ou não dizer-lhe que o plano estabelecido para a vida era não ter filhos. Esse era o mistério que prometeram um ao outro desvendar e revelar, o que partisse ao que ficasse na Terra.
Ernesto não teve dúvida. Deliberou contar tudo na primeira oportunidade, crente de que, naquela altura da vida, Clementina saberia entender perfeitamente a necessidade de serem integralmente cumpridos todos os tópicos propostos e aceitos. Não contava, porém, com a resistência de seus guias. Julgava-se importante por ter feito tudo certinho e admirava-se agora de ter restringida sua capacidade de ação. Não se rebelou, não amuou, não se abespinhou nem sofreu qualquer abalo íntimo, mas teve séria surpresa, a demonstrar que algo lhe ficara pendente na aprendizagem que empreendera. Nunca falhara com os amigos e parentes, iria agora faltar com a cara-metade?
Pôs-se a ruminar complicado plano em que cumpriria a promessa, mas, por mais que se esfalfasse, o mínimo que faria seria levantar a fímbria do mistério e isso lhe fora inteiramente interditado. Se quisesse comparecer diante da mulher, precisaria manter a mentira combinada. Falhasse a promessa feita na carne e não o projeto realizado em plena consciência espiritual.
E lá foi Ernesto para a sessão mediúnica da revelação.
Evocado, assumiu o posto ao lado do médium e deu todas as informações pedidas para a segurança de que se tratava dele mesmo. Certas particularidades eram do conhecimento único da esposa, que logo pôde reconhecê-lo na manifestação primorosa. Quando Clementina lhe perguntou diretamente sobre o grande problema de suas vidas, Ernesto respondeu honestamente que conhecia a resposta mas que a mulher se resignasse a aguardar o regresso ao plano espiritual para receber todas as informações. Ela que confiasse no poder de Deus.
Aplaudido pelos instrutores, Ernesto seguiu ainda durante algum tempo as peripécias da vida da esposa, até que esta desencarnou, para gáudio do feliz marido.
Hoje estão juntos novamente na carne. Praticam o bem, repousando da penosa tarefa de cuidar de imenso orfanato, ao criarem três felizes criaturas em seu lar bem constituído. Treinam agora a superação de seu egoísmo, pois as perfeições da anterior encarnação foram tidas na conta de superfluidades perante a espiritualidade superior.
Quando o julgamento lhes foi revelado, abaixaram a cabeça, reconhecidos e agradecidos, e humildemente pleitearam nova oportunidade. Ao pedirem para cuidar do orfanato e de três filhos, os superiores sorriram satisfeitos pela alteração dos objetivos, mas entreolharam-se significativamente, estranhando que tão perfeitas criaturas ainda estabelecessem critérios para a sua redenção...
Oremos, irmãos, para compreendermos que o melhor para o encarne é depositar nas mãos de Deus o nosso destino.







7

A PROMESSA





Godofredo, o mesmo da mensagem anterior (O Holerite Rasgado), um dia viu-se envolvido por solertes personagens do etéreo. Não tivera a precaução de analisar-lhes a aura psicológica, ficando à mercê de certas tiradas maliciosas que o enredaram em promessa difícil de ser cumprida.
Era o Dia dos Pais. Godofredo almejava realizar algo que o elevasse moralmente diante dos filhos. Para isso, evocou a presença de seus protetores, mas conseguiu tão-só contatar as personagens acima descritas, em virtude de seus propósitos não serem os mais fiéis aos princípios cármicos da honestidade intelectual imanente naqueles que desejam pôr-se a serviço do bem.
Então, Godofredo rogou encarecidamente que pudesse ganhar na loteria ou que recebesse qualquer herança inesperada, para poder comprar um automóvel para cada um dos seis filhos. Queria demonstrar desprendimento, uma vez que a bolada requerida só perfaria o valor dos carros, ficando até certa pequena quantia em débito que cobriria com suas parcas economias.
Qual não foi sua surpresa quando os falsos instrutores lhe pediram para que mandasse rezar quinhentas missas pelas suas almas. Ficasse tranqüilo que o prêmio da loteria daria para os carros, integralmente, e para todas as cerimônias religiosas, não faltando nada ao final. Aliás, para que se evitasse qualquer ansiedade diante de quantia tão vultosa, que pagasse antecipadamente aos diversos párocos da região.
Godofredo considerou o inusitado do pedido, mas, lembrando-se de ter lido na Revista Espírita que Kardec agasalhou certas informações a respeito de solicitações de missas por parte de espíritos impenitentes, resolveu atender, menoscabando o esplendor de seus instrutores e julgando que assim procedendo poderia auxiliá-los deveras. O que desejava, no fundo do coração, era ver o prêmio vir às suas mãos, pois seria a comprovação ideal de que necessitava de que a influenciação espiritual existia, definitivamente. Restava-lhe ainda o intuito de deslumbrar os amigos com a sua estreita relação com o etéreo.
Comprou o bilhete e tirou o primeiro prêmio. Não mais, não menos. Descontado o valor empregado na aquisição da cartela inteira, feitas as contas, consultados diversos revendedores e outros tantos párocos, não sobrava nem faltava tostão.
O carro que prometera dar era dos mais caros; se baixasse o nível de aspiração talvez desse para rezar outras missas mais ou ajudar a alguns pobres que apelariam para sua boa vontade, assim que se espalhasse a notícia de que ganhara o prêmio.
Aí lhe assaltou pela vez primeira a grande dúvida: será que teria como explicar aos amigos que não ficara com nenhum tostão?
Na indecisão, sentiu a necessidade de consultar os seus protetores espirituais, pois se veria diante de provável falência se não atendesse ao pedido deles, não cumprindo a sua promessa.
Como resposta, vinda não sabia de quem, só lhe diziam uma única palavra: Amor. Repetia a perquirição e ouvia: Amor. Insistia: Amor.
Nesse meio tempo, os preços se elevaram e o número de missas deveria reduzir-se consideravelmente. Antes de comprar os automóveis, talvez lhe fosse preferível acertar a situação das missas. Não querendo deixar filho algum sem carro, resolveu ir em busca dos amigos do etéreo: Amor, amor, amor...
Considerou que o muito amor que sentia pelos filhos era sentimento de superior quilate e resolveu adquirir os automóveis. Aí lhe assaltou o pensamento de que, talvez, o desejo de todos poderia variar e deliberou entrar em contato com cada um para expor a situação.
Chamado o primeiro, declarou-se por carro de muito maior valor, que consumiria todas as missas e não daria aos demais sequer a oportunidade de idêntica aquisição.
O pai ponderou a sugestão, adiou a resposta e resolveu procurar o segundo da escala.
Foram unânimes em considerar a sorte do pai desvinculada do poder espiritual. Fora coincidência, mesmo porque, aventou a filha mais velha, os seus amigos do centro iriam estranhar muito que espíritos se preocupassem com missas, menos ainda se fossem de nível superior, verrumando-o com observação arrasadora:
— Quem iria aceitar que o pai pedisse ao Alto automóveis para seus filhos?!
Embutida na palavra da jovem, Godofredo viu a censura mais grave: “Quem poderia imaginar que Godofredo pudesse estar tão preocupado consigo mesmo e com a sua preponderância sobre a família?!”
Algum tempo depois, ao pedir novo socorro ao etéreo, ouviu de novo a mesma cantilena: Amor, amor, amor...
Cansado com sua própria indecisão, Godofredo procurou um amigo no centro, contou-lhe todo o sucedido, o drama que estava passando e resolveram, de comum acordo, que todo o dinheiro passaria para a instituição e seria registrado como doação espontânea dentro da campanha permanente para a construção do prédio novo, conforme iniciativa dos dirigentes da entidade, e que ficaria Godofredo a coberto da opinião pública por conveniente anonimato.
Em casa, após ter passado todo o dinheiro adiante, Godofredo viu-se, de repente, com outro problema insuspeitado: os filhos, ávidos por receberem o automóvel, não aceitaram a doação ao centro e resolveram colocar o pai na maior gelada.
Outro problema ainda assoberbaria a mente de nosso amigo. Ao contatar de novo o plano espiritual, cheio de si pelo desprendimento efetuado, teve a desdita de ser acusado de egoísmo e de orgulho, pelos mesmos que agora lhe vinham cobrar a promessa.
Godofredo ficou bem quinze dias completamente alienado do mundo, até que, finalmente, em prece comovida, pediu perdão ao Senhor, diretamente, sem intermediações. Era tanto o seu sofrimento que as palavras sequer se articulavam, tornando a sua prece como que a carne viva de sua sensibilidade.
Como Deus é Pai, mesmo que não dê um carro para cada filho, providenciou para que os espíritos guardiães de nosso herói lhe viessem tranqüilizar o espírito, não sem algumas raspanças bem aplicadas.
Eta, Godofredo! Vê se aprende, seo!







8

A CANETA SUSPENSA NO AR





Esperaria você, bom amigo, quarenta e cinco minutos para começar a escrever? E mais quinze? E mais quarenta e cinco? Pois esse é o tempo de uma partida de futebol, com intervalo e tudo. Hoje haverá transmissão de disputa desportiva dessa modalidade, a qual se insere exatamente no período que temos para trazer a nossa mensagem.
O nosso escrevente tem-se até lamentado por perder tempo excessivo diante do vídeo, assistindo a pelejas desportivas de caráter inferior. É bem verdade, devemos reconhecer, muitas vezes se afasta para diversos serviços, desinteressando-se pelo andamento do jogo. No entanto, quando se sente cansado, impedido de concentração em leitura edificante, lasso intelectualmente para o trabalho mental, extenuado para o desforço físico, é natural que passe certo tempo retemperando-se. Nesses momentos de lazer, executar algo que possa dar prazer é perfeitamente aceitável.
Vá, bom amigo, presenciar a partida e, em seguida, retorne à mesa de trabalho para verificar se nossa dissertação tem algum fundamento.
Sabemos que não nos pediu o que estamos oferecendo-lhe. Ao contrário, requereu texto que absorvesse sua atenção de modo absoluto, envolvendo-o completamente, mesmo porque não está ligando importância ao evento esportivo. Em todo caso, atenda ao nosso pedido, pois nós mesmos estamos em fase de treinamento.
Talvez, ao voltar, você se defronte com algo novo e inesperado.


Nota. Antes de retornar, execute de novo as leituras e as preces habituais. Fique com Deus!







9

O BEM-QUERER





Quando existe verdadeira amizade entre os seres, estes fazem de tudo para que a vida do amigo se realize do modo mais feliz possível. Esse fazer de tudo é que se transforma em bem-querer visível aos olhos do mundo.
É assim que nos sentimos agora diante do irmão escrevente, que, devolvendo a nossa gentileza por permitir-lhe afastar-se para seu entretenimento, se oferece desprovido de malícia para que possamos deixar a nossa marca diária.
Pois bem, bom amigo, este nosso breve discurso, à maneira daqueles que se dão no ambiente de pura fraternidade dos centros espíritas, visará tão-só a desejar-lhe todas as venturas na vida, sempre na paz do Senhor, na companhia dos familiares e sob a estreita vigilância dos anjos da guarda, que se desdobram para manter o tônus vibratório em harmonia com as forças espirituais mais elevadas.
Sendo assim, vá para seus trabalhos habituais, consciente de que o dia se ganhou para todos nós, que muito estamos aprendendo com esta dedicação às tarefas de preparação dos textos e com este mecanismo de apanhar os nossos ditados.
Fiquemos todos na graça do Senhor para fazermos jus às suas bênçãos de muito amor e misericórdia.
Leve também palavra agradecida à cara consorte, que nos tem propiciado motivos de profunda alegria com seu trabalho no campo espiritual, até quando desempenha as tarefas mais rotineiras. Diga-lhe que estivemos com ela na reunião de ontem e que ficamos bem satisfeitos com sua participação, tendo, por várias vezes, atendido a sugestões nossas.
Quanto aos filhos queridos, tudo está sendo levado de forma a se configurar bom desempenho de cada qual em seu âmbito de atuação.
Elevemos nossos pensamentos a Deus e oremos o pai-nosso, quando fluidificaremos a água.
Que a paz de Deus reine sempre neste seu lar!







10

O LAGARTO





Era uma vez um bichinho humilde que se escondia por entre as folhas dos jardins. Punha medo nas criaturas e sabia muito bem disso. Sendo assim, não aparecia à luz do sol, embora muito necessitasse dele, senão quando se sabia só. Era um bichinho bem diferente dos outros.
Num dia de má lembrança, cismou de matar certa curiosidade, pois desconhecia o que os homens iam fazer no belo gramado que se estendia desde a mata até a construção que se via ao longe. Naquela hora, ouviam-se vozes, de modo que, se se disfarçasse bem, camuflado, ninguém notaria sua presença.
Vestiu o melhor verde-grama de que era capaz e saiu a medo de dentro da sombra. Não foi dar dez titubeantes passos e lá recebeu tremendo encontrão de um objeto entre macio e pesado que o deixou tonto e confuso. Mas o susto foi sua arma de defesa, de modo que, instintivamente, voltou sobre os seus passos e rapidamente se internou na espessura verde das folhagens.
Mas fora descoberto e não mais teria sossego. Foi perseguido pelas estranhas criaturas com suas vozes alvoroçadas até que se viu aprisionado em rede que o ergueu no ar como os pássaros. Cantar não sabia, mas via algo que o apavorava: as suas cores não mais lhe davam a garantia de mimetismo.
Foi assim que se viu arrebatado de sua vivenda e conduzido para o meio das humanas criaturas. Ali ganhou o apelido de Valdemar e obteve permissão para caminhar livremente dentro de um cercado. Não gostou da recepção mas não podia negar que não fora demasiadamente molestado.
A princípio vivia ali sozinho, mas depois foram dando-lhe algumas companhias. Eram fêmeas de outras espécies ou pequenos insetos que, pensavam, iriam satisfazer-lhe sua vontade de comer.
Valdemar, contudo, permanecia taciturno, aguardando o momento da libertação. Não obteve tal possibilidade e lá quedou indefeso até que a vida ameaçou abandoná-lo de vez. Não entendia o que se passava consigo mesmo, mas lhe parecia bem claro, no fundo da consciência, que todos os seus movimentos haviam adquirido independência, de sorte que qualquer desejo de locomoção para a esquerda, por exemplo, se refletia como comando para abaixar a cabeça ou para sacudir a cauda. Estava descontrolado.
Tudo que ocorria com ele, no entanto, parecia provocar nos humanos algumas reações, tanto que lhe deram algumas pontadas como a lhe inocularem líqüidos no corpo, enquanto o forçavam a abrir a boca para ali introduzirem substâncias pastosas.
Valdemar progredia em seu relacionamento exterior mas deixou todos profundamente consternados quando rompeu a cerca, desaparecendo na mata. Era já velho e estava prestes a entregar a alma ao Criador, no entanto, sentia-se imensamente feliz por encontrar-se de novo em seu habitat.

Godofredo, que por esse tempo não tinha mais que quinze anos de idade, ficou tremendamente triste com a fuga do amigo. Sentia profunda ternura por seu animal de estimação e jamais supôs que seus cuidados não tivessem deixado as melhores impressões no animalzinho.
Sabia por instinto que, se o libertasse, iria embora, mas, no íntimo do coração, esperava que a criatura pudesse ter guardado algum afeto por ele.
Chamou o pai e pediu-lhe que procurasse o infeliz amigo, pois acreditava que não sobreviveria na mata, acostumado que estava com alimentar-se sem luta e sem sacrifício.
Deveras, o resultado da pesquisa não se revelou improfícuo, mas deu na confirmação do que Godofredo suspeitava. Encontraram-no mortinho, aparentemente esmagado por alguma pessoa que não percebeu onde estava pisando.
Naquele dia, a harmônica não soou alegremente na residência defronte do gramado, diante do jardim. D. Carminha, a mãe de nosso amiguinho, houve por bem respeitar os sentimentos do filho e deixou-o curtir a infelicidade, com ternura e afeto. Era a sua primeira e real lição de vida.

Eis, bom amigo, que aproveitamos algumas personagens de profundo sentimento espírita para demonstrar-lhes o nosso carinho e a nossa compreensão por suas lutas e abnegado esforço pela causa da benquerença entre os irmãos, embora não tenhamos deixado referências específicas.
Saibamos homenagear o valor onde se encontra e o façamos livremente, desprendidos dos liames que nos atam a atitudes hipócritas de quem teme ofender o Senhor. Se agirmos bem, nada nos propiciará desconforto. Antes, a alegria do reconhecimento nos dará novos incentivos para outros cometimentos em favor dos irmãos menos felizes.
Entretanto, se se tratar de lagartos, por mais que possamos fazer civilizadamente por eles, deixemo-los viver à sua moda. Assim, terão história mais feliz para contar.
Fiquem todos na paz do Senhor!







11

O SEGREDO DO POLICHINELO





Certo dia, Polichinelo resolveu esconder do mundo que era feliz. Para isso, precisava parar de cantar, de dançar, de rir e de brincar. Deveria ficar sério e taciturno.
Quando seus amigos perceberam que estava tão diferente do que era todo dia, pediram que explicasse o porquê de sua nova atitude.
Desconfiado de que havia sido descoberto, ficou infeliz e daí para frente só brincava, ria, dançava e cantava, dando a todos a idéia contrária do contrário de sua idéia.
Até hoje ninguém descobriu o verdadeiro segredo do Polichinelo, mas se perguntarem a todos o que acontece com ele, a história contada será exatamente a mesma que ele próprio contaria.
Durma-se com um barulho desses...

Eis o nosso escrevente absolutamente indeciso diante de nossa historieta. Parece até o lagarto da história anterior preso nas teias de estranho aracnídeo e levado pelos ares para cercado em que será tratado como animalzinho de estimação.
Não fique tão preocupado, caro irmão. É que este grupo está a testar a feitura de novos experimentos estruturais da narrativa, de sorte a aparelhar o plano espiritual de recursos mais modernos e condizentes com os reflexos mentais da cultura humana mais próxima da vanguarda da inteligência. Se você mesmo não entender os nossos dizeres e a nossa proposta, verá, com espanto, que o grosso dos leitores achará esplêndido o nosso desenvolvimento, aparentemente aleatório e nada condizente com os tradicionais esquemas da escritura espírita de origem mediúnica, mas absolutamente eficiente para conduzir os modernos leitores à compreensão das virtudes e do padrão moral superior, que os elevará perante Deus.
Acalme-se, portanto, e prenda os textos uns aos outros para o efeito geral programado, como você percebeu que deveria ocorrer com as duas dissertações anteriores, antes e depois do futebol.
Por outro lado, como os apóstolos diante de Moisés e Elias reunidos com Jesus, guarde reserva a respeito desta nova visão da manifestação espiritual e só a divulgue depois de bem caracterizar, através de volume considerável, que haja benefício para o espiritismo como traço de união entre as pessoas e destas com o plano espiritual e com Deus.
Fique você mesmo bem reservado quanto aos comentários e limite-se, por enquanto, a ir registrando as informações nestas belas tardes de psicografia. Não se esqueça de suas orações e veja se, em seus contatos com os instrutores, possa vir a adquirir a firme convicção de estar caminhando ainda pelos roteiros seguros das equipes anteriores.
Faça-o por nós, que estamos precisando de sua colaboração. E faça pelos seus amigos, que se sentirão reconfortados ao se saberem amparados pelo plano da espiritualidade superior, uma vez que todos temos alvará para estes experimentos.
Muito gostaríamos de acrescentar a tudo isto, mas o impacto da novidade já foi suficientemente grande para certa perturbação ao nível da imantação. Vamos, portanto, orar a prece ao Pai e fluidificar a água para permitirmos ao escrevente sua recomposição energética.
Fique na paz do Senhor!







12

O ARREMEDO





Elias era um pobre coitado que detestava ter de falar a público. Metido entre os companheiros de estudos no centro espírita, por mais que se empenhasse por deixar claro aos demais que aquele não era absolutamente seu maior objetivo na vida, vira e mexe, lá estava às voltas com discursos e falas importantes diante da congregação.
Dizia-se médium psicógrafo mas não havia sessão de desobsessão em que não fosse solicitado pelos amigos da espiritualidade para prestar o seu concurso, para a doutrinação de algum irmão sofredor. Não é que Elias se dispusesse mal em tais situações. Até que desempenhava bem e, após a fala, diante dos resultados, se sentia aliviado, livre da costumeira tensão. Ao ouvir as suas manifestações gravadas, achava que até se havia saído bem, mas não gostava do serviço. Se pudesse evitar, evitava. E explicava:
— Penso que qualquer um se sairá melhor do que eu. Vejam bem. Se vocês acham que minha expressão verbal é boa, não precisa ser treinada. Se vocês consideram que minha postura mental é prejudicial ao meu desenvolvimento, a minha inteira compreensão do fato, iniludivelmente, desdiz de que eu tenha necessidade do aprendizado. Se vocês se referem às dificuldades dos amigos, nada melhor do que lhes oferecer as oportunidades que eu lhes estarei furtando. Se vocês gostam do modo pelo qual exponho, pensem que não estou eximindo-me de participar e de dar as opiniões que verso. O que eu gostaria de evitar é essa expectativa de ter de me pôr diante dos demais, sem que venha realmente o fato a ser proveitoso para mim e para mais ninguém...
Para quem não gostava de falar, até que as longas perorações estavam a querer demonstrar o contrário.
No plano espiritual, contudo, os seus amigos sabiam que, deveras, Elias não tinha dificuldades e que o seu pedido era só da boca para fora, embora achassem louvabilíssimo que seu intuito fosse o de não se ver tentado a pecar pelo orgulho de ter bem desempenhado a sua missão. Quando se punha a executar qualquer trabalho, fazia-o preceder de prece comovida e solene pedido de apoio e proteção. Quando terminava, a oração era veemente, no sentido do agradecimento. Em tudo e por tudo, a solicitação do nosso Elias era verdadeira e honesta.
Mas os amigos — encarnados ou não — não lhe atendiam os rogos reiterados. Até mesmo quando os companheiros determinavam outros oradores, na última hora, por razões desconhecidas, havia falta de expositores e já era Elias designado para o mister.
Falava, tremia, orava e, invariavelmente, saía-se bem.

Veja, caro amigo, se não está você na pele de nossa personagem. Não lhe parecem familiares tais reações? Não é assim mesmo que você se sente perante a responsabilidade de ter de comunicar aos demais idéias e pensamentos, no ambiente formal da fraternidade espírita? Não é verdade que você considera preferível ouvir e ponderar intimamente a respeito dos temas em pauta, participando a medo em todas as ocasiões?

Pois o nosso Elias passou a vida toda com sua idéia bem firme na cabeça. Jamais se recusou a falar. Uma única vez, rouco e febril, conseguiu livrar-se do compromisso, mas, na semana seguinte, tarefa dupla: teve de expor o assunto anterior e outro que deveria ser objeto de estudo da parte de companheiro faltoso.
Ao desencarnar, Elias fechou os olhos e pensou:
“Finalmente, vou ter atendida minha solicitação. Prometo que, agora que sou dono de minha voz, irei emitir os conceitos segundo as necessidades do momento, mas vibrando tão-só o pensamento.”
Doce engano! Do outro lado, a primeira coisa que precisou fazer, solenemente, foi agradecer a todos os presentes que o auxiliaram a desvencilhar-se de seus restos corpóreos. Pareciam combinados para o efeito, pois, feito silêncio sepulcral, aliás muito a propósito, o chefe da turma de socorristas desferiu longo discurso de boas-vindas, vendo-se ele coagido a responder a altura para não desdizer dos méritos que lhe foram reconhecidos na oração laudatória. Não tinham ainda transcorrido dez minutos — marcados pelo relógio do etéreo — que Elias havia prometido calar-se.
E assim foi em todo lugar por onde passou. De ceca em meca, eram discursos, exposições de temas, aulas e demais peças oratórias, segundo cada ocasião. O que não conseguia, aliás, era ficar calado por mais de uma hora (tempo espiritual).
Intrigado com sua sina, Elias pôs-se em contato com seu anjo tutelar e inquiriu dele as causas desse constante trauma psíquico que tinha de considerar como cármico, forçosamente. Diante do amigo, foi poupado. Só de exposição de motivos e de contexto narrativo levou bem seis horas (das terrenas). No entanto, não teve de manifestar declaradamente o seu desejo de conhecer as causas de seus dissabores; foi aí que seu protetor e amigo o fez calar-se, pela primeira vez desde que se lembrava por espírito.
Elevando os olhos aos céus, o seu guardião fez prece silenciosa e, à vista de sua forte vibração, demonstrou em tela de vibração etérea os acontecimentos que deram origem aos dramas do amigo.
Fora ele, em encarnação precedente, o ouvidor das queixas da população, a qual deveria representar diante dos magistrados togados. Espécie de defensor público, cabia-lhe transformar em processo tudo o que, manifestamente, poderia ter-se na conta de ofensivo às leis, aos hábitos e aos bons costumes. Fazia-o, contudo, com muito má vontade, interesseiramente desviando as razões para uso próprio, fazendo com que não se desse a justiça, sempre que algum proveito pudesse advir-lhe do processo. Se eram ricos os acusados, expunha-lhes as ponderações, argutamente, de modo que os obrigava a escorregar-lhe algum por fora, para fazer fenecerem as causas. Era esperto o suficiente para não se meter em enrascadas, de sorte que nunca chegou a ser acusado de ter praticado aqueles males. Se algum rábula pudesse desconfiar de que sua atitude fosse prejudicar-lhe o cliente, via a possibilidade de angariá-lo para as suas hostes. Caso contrário, expunha tudo conforme o relatado. Era matreiro mas se deixara enovelar espiritualmente ao tentar o mesmo plano no etéreo.
Durante o período entre os encarnes, passou por maus bocados diante de muitas de suas inconformadas vítimas. Nesse desvario de dor moral, conseguiu luz suficiente para requerer de seus benfeitores que lhe propiciassem só oportunidades de exposições a respeito de temas de moralidade superior, de modo que nunca pudesse ofender a ninguém. O sofrimento no etéreo fora intenso e sua pena visaria a recompor-lhe o perispírito, no sentido de lhe proporcionar condições para crescer em virtudes, especialmente as relativas à palavra.
No entanto, a sua tendência ainda forçava no sentido da expansão do receio de estar ferindo alguém ou de estar executando algum ato indigno. Era o remorso e o arrependimento a entremostrarem o seu perfil consciencial. Do ponto de vista dos encarnados, tudo parecia evidenciar alguém muito modesto e tímido. Diante de si mesmo, alimentava o desejo de se ver livre de tarefas que lhe pareciam extremamente pesadas. Para os amigos do Alto, era a configuração que almejavam para a recomposição perispiritual, à vista da necessidade do pagamento dos débitos.
Elias ficou estupefacto. Intentou falar algo, mas as lágrimas embargaram-lhe a voz e só pôde exprimir-se por meio de seus pensamentos fortemente interpenetrados de pungentes emoções.
Serenado, percebeu que tudo que fizera fora só arremedo do que deveria ter realmente feito. Preparar-se-ia para novo encarne e viria com a palavra fácil e clara, para dizer tudo de forma espontânea e lúcida. Era o seu passo seguinte.

Bem medidas as suas atuais condições, caro amigo leitor, como andam as suas falas aos amigos correligionários da doutrina? Como gostaria que estivessem? Por quê? Responda individualmente e discuta o tema em conjunto com os amigos. Não espere grandes oportunidades para falar, pois, por certo, no grupo, sempre haverá alguém coagido a isso. Compreenda-o.

Evidentemente, a programação de trabalho é mero aspecto lúdico das palavras e dos pensamentos para o efeito da retórica. Não creia que estejamos de fato passando-lhe qualquer exercício de casa. Fique com Deus!







13

O LÁPIS





Alfredo era médium famoso no ambiente do espiritismo aplicado. Não tinha muitas manias, só a de exigir que os lápis fossem bem apontados antes da escrita. Mas não se limitava a escrever. Falava, desenhava, pintava, escrevia música, via, ouvia, era completo. Chegou a ponto de fluidificar ele mesmo a água sob o amparo das forças espirituais, dada sua faculdade de manipulação das energias cósmicas. Era adiantadíssimo.
Um dia, ao apanhar um lápis na caixa, no momento mesmo da escrita, verificou estar sem ponta adequada. Largou-o de lado, apanhou outro e prosseguiu, aparentemente inalterável, o trabalho iniciado.
Ao final da sessão, chamou a moça encarregada do material e lhe passou severa raspança por ter desleixado. Não que suas palavras se carregassem de ódio nem foram grosseiras a ponto de sensibilizar a companheira. Foram o desabafo de uma preocupação, pois achava que as minúcias não poderiam afetar o desempenho maior, na hora do atendimento ao plano espiritual.
Na sessão seguinte, contudo, Alfredo deparou-se com situação deveras constrangedora: todos os lápis estavam sem ponta. Na hora da escrita, precisou apelar para sua caneta que, por sabemos lá que mistério, falhou. Alfredo não se desesperou. Pediu ao irmão que estava ao seu lado que aguardasse, levantou-se, foi em busca do competente apontador e fez pontas em todas as peças.
Como estava acostumado ao espírito protetor, avaliou logo que sua demora não seria computada como desleixo e, após ter terminado o serviço, pôs-se atento para a reprodução das palavras, o que sempre fazia do modo mais fiel possível.
Inutilmente, contudo, tentou executar a sua tarefa: a cada lápis que apanhava, a ponta descaía e não conseguia escrever mais do que umas poucas letras.
Pacientemente, tomou emprestada a caixa de lápis do parceiro ao lado, mas o efeito foi o mesmo.
Pensou que estivesse imprimindo muita força ao golpe sobre o papel, mas de pronto verificou que a ponta já vinha partida. Resolveu, então, utilizar o gravador para, através de sua fala, possibilitar ao amigo que se comunicasse. Não se encontrou, contudo, a fita para a gravação.
Longe de se perturbar, Alfredo interrogou o instrutor espiritual a respeito do que estava ocorrendo. Este, entretanto, ao invés de atendê-lo, ministrou-lhe tremenda corrigenda, amorosa mas incisiva, nos mesmos termos, aliás, que utilizara relativamente à companheira na noite anterior. Quisera demonstrar como reagiria diante de tal fato.
Alfredo, acostumado com os temas espíritas e sábio da sabedoria dos livros, conhecedor da verdade revelada, percebeu que o amor amparava o gesto da entidade e pediu-lhe humildes desculpas pela sua atitude. Que o amigo espiritual se ativesse ao tema em pauta que iria corrigir-se para sempre.
Como por encanto, o próximo lápis apresentou ponta firme e o nosso amigo apanhou extenso ditado, sem falhas, sem rasuras, preciso e integral. Falava de certo médium psicógrafo cujas canetas se apresentaram secas durante a transmissão mediúnica. Parecia lição fundamentada na ocorrência de sua vida.
Esperto, Alfredo entreviu na atitude do guia o meio encontrado para deixar-lhe perene a lembrança do fato ocorrido. Imaginou-se na pele da personagem e, humilde, deliberou que imprimiria a lição e a leria pelo menos uma vez ao dia pelo restante de sua vida. E assim fez.
Tirou cópia xerográfica de modelo redigido em letras góticas, que levou quinze dias para desenhar. Mandou enquadrar em bela moldura dourada e dependurou no meio da sala, por onde passaria, praticamente, pelo menos quinze vezes por dia.
Nos primeiros tempos, Alfredo parava para ler e apreciar o belo trabalho. Aos poucos, no entanto, o quadro foi fazendo parte da paisagem, de sorte que, de quando em quando, se surpreendia à noite ao se recordar de que não lera o aviso naquele dia. Aí levantava, sonolento, e se dispunha à leitura atrasada. Chegou, assim, a decorar os dizeres, de modo que os integrou à oração da noite, o que lhe evitava ter de suspender o quer que estivesse fazendo para a leitura.
Um belo dia, ao apanhar um lápis à mesa da psicografia, descobriu que estava desapontado. Não titubeou e recitou em voz alta a bela pregação da antiga comunicação. Os amigos, que desconheciam a sua iniciativa de reprodução diária dos dizeres, ouviram atentamente a fala e não compreenderam o que significava a história daquele indivíduo cujas canetas se apresentavam secas à hora da escrita mediúnica. Como estivesse ligado o aparelho de gravação, ficou bem registrada a fala do companheiro.
Ao término da sessão, Alfredo quis ouvir a reprodução de sua voz. Estranhou sobremodo a história recitada e pediu aos amigos a fita para ouvi-la em casa. Queria cotejá-la com o impresso reproduzido e colocado à vista na parede.
Estranha coincidência. Todos os dizeres estavam invariavelmente reproduzidos no aparelho sonoro. Não faltava vírgula ou entonação apropriada em um e no outro. Tudo estava perfeitamente igual. Como, então, lhe parecera tão estranha a história ouvida no centro?
Feitas as orações de praxe, ainda mais comovidas, e demonstrando certa preocupação, interrogou a respeito de suas sensações o seu mais direto amigo espiritual. Este não se fez de rogado e deu-lhe extensa explicação a respeito do aprendizado moral, terminando por exortá-lo a esquecer a história do lápis, pois suas atitudes já haviam superado as dificuldades daquela época. Que agora buscasse gravar na mente as palavras que se encerravam com aquele aviso.
Não é preciso dizer que hoje Alfredo, quando passa pela sala, encontra lá dependurados mais de quinze quadros com as mais diversas dissertações espíritas, que busca reproduzir de cor todas as noites, no momento da prece, na hora em que se dispõe o mais puro possível diante do Pai.
Aliás, a última se referia justamente à oportunidade do agradecimento das habilidades mediúnicas e ao fato de ter sido alertado para suas deficiências conscienciais. Alfredo sorri satisfeito com o amparo que tem tido e, embora seja um indivíduo quase perfeito em tudo o que faz, acha ainda que as paredes de sua sala são de pequena dimensão para agasalhar todos os quadros até o momento de se despedir desta vida.
Em prece própria, tem pedido ultimamente para que, no etéreo, lhe seja destinado compartimento bem amplo para a fixação de outras tantas mensagens de amor e conhecimento. Mal sabe ele que o seu domicílio está reservado e que as estantes estão prontas para receberem pelo menos cinco mil volumes...







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OS VICIADOS





Introdução



Querido amigo, muito satisfeitos estamos com seu desempenho. Prossiga ajudando-nos que muitas alegrias ainda se reservam para estes momentos de êxtase e felicidade, para quem se aproxima da mesa dos encarnados e vê seus pensamentos transformarem-se em comunicações de muito carinho, de muito afeto e fé no futuro do relacionamento entre os planos. Eis as nossas palavras de abertura dos trabalhos desta tarde. Leia-as com atenção porque contêm a real diretriz do grupo.



Desenvolvimento



É do conhecimento comum da humanidade que a vida é formada por momentos de felicidade, de alegria, de prazer, e por outros de tristeza e dor. Há aqueles que não se conformam com o sofrimento e desejam que os instantes de êxtase perdurem além dos limites impostos pelas leis naturais, de modo que inventam maneiras de estender o que lhes parece agradável para além de sua possibilidade corpórea ou espiritual. Sendo assim, desenvolveu-se imensa série de ingredientes tóxicos provindos dos conhecimentos ou das descobertas químicas, que causam o efeito desejado.
Isto tudo qualquer pessoa é capaz de deduzir e além disso, ou seja, que os prazeres buscados geram dependência física ou psicológica, de sorte que a busca do prazer traz, em contrapartida, maior sofreguidão à vista do crescimento em escala superior dos males que se procurava afastar. É como se a natureza buscasse reequilibrar os momentos de dor que estão sendo furtados de seu domínio. Desse modo, os vícios se tornam agentes do mal, porque incidem justamente na parte a ser ferida de morte. Ao contrário, portanto, do que se aguardava à vista dos primeiros resultados, a pessoa se compromete diante das drogas a ceder-lhe a vida em troca da extensão possível de seus prazeres.
De início, até que tudo parece decorrer a contento. Posteriormente, contudo, no levantar dos feitos dos indivíduos dominados, chega-se à conclusão de que se ficou exclusivamente na mão dos atos repetidos, nada havendo que se acrescentasse ao poderio intelectual, emocional e até sensório das pessoas. Os vícios impediram não só que se chegasse a bom termo no campo material, mas também inibiu sobremodo o desenvolvimento de qualquer qualidade superior de que estivesse dotada a entidade encarnada. Além de ser o aguilhão que impulsionou para o abismo da carne, foi também o ferino tridente que impediu que o avanço se desse em prol do progresso.
Tudo o que acima dissemos a mediania mental dos indivíduos é bem capaz de inferir sozinha. Consta, entretanto, que as pessoas que se deixam envolver pelos vícios se contam entre as melhor dotadas intelectualmente, pois entre os que se formam nos cursos superiores, inclusive na área da saúde e da medicina, é que estão as maiores vítimas desse abuso do poder de desprendimento corpóreo temporário. Então, que explicação se pode dar para esse maior desacerto exatamente entre aqueles que melhor deveriam compreender os efeitos nocivos das drogas alucinógenas, incluídos o álcool e o tabaco?
É que a inteligência nos encarnados se põe a serviço do desenvolvimento dos indivíduos. Se os objetivos de cada um se fixam no plano material e se se obtém desde logo sucesso nos empreendimentos, tudo parece facilitado, de forma a fazer crer em que todo o poder se encerra nas mãos daqueles que se situam no domínio das relações sociais. Respeitados como cidadãos que possuem dons especiais diante do comum das pessoas, passam a exercer essa ascendência, o que vai repercutir, muitas vezes, nos aspectos do inconformismo, por não se verem em condições de suplantar as contingências da própria vida material
Esse cotejar da realidade do poder e da impressão dele resulta desfavorável para a concretização de algo que lhes possa parecer especial, de sorte que, esquecidos dos aspectos espirituais — por ignorância ou por desejo de manterem-se em posições de destaque — se suicidam aos poucos, dose a dose, cigarro a cigarro, gole a gole. Os mais previdentes realizam exames e tratamentos preventivos de males maiores e conseguem safar-se da zona de perigo; a maioria, todavia, dominada inteiramente pela necessidade que se estabelece, não tendo aprendido a lutar por nada no mundo, se deixa abater inerme, quando não tem por si algum coração amigo que a lhe oferecer amparo e proteção.
Vejamos agora algumas repercussões no âmbito da espiritualidade. Imaginemos jovem de vinte e poucos anos desligado cedo da matéria por dose excessiva de cocaína. Ao encontrar-se do lado de cá, tem como primeira reação alto nível de admiração, pois se torna maravilhado por tudo que lhe é, propositalmente, mostrado. Chega às raias, então, do arrependimento, pois percebe logo que desperdiçou a oportunidade da vida para seu crescimento junto à comunidade espiritual. Esse seu desespero se encorpa e assume proporções infernais, porque seu organismo perispiritual se encontra envenenado pelos eflúvios das drogas que consumia e que agora não tem de onde retirar.
Se seu espírito é de extrema rebeldia, consegue escapar à influenciação do grupo socorrista e vai à cata das sensações antigas necessárias para seu equilíbrio mental e físico, junto aos postos de consumo ou algum ex-companheiro ainda internado na carne. Junto aos primeiros, forma em extenso contexto das mais baixas vibrações e julga que, ao estabelecer vínculo com os encarnados, pode amenizar os seus anseios. Claro está que a dependência não se satisfaz com tão pouco e o sofrimento pode levar à total insanidade. O mais das vezes, contudo, a entidade em fase da erraticidade e angústia se liga obsessoramente a algum dependente encarnado, aspirando as suas vibrações e exigindo-lhe o fornecimento de cada vez mais quantidades de tóxicos, de modo que o encarnado, além de sua viciação própria, carrega ainda um ou mais dependentes, que, longe de se satisfazerem com sua atitude passiva, ainda mais o estimulam a consumir, até que chegue ao ponto de se tornar, ele mesmo, espírito errante.
Esse círculo vicioso, na legítima expressão do termo, se apontado para os encarnados em fase inicial de sua peregrinação pelo campo das vibrações estéreis, ainda pode causar algum efeito moral e esse é, em suma, o objetivo das dissertações que, como esta, os espíritos encaminham aos amigos encarnados. Como sabemos das dificuldades do retorno à felicidade natural daqueles que se perdem pelo excesso do prazer em detrimento das leis emanadas pelo Pai para este mundo de expiação e regeneração, acreditamos que algo de bom se poderá conseguir através da divulgação deste material. No entanto, advertimos para a inoportunidade de se estender o nosso ponto de vista para quem já se integrou nos grupos de consumo excessivo. Para estes, o tratamento mais adequado jamais há de ser o moral, mas o físico, acompanhado de muito amor, compreensão e profissionalismo.



Confissão



Como gostaríamos de poder falar diretamente aos jovens em sua abertura diante das facilidades da vida! Como desejaríamos levar a ele todo o drama dos que se vêem perdidos no etéreo, sem sossego, sem paz, sem rumo, sem perspectiva de salvação! Como nos parece falecer o poder de influenciação direta quando se trata de gente desejosa de superar pequenas falhas mundanas com tão potentes meios de alienação!



Exortação



O nosso bom amigo leitor deve agora estar preocupando-se com pessoas conhecidas que se acham justamente no ponto psicológico por nós descrito. Se se trata de pessoa de íntimo relacionamento, pais, filhos, irmãos, sobrinhos, tios, primos, cunhados, demonstre o carinho que tem faltado em sua convivência. Peça-lhe favores especiais, trabalhos importantes, ajudas específicas. Ocupe-o com outros tópicos que não sejam aqueles que o derrotarão. Atribua-lhe importância em sua visão do mundo e incentive-o à leitura, ao conhecimento, à aplicação das teses espíritas da doutrina de Kardec. Faça algo que demonstre seu interesse em partilhar de suas preocupações, mas, antes e acima de tudo, deixe a demonstração inequívoca de seu amor, de seu afeto, de seu carinho e de sua compreensão.
Quase sempre as pessoas se deixam perder porque se influenciam por experimentações forçadas por parceiros ou pelo grupo. Se você perceber isso, vá em busca das pessoas responsáveis por esses companheiros infelizes e tracem em conjunto a melhor maneira de abordar os problemas que se abrem em leque diante dos que pretendem fazer mau uso de sua força energética vital. Se for preciso a extrema atitude da denúncia pública da fabricação, tráfico e comércio das drogas, faça-o, em nome da verdade e do bem-estar da humanidade, lembrando-se de que Deus é amor e por amor dele é que devemos tomar as nossas atitudes, de maneira serena, intimorata e segura. Façamo-lo por paixão, ou seja, como determinação natural de nosso ser interior, de nossa consciência, e saibamos ver em nossas atitudes o espírito do Consolador, que nos estimula à prática do bem e da caridade.



Encerramento



Viver, bom amigo, será sempre lutar pelos ideais da perfeição e isso inclui o desenvolvimento cármico de nosso semelhante. Eis evidenciadas as leis de Deus no resumo crístico do evangelho de Jesus. Se você conseguir impedir que mais alguém caia nos domínios da perversidade dos vícios, pode crer em que terá reservado lugar de destaque no grupo dos socorristas que integrará futuramente. Faça-o agora por seu irmão, certo de que um dia alguém o fará também por você.







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O MENINO ESPERTO





Josevaldo era um garoto traquinas. Desde cedo, mexia com todo o mundo mas ninguém era capaz de acusá-lo de mal-intencionado, pois suas brincadeiras primavam por extremo bom gosto. Não maltratava os animais, não prejudicava os amiguinhos, não feria os mais velhos com ditos arrevesados ou palavras de baixo calão. Era surpreendentemente divertido e alegre.
Certa vez, estando diante dos pais, fingiu-se de morto, deixando entrever na ponta dos lábios certo sorriso matreiro, de modo a não tornar a brincadeira ofensiva ou temerosa. Quando o pai entrou no jogo do filho, este perguntou-lhe de chofre:
— Pai, que você faria se eu realmente morresse?
— Pelo amor de Deus, meu filho! Não diga uma coisa dessas. — Era a mãe temerosa de que, pelas palavras, se desse a possibilidade ao acontecimento, como se fora mau agouro.
Mas a criança insistiu:
— Pai, se eu morresse, o que você faria?
O pai, refeito da surpresa do primeiro ataque, tendo refletido em resposta plausível para os seis aninhos do petiz, respondeu-lhe:
— Eu pediria a Deus que reservasse no Céu um bom lugar para você...
— Então, paizinho, vê se não vai se esquecer desse pedido.

Não seria muito arguto o nosso leitor se não suspeitasse desde logo que a criança iria desencarnar em breves dias e que o pai iria esquecer-se do que dissera, ficando-lhe na lembrança tão-só a profética interrogação. Mas o nosso amigo enganar-se-á, se deixar sua imaginação conduzi-lo. Ouça-nos um pouquinho mais.

Passados dez anos dos acontecimentos narrados, eis que Josevaldo deveras desencarna. Aí o pai se lembrou de todo o diálogo e orou fervorosamente a Deus para dar paz ao jovem adolescente adorável, que distribuíra à farta amor a todos da família. O trespasse foi doloroso e instantâneo: doloroso para a família; instantâneo para o rapaz, que se viu arremessado da moto contra a guia da calçada, esfacelando-lhe a cabeça.

De que adiantou o amigo imaginar que o diálogo fora preventivo, tendo nós pedido que esperasse para tirar as conclusões se, em seguida, já lhe damos a razão que lhe havíamos tirado? Há um fato insuspeitado em nossa narrativa: os dez anos passados. Isso é o que faz a diferença.

Realmente, a pergunta do jovenzinho despertou o pai para a possibilidade do trespasse. Espírita de há muito, não houvera ainda intuído a figura da morte infantil ou juvenil. Tendo analisado proficientemente a fala do rapazola, julgou que não poderia ter sido de inspiração própria, mas pelo influxo de alguma entidade amiga, que o advertia para a ocorrência futura.
Nesse meio tempo, entre a suspeição e o desenlace, preparou-se convenientemente a família para receber o evento da melhor forma possível. Não faltaram as preces rogativas de substituição de um pelos outros; não se desleixaram os estudos a respeito do carma e das expiações e provas; não se deixou de consultar os espíritos guardiães a respeito da eventualidade de estar a criança com a razão, havendo várias respostas evasivas mas direcionadas para a possibilidade; não se evitaram os solenes pedidos do adiamento e, finalmente, da explicação e da compreensão que compungidamente rogavam ao Senhor.
Por outro lado, fecharam-se os laços familiares ainda mais fortemente, havendo entre todos verdadeiros banhos de luz e de amor, na confraternização da vida compartilhada. Josevaldo tornou-se o ponto de concentração, mas distribuiu jovialidade e alegria a cada dia que passou com os familiares. Foi a pedido seu, inclusive, que o tempo de espera se tornou maior que o previsto, pois a sua prova terminara exatamente dois anos após ter-se manifestado a respeito da própria morte.
Nesse tempo extra, estudou espiritismo a fundo, tornando-se exímio intérprete da palavra de Kardec, explicando com muita felicidade todos os pontos obscuros que chegavam a tornar-se dúvida no entendimento dos pais e demais integrantes do conjunto familiar. Verdadeiramente, a sua inteligência estava a demonstrar que sua linhagem espiritual deveria ser muito superior. Chegou-se mesmo a suspeitar que suas vibrações fossem tão intensas que chegaria algum momento em que desencadearia esfacelamento corpóreo, como se se detonasse em pequena explosão de caráter atômico, interpretação essa a que a família foi levada pela leitura de certos estudos a respeito do santo sudário.
No entanto, Josevaldo não era tão superior nem tão esperto quanto dava a impressão. Era, sim, um bom espírito, necessitado de permanência na carne por certo tempo, para desfazer equívocos de relacionamento e para induzir os encarnados amigos que deveriam submeter-se ao arbítrio da vontade de Deus, impresso em suas eternas e imutáveis leis. Viera como missionário do amor e não deixara de cumprir item a item todo o roteiro, principalmente porque se iluminou pela benquerença e pela humildade. Tinha consciência desde cedo de que ficaria pela Terra por pouquíssimo tempo, dando total abertura para a vida espiritual através de poderoso mediunismo, que escondeu de todos e, por isso mesmo, se desenvolveu com integral amplitude. Via, ouvia, conversava, recebia informações e aceitava as influenciações com discernimento superior. Na rua, sabia distinguir, no campo dos mortais, os espíritos que perpassavam, segundo o próprio roteiro de atividades. Sabia quando eram seres de baixa extração em vias de cometer algum ato criminoso, como ainda se se tratava de guias de excelsa luz a trazer o lenitivo de seu consolo para afilhados necessitados.
Mas dominava as suas reações, conforme o que se havia combinado antes, de modo que seu ministério se fechou rigorosamente no instante em que sua última tarefa se cumprira.
Foi recebido em festa, mas não se orgulhou de sua participação na vida familiar, preferindo julgar-se mero instrumento nas mãos de Deus. Quase instantaneamente foi devolvido ao âmbito dos amigos, para prosseguir do etéreo dando assistência aos familiares. Sabia das dificuldades de anteriores relacionamentos e temia ter de volver a se constituir em motivo de dor e de sofrimento para quem quer que fosse.
Hoje Josevaldo aguarda a chegada de seu primeiro familiar, o seu adorado avô Sílvio, perfeitamente preparado para a partida. Resta só controlar as emoções da avó, para permitir-lhe o desligamento configurado como necessário. Deixemo-lo trabalhar sossegado...







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O ANZOL DO PESCADOR





Valdomiro era pescador. Lançava a rede, a tarrafa, o anzol, e sempre retirava do rio o sustento de sua família. Mas os tempos foram escasseando a pesca, de modo que muitas vezes voltou para casa sem bagre ou lambari para oferecer aos seus. Era pobre de bolso mas rico de espírito. Sabia apreciar a sorte adversa e não se lamuriava com a falta, deixando a sua esperança espraiar-se para o dia seguinte.
A esposa falava em procurar outros afazeres, mas ia deixando-se ficar à beira do rio. Às vezes, sobejava naco de carne e lá ia levar para os vizinhos, para ver que não faltasse naquele dia a alguém o de que se alimentar. Não poucas vezes, recebeu em casa o que sobrava aos demais; e a comunidade ia sobrevivendo.
Mas os dias tendiam a ficar cada vez mais difíceis. Certa feita, levantaram-se do fundo grandes quantidades de pescado e todos ficaram muito admirados por ver tanta judiação. Nem nos dias da maior fartura se viu tanto peixe, que dava para estragar, depois de alimentar os urubus e toda a alimária da região.
Valdomiro pegou os peixes na beirada e levou para casa. Escolheu os maiores, os mais saborosos, e fez preparar suculenta fritada que daria para três dias. Todos comeram e se regalaram. Na manhã seguinte, jaziam mortos os três pequerruchos. A mulher estrebuchava num canto e Valdomiro sentia-se no ar, como que levado pelo vento, em plena escuridão.
Deu com a porta e saiu ao sol, quente e claro, a indicar que as horas tinham avançado. Mas a sua luz estava opaca e distante, de modo que mal dava para o pescador orientar-se. Em sua aflição, conseguiu chegar até o barco e pôs-se a remar desesperado, a favor da correnteza, para achar a praia distante, onde iria avisar os companheiros.
Seu corpo chegou no fundo do barco, que foi encostando-se no barranco. Mas a vila já havia sido alertada. Aguardavam-se os médicos da cidade, que viriam de helicóptero. O envenenamento era geral.
Valdomiro assistia a toda a movimentação em companhia dos filhos. Haviam sofrido alguns instantes, mas foram desligados dos corpos por equipes socorristas, que trabalhavam intensamente. Sem ânimo para se deslocarem, os quatro se abraçaram, trementes, como se sob o efeito ainda do narcótico mortal.
No fundo da mente de nosso amigo, perpassavam idéias de vingança, de esclarecimento, de voltar atrás no tempo, de arremessar no rio os peixes apodrecidos, de impedir a construção da fábrica. Não via com muito amor a vida; agora detestava a morte. Mas aguardava, pois aprendera a esperar. Arremessara o seu anzol na água, colocara boa isca; era esperar que o peixe beliscasse.
E ali ficou largado por bom tempo. Mal percebeu quando o espírito da esposa se juntou ao grupo. Faltavam ainda os dois mais velhos, casados, com vida própria. Será que também haviam consumido o veneno letal? Não sofria com isso. Parecia que era só curiosidade. Estranha sensação de desprendimento e de alienação. Sonhava mais do que era capaz de divisar a própria realidade.
Após uns bons vinte dias de isolamento naquela região lúgubre, entremeados por lamentações e choros e só interrompidos pela visita rotineira de alguns seres vestidos de branco, enfermeiros do etéreo, que lhes ministravam poções revigoradoras, foram levados em grupo numeroso para imensa construção que semelhava aos hospitais da capital, onde fora um dia buscar o cadáver do pai.
Naquela instituição passaria os próximos anos. De vez em quando lhe vinham à mente lembranças fugidias de longas horas a observar o movimento das águas, seu rumorejar, sua leve ondulação, na expectativa de linha a se distender e de peixe a se soltar para fora d água. Mas a lembrança era tarda e difícil. A memória apagada não dava realmente a noção de sua individualidade.
Um dia, foi-lhe trazido belo peixe assado. Estranhamente, conservara-se-lhe à boca pontiagudo e feroz anzol. Valdomiro recuou e a visão desapareceu. Parecia-lhe criação de sua mente alucinada. E ficou-lhe a dúvida: teria sua condição atual que ver com sua vida feita da morte das criaturas? E a sua imaginação mergulhou na chacina das grandes fábricas, a derramar vinhoto no leito dos rios, e das grandes cidades, a despejar o seu lodo mortífero nos mares. Se sua pequena estatura moral, se seu insignificante poder de destruição estava a lhe custar tanta preocupação e mal-estar, que pensar dos grandes, dos poderosos frigoríficos flutuantes, que vão em busca da destruição da fauna marítima?...
E perdia-se na edificação de sombrias culpas a gerar penas e castigos monstruosos.
Um dia...







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O CAVALEIRO APOCALÍPTICO





Modesto operário da zona suburbana da grande cidade, Rafael vivia pobremente, em companhia da esposa e da filhinha. Mas possuía forte recordação de vida pregressa em que fora rico e venturoso senhor de imensas propriedades.
Certa vez, tendo chegado tarde da noite a casa, embriagado pelo festejar de casamento de amigo, bradava, em alta voz, que os serviçais estavam dormindo e que deveriam sair para atendê-lo. Foi acudido, sim, por vizinho despertado pelos seus berros e que o conduziu ao leito, a pedido da jovem senhora, que temia pela força incontrolada do consorte.
Naquela noite, o povo do local pensou que Rafael estivesse delirando ou louco, mas o bondoso senhor que o auxiliou desconfiou da verdade, ou seja, de que Rafael estivesse dando curso a alguma situação vivida em encarne anterior, a tanto podem levar os estudos espíritas.
Desde aquela época, estreitou-se a amizade entre os dois, até que, instado pelo companheiro, o nosso herói admitiu acompanhá-lo a centro espírita, para avaliar até que ponto suas recordações poderiam ter relação com o encarne atual. Osvaldo, o amigo, achava que, se tudo se esclarecesse, Rafael poderia ganhar vida nova, mais consentânea com os objetivos de seu encarne.
As revelações, contudo, não foram de molde a ensejar grandes avanços no aspecto das conclusões almejadas, embora mais pessoas tivessem ficado curiosas com a possibilidade de serem relatados fatos e descritos ambientes com absoluta fidedignidade. Mas tudo que se revelaria era periférico, circunstancial, nenhum fato grave que justificasse a vida de aperturas econômicas por que passava atualmente.
Osvaldo, entretanto, não era de desanimar facilmente e propôs-se a acompanhar os acontecimentos da vida do amigo bem de perto. Foi assim que ambos passaram a conviver em intimidade de interesses. Se Rafael desejava assistir a partida de futebol, lá ia com ele o Osvaldo, a financiar-lhe o ingresso e as passagens de ônibus. Se Rafael queria festejar o aniversário da filha com bolo e presentes, lá estava Osvaldo, com os valores necessários para que a comemoração se desse. Se Rafael não tinha traje adequado para comparecer a alguma festa na parte rica da família, Osvaldo financiava a compra das roupas e demais adereços. E assim Rafael foi aboletando-se em confortável situação. Parecia até que voltavam as épocas gloriosas da vida anterior, quando era só preciso leve estalar dos dedos, para que tudo viesse ao seu encontro.
A vida ia indo bem nesse sentido, até que Osvaldo teve real visão de sua condição de servo de grande senhor em encarne anterior. Foi nítido o episódio, que lhe foi revelado durante sessão espírita de doutrinação. Estava concentrado, pensando na ulterior passagem de seu amigo pela Terra, quando as cenas sucessivas lhe perpassaram claras pelo cérebro. Viu-se de libré, servindo a poderosa criatura, que lhe destinava o seu desdém, mas de quem se socorria para as mínimas ocupações da higiene pessoal e do ato de vestir-se. É verdade que sua condição financeira parecia ser próspera, mas sua posição social era, verdadeiramente, de serviçal.
Osvaldo desconfiou logo de que o seu patrão era o próprio Rafael, mas meditou profundamente e resolveu omitir a informação desse novo conhecimento que lhe chegava, mesmo porque desejava fosse confirmada por outros indícios mais palpáveis.
Assim, aos poucos, foi firmando-se em sua mente o anterior relacionamento que ambos tiveram.
A primeira suspeita que lhe ocorreu a respeito da atual situação foi a de que, sendo agora melhor aquinhoado financeiramente, estaria em condições de prodigalizar ao amigo a devolução dos favores recebidos. Na indiferença e secura atuais e na avidez com que suas ofertas eram aceitas, via a mesma indiferença com que era tratado anteriormente.
Osvaldo começou a querer afastar-se do amigo, pois julgava que a subserviência moral vigente não se prestava à tolerância de espírita que se via na condição e necessidade de ter de evoluir moralmente. Julgava-se em débito com relação aos favores, mas não queria tornar-se lacaio de luxo, daqueles que, tendo conseguido renda própria, se vê na situação de livrar o senhor das aperturas de sua dissipação e descontrole.
Rafael notou certo recuo do amigo quando, ao investir para empréstimo, que não pretendia devolver, para a aquisição de aparelho eletrodoméstico, recebeu sonoro não, que esperasse o aumento de salário que viria no próximo mês, sem qualquer demonstração da parte do vizinho de que estivesse sendo insincero ou injusto. Osvaldo disse não com a mesma solicitude que teria se dissesse sim. Foi quente e amigo, solidário e confiante em que Rafael fosse entender que a amizade de mão única iria ter de se desfazer.
Ao mesmo tempo, convidou o amigo para a próxima abertura do ciclo de palestras espíritas, aos sábados à tarde. Da mesma forma, a resposta conseguida foi sonoroso não, sem disfarce e inequívoco, como revide pronto à resposta do amigo. Teria de assistir às partidas de futebol do time da fábrica. Não iria perder seu tempo com pregações morais.
A atitude do vizinho não surpreendeu Osvaldo, que, analisando a personagem de seus sonhos, sabia que não poderia ter sido outra a resposta.
Por essa época, outra personagem importante se introduz em nossa história. Durante as visões cada vez mais amiudadas do nosso espírita, foi delineando-se o rosto de suave menina, que parecia ser-lhe filha no outro encarne. Essa figura de meiga criatura ia desenvolvendo-se e, um dia, viu-a mulher feita ao lado do patrão, sorrindo satisfeita e agradecida. Quem seria agora a suave rapariga? Por mais que Osvaldo quisesse ver nela a esposa do Rafael, sua filha, ou sua própria mulher, não conseguia imprimir à visão o cunho da realidade.
Essa personagem ficaria por bom tempo indefinida, até que, certa ocasião, ao conversar com o amigo a respeito de suas visões, esse tentou desconversar, pois estava achando que suas intuições derivavam para suspeitoso episódio de sangue. Osvaldo insistiu muito e, com o argumento de que seria bom para a compreensão da pobreza vigente do amigo, quem sabe até com a possibilidade da superação desse estágio da vida, conseguiu o relato completo das atuais disposições de Rafael.
Na sua visão, incluía-se figura notável de encantadora jovem que o procurara com propósitos amorosos. Grande senhor, acostumado às conquistas extraconjugais, acalentou os sonhos e esperanças da pequena, instalando-se com ela em modesto apartamento, para onde a levava duas vezes por semana, com a desculpa de que precisava da jovem acompanhante para a aquisição das prendas com que costumeiramente mimoseava a esposa. Qual era o relacionamento de ambos? Parecia a Rafael que a jovem era filha de seu principal criado de quarto, o qual, por causa de sua conduta, a havia estrangulado. Incompreensivelmente, o sonho de Rafael terminava com ele dentro do quarto com punhal ensangüentado na mão, a desesperar-se. E era só.
Osvaldo ouviu a narrativa com rubor crescente no rosto. Todavia, sem que o amigo percebesse, desconversou, observou o horário e retirou-se afogueado, sem saber exatamente o que pensar de todo aquele drama.
Em casa, rogou aos espíritos guardiães que lhe viessem esclarecer a história do encarne atual e qual a melhor atitude que deveria ter em relação ao vizinho, para satisfazer aos princípios evangélicos que ouvia no centro. Analisou a sua vida. Verificou que tudo lhe corria de modo extremamente sereno. Era bem casado; seus filhos, um casal, eram maravilhosos e conseguiam os melhores resultados na escola. A filha, mais velha, estava de casamento marcado para depois da formatura. O rapaz freqüentava a terceira série do curso de Medicina. A esposa o amava com serenidade e estremecimento. Por que essa avalancha de sensações dolorosas provenientes de esquecida passagem pela Terra? Teria agora de lavar a honra maculada em versão absolutamente quimérica de fantasiosa realidade? Em quem deveria confiar para a sugestão da melhor decisão?
Naquela noite, faltou ao centro, porque não se considerava em condições vibratórias boas para o trabalho mediúnico ou para a pregação doutrinal.
À meia-noite, bateram-lhe à porta. Era Rafael, que entrou desfigurado. Vinha com afiada faca na mão e, com voz rouca, procurava pelo assassino de sua amante. Osvaldo tremia como se fora ele mesmo quem cometera o crime anunciado. Em breve prece, evocou os seus guias para a competente desobsessão, pois parecia-lhe estar o amigo tomado por algum espírito malfeitor.
A esposa ajoelhou-se ao seu lado, translúcida. A filha, alertada pelos gritos, adentrou na sala e desmaiou à vista da fisionomia transtornada do vizinho. Antes que algo mais ocorresse entre os desafetos, outra personagem invade a sala e roja-se aos pés do marido, rogando perdão pela desfeita. Rafael segurou a esposa pelos cabelos, ergueu a faca, gritando: “Morre, desgraçada!”, e desferiu violento golpe que foi sustado pelos vigorosos braços do filho de nosso Osvaldo, que chegava àquela hora. Viera correndo, atraído pelos brados que acordaram toda a vizinhança e chegara no momento trágico da ação criminosa.
Nesse instante, acendem-se as luzes da platéia e os atores são estrepitosamente ovacionados pelo público. A peça agradara sobremodo. O autor, sorridente, abraçava os amigos e recebia os parabéns de confraternização. Os diretores do centro espírita se regozijavam com o desempenho dos amigos. Faltava o último ato para a consagração final.
Ergue-se o pano no momento em que a luta iria ter início. Rafael espumava de raiva e de ódio. Mas uma figura nova adentrou a cena. Era um cavaleiro com as armas medievais, trazendo simbólica cruz vermelha no peito, desenhada por sobre a armadura. Levantando rutilante espada, conclamou a todos, dizendo que colheria um a um a seu tempo. Era a morte do simbolismo apocalíptico. Em longo discurso, explicou que Rafael fora o pai ferido pela desonra; que Osvaldo tinha sido a fiel companheira dele; que a filha de Osvaldo fora o lacaio que estabelecera o desenlace criminoso; que o filho de Osvaldo representava o conde mulherengo; que a esposa de Rafael era a esposa do conde, a qual tramara para que o drama chegasse ao desfecho sanguinolento; e que a bela jovem não se encontrava encarnada mas vigilante para que a reprodução teatral se desse em função de não se verem as personagens iludidas pelas figurações e visões que estavam tendo. A solução teatral asseguraria a melhor maneira de resolver as pendências emocionais criadas a partir das revelações inseguras, incertas, incompletas e imperfeitas que se guardavam nas consciências culpadas. Que cada qual fosse viver a sua vida atual, compreendendo e amando seus companheiros de encarne, para que mais uma bela história pudesse servir de exemplo de como viver e conviver em harmonia, em função do progresso de todos.
E assim baixava o pano no epílogo das explicações, à maneira dos dramas românticos do século XIX, quando se deram os acontecimentos dos sonhos.
Integrado no ambiente do centro, sentado na platéia, Rafael apertava a mão da esposa, vendo na representação de seus sonhos a perfeita harmonia das duas existências. Sabia que se referiam a ele, pois tudo narrara convenientemente ao amigo que montara a peça. Apenas os nomes haviam sido alterados para o efeito da segurança social. Na poltrona da frente, Osvaldo sorria feliz por ter ensejado o contato do amigo com os parceiros de lutas do socorrismo fraterno. Ao seu lado, a esposa e os filhos, todos estremecidos com a união que se efetuava pela mão dos orientadores espirituais, todos dispostos a cumprir o apelo emitido pela voz do cavaleiro do Apocalipse, mas que sabiam ser daquela jovem imolada pela imprevidência comum. Viam naquele excelso espírito de candura a sabedoria exponencial do Senhor, a espargir bênçãos sobre a congregação.







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MERCÚRIO DERRAMADO





O nosso médium costumava guardar, junto a objetos de ouro, como anéis, prendedores de gravata, abotoaduras, uns brincos e pulseiras, frágil termômetro de vidro. Um dia, rompeu-se a peça e o mercúrio derramou-se, atingindo o metal precioso. Evidentemente, ficaram os objetos embaciados e feios, como se degenerados pudessem ter sido. Atrapalhado por não ter percebido que aparecera a jaça em virtude da presença do metal líquido, o nosso amigo pensou que seus objetos de valor fossem meras fantasias e que tivera sido iludido pelos vendedores.
Qual não foi sua surpresa, contudo, ao mandar avaliar as peças, que realmente valiam o preço pago, tendo voltado todas brilhantes e limpas por processo térmico que as livrou do pegajoso e inoportuno metal.
Da mesma forma, muitas vezes temos a tentação de julgar as almas puras que se nos apresentam revestidas por ingredientes que se superpõem à sua aparência real, de modo que somos levados a observar o exterior, sem penetrarmos de rijo nos justos valores de que estão impregnadas.
Muitas vezes, por impensados gestos de desagrado, os nossos amigos assumem fisionomia severa e nos parecem imersos em problemas graves e sérios. No entanto, são circunstâncias passageiras que toldam o azul profundo do céu, através de neblinas ou nuvens extremamente mutáveis e absolutamente sutis. É a nossa visão que se distorce diante das aparências.
Nada do que colocamos no papel até aqui significa algo novo no aspecto espiritual nem no plano material. É só mero lembrete para que possa o nosso irmão recordar que a vida se esvai de qualquer forma, sendo a nossa acuidade visual perturbada ou não. Por isso, vamos deixando a nossa palavrinha de advertência, de aviso, melhor diríamos, para que o nosso companheiro volte à serenidade de sua percepção da vida e das pessoas, esquecendo-se dos acontecimentos fortuitos que se dissipam no dia-a-dia dos fatos mais graves e mais vigorosos.
Vamos, por isso, deixá-lo livre para o pensamento de suas atitudes, para que note que nossos compromissos sedimentaram e nós estamos aqui firmes para o apoio jamais negado. Venha a nós de livre iniciativa ou irá ter de lamentar-se mais tarde por ter-se deixado envolver por inspirações não saudáveis.
Se for preciso desculpar-se, estando com o coração limpo e liberto de opressões, você o fará com discernimento. No entanto, se você se deixar assediar por preocupações pueris, totalmente desajustadas aos princípios teóricos e morais plenamente admitidos e integrados em sua personalidade, ter-nos-á afastados, a contragosto nosso, que temos procurado aproximarmo-nos o mais que nos é permitido.
Este atrevido escrito, daquele tipo que você menos aprecia, pode ser inserto junto aos que anteriormente temos ditado, mas saiba que não nos preocuparemos se, por decisão sua, tomar o destino do cesto, como as anônimas cartas enviadas a Kardec.
Fique, portanto, bem tranqüilo, caro irmão, que a vida está fluindo e organizando-se, segundo os preceitos estabelecidos pelo Senhor, em suas leis de eterna vigência. O que lhe pode parecer obstáculo agora, esfumar-se-á assim que você se ativer a considerar a sua existência como algo de profunda responsabilidade e não sob a qual ficará perenemente jungido. Faça, por livre iniciativa, a alteração necessária e por nós preconizada, que, um dia, fatalmente, todos se encontrarão e sorrirão, felizes, por perceberem que tudo se supera quando existe boa vontade.
Sabemos que estamos esticando a nossa fala para além dos limites do desejável, segundo seu próprio ponto de vista, mas fique atento para cada palavrinha nossa, para verificar que não estamos brincando nem nos iludindo com as aparências. Estamos, sim, exercendo o nosso direito de instrutores e amigos, a quem cabe deixar os avisos da prudência e da benquerença.
Oremos a Deus para que todos nós recebamos as luzes emanadas do Alto e conformemo-nos com o nosso destino imediato, para podermos atingir e conquistar os méritos necessários para o nosso progresso.
Volvamos, pois, o nosso olhar para o céu e saibamos que, além das nuvens, o azul permanece intocado. Examinemos as nossas peças sujas pelo mercúrio e descubramos abaixo a natureza do ouro perfeita. Analisemos a nossa alma e revelemos a verdade que ali se esconde por vãos temores e irrefletidas atitudes. Saibamos compreender, através dos eflúvios e da dispersão da atenção, aquilo que realmente turva a nossa visão e superemos, com desabrido gesto de coragem, o mal-estar que se insinua em nossa vontade.
Tenhamos para com todos a comiseração que gostaríamos que tivessem para conosco. Ajamos duramente quando julgarmos necessário demonstrar firmeza de caráter e inalterabilidade de convicções, mas sejamos suficientemente flexíveis para dar aos semelhantes a noção exata de quanto deles depende a nossa felicidade. Se forem necessárias concessões, façamo-las, até o ponto de nossa compreensão, sem ferir os nossos princípios e sem magoar a nossa consciência, e despertemos aqueles que nos pedem sacrifícios impossíveis, para que suas atitudes se revistam dos valores morais e das virtudes que querem que desleixemos. A felicidade do nosso próximo não pode ser conseguida com a nossa infelicidade; mas através de nossa felicidade. Conceder, neste aspecto, é algo que se fará pela aparência, no intuito de demonstrar que o sacrifício será inócuo, quando o objetivo é a própria verdade, a qual deve ser conseguida universalmente.
Por isso, bom amigo, não podemos censurar qualquer atitude de firmeza fundamentada em certos pontos de vista difíceis de conquistar sem sacrifícios e sem muita reflexão e ponderação. Neste caso, é preferível não ceder, mas cabe palavra amiga de advertência do sofrimento que tal atitude de oposição representa, para quem, inflexível, vê que poderá ser levado a estremecimentos.
Sentimos ter de vir explanar a respeito destes temas tão proficiente e profundamente meditados pelo nosso irmão. Muitas de nossas idéias repetem o que se passa em seu cérebro nos momentos angustiosos das incertezas da justeza das atitudes tomadas. Outras, entretanto, contradizem as intuições que lhe chegam de outra origem, de modo que você poderá perceber até onde deverá reformular o seu ponto de vista.
Alguma vez, você teve a impressão de estar a justificar-se perante a pessoa que lhe pareceu ser aquela que mais atingida pudesse ter sido com sua atitude. Isso não decorre de mero apanhado psicológico em elaborada trama transformada em imagens e palavras. O que se dá é verdadeiro transporte e entendimento, só que a pessoa em destaque não tem o privilégio da lembrança do encontro, de modo que os dizeres repercutirão como pensamentos próprios, até que se dê real compreensão das teses apresentadas e discutidas.
Fique, portanto, bem sossegado que tudo caminha para a melhor solução. A nossa manifestação visou a abreviar o mais possível a fase de insegurança e dispersão, pois poderá haver prejuízos para o atendimento habitual do contrato de trabalho com a espiritualidade. Após isto, esperamos tê-lo integralmente sereno e voltado para os fatos espirituais.
Por outro lado, não receie demonstrar temor por parecer-lhe que todo este escrito venha brotando da mente do médium, como se fora impulso anímico, já que penetramos fundo em sua consciência. É que nos tem permitido ele, da maneira mais consciente possível, que saibamos tudo o que se passa, inclusive porque tudo nos expõe em confiança, graças aos conhecimentos que tem recebido da formação de nossos grupos e das orientações que testemunha em nossas comunicações.
Continue assim, bom amigo. Esse é o seu destino. Você verá. Ore com muito amor por tudo de bom que tem recebido da vida e prossiga com seus votos íntimos e sua intenção de melhorar a cada dia um pouco mais.







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REFLEXÕES





O amor de Deus é o objetivo último do homem. Para isso, é preciso que dignifique a sua pessoa. Não nos iludamos com pequenos fracassos em nosso lento evolutir. Saibamos calcar aos pés a serpente das viciações. Nesse caso, corramos riscos, pois é necessário que nossa alma se evole serena em direção ao Criador.
Muito enaltecemos aqueles que se santificaram. Mas é preciso crer em que precisaram oferecer-se em sacrifício à opinião. São santos que escrevem e que se dizem em contato com Jesus. São pioneiros do mediunismo evangélico a conversarem com as sombras e a se dizerem amigos dos espíritos de luz. São vigorosas mentes, conturbadas e ofuscadas, que se propõem ao trabalho diuturno em prol dos semelhantes. São, enfim, verdadeiros heróis da moralidade que se expõem à voz dos doutos, dos sábios e do populacho.
Poucos estão aptos a demonstrar a sua indumentária sutil resplendente, embora tenham a certeza de que seu espírito esteja plenamente iluminado. Por isso, o descrédito é fácil e a perseguição imediata. Bastaria citar Santa Joana D Arc, a jovem guerreira francesa. Se ela se bateu impelida pelas vozes, terminou no fogo crepitoso da purificação pela imolação. Não temos coragem para oferecer como bom exemplo a vida da santa, mas devemos consignar o quanto teve de enfrentar para dar curso às manifestações de que se via apaniguada. Muitos outros evitaram a sua exposição, de sorte que feneceu o seu brilho e apagou-se a sua chama.
Vemos, hoje em dia, inúmeros espíritas convictos duvidarem até de seus irmãos médiuns que à sua frente exteriorizam o pensamento dos amigos da espiritualidade. Imaginar, então, as reações contrárias dos que se viram ameaçados de perdas materiais e morais é fácil. Vamos, portanto, caro amigo, desenvolver a nossa tendência ao misticismo. Vamos orar compungidamente ao Senhor, para que tenhamos coragem de enfrentar o mundo. Não tenhamos receio de ofender a quem quer que se oponha à verdade. Dia virá em que todo o amor de Deus nos açambarcará em seus domínios.
Veja quão fácil a pena corre por sobre o papel. As palavras mesmo vão acumulando-se e alinhando-se, algumas rudes, outras belas e poéticas, nem todas expressivas o suficiente para expor o pensamento que se avizinha da mente do médium, mas todas iniludivelmente dispostas, de sorte a fazer fermentar as idéias. Se você está de pé atrás, pronto para recusar-se à aceitação de nossas reflexões, paciência. Mas será que você poderia elaborar alguma tese superior à enunciada ao início de nossa dissertação, qual seja, a de que Deus é amor e pelo amor é que o encontraremos no findar dos tempos?
Talvez agora você queira ver na expressão findar dos tempos algo apocalíptico, como término da vida, a explosão do planeta, a queda do universo no caos. Nada disso. No momento em que o ser se aperfeiçoar de modo definitivo e se integrar no absoluto divino, evidentemente, o tempo para ele deixará de contar: é o seu findar dos tempos. Para alguns está mais próximo, para outros mais distante; para todos, contudo, ainda resta algo a caminhar e é a estes a que estamos dirigindo-nos, pois não faria sentido exortar à perfeição aquele que já é perfeito.
Vamos, pois, elaborar em erro. Paciência. Mas não deixemos de imaginar que a vida, a existência, o universo é eterno devenir em maquinismo de incessante movimento. Desconfiemos de nossas conclusões particulares. Ajamos em amor por amor do próximo e de Deus. Olvidemos a nossa própria existência e pensemos que somos mera figura apagada no meio da multidão, mas importante a ponto de se saber útil para nosso irmão envolvido pelo sofrimento de duvidar da necessidade do progresso. Disponhamo-nos a aceitar a palavra do Cristo e o façamos com discernimento, empregando a nossa desenvolvida capacidade de distinguir o certo do errado. Utilizemo-nos do nosso livre-arbítrio para favorecer o nosso crescimento, sem egoísmo, sem orgulho, sem vaidade.
Alertemo-nos para as armadilhas que se preparam para nós e, se tombarmos, tiremos a lição de que o nosso aperfeiçoamento exige outras condições morais insuspeitadas. Éramos inferiores àquilo que supúnhamos. Isto pode parecer trágico e infeliz. Certamente será o despertar para a realidade e a tomada de consciência daquilo que se é nunca é fato desprezível. Saibamos, pois, extrair das derrotas, dos fracassos, das tibiezas de nosso caráter, lição útil para nosso evoluir à luz das verdades evangélicas.
Seja o nosso sim, sim; o nosso não, não, mas dentro da premissa de que a verdade esteja do nosso lado. Transformemos, contudo, os nossos dizeres diante do Senhor, se estiver a nos dizer que o nosso sim deveria ser não ou o contrário. Sejamos rígidos de posse da certeza confirmada pela revelação superior dos espíritos de luz; mas dóceis e maleáveis, se frente a frente com nossa pequenez e o nosso orgulho. Feriu-se o nosso amor-próprio? Cuidado! Fomos ameaçados com duras palavras? Cuidado! Querem que procedamos em desacordo com a harmonia dos conceitos espíritas? Cuidado! Impelem-nos a que percamos a serenidade e a calma? Cuidado!
Antes e acima de tudo, deixemos o tempo correr, pois a fixação das idéias e sua transformação em atitudes saudáveis se fazem bem melhor na tranqüilidade do lar, junto à pacienciosa figura do companheiro, dos filhos, dos pais, dos irmãos.
A voz do Senhor separa os familiares? Cuidado! Talvez isso não venha a ser com qualquer, mas com aqueles que relutam em admitir a vida como passo imprescindível para se postar ao lado de Jesus.
Se o seu irmão o feriu, se o seu cunhado o magoou, se o seu filho o desafiou, se o seu mundo parece deixá-lo para trás, cuidado! Alertado pelos irmãos instrutores, saiba coordenar as próximas decisões em harmonia com as virtudes a serem adquiridas através do sofrimento circunjacente. Não foi à toa que a pedra se postou diante de si. Vá, portanto, sem sede ao pote, pois a água a ser vertida, provavelmente, deverá oferecer-se àquele que o tornou vulnerável diante de si mesmo. Não queira ultrapassar os limites do razoável, ou você terá motivos para conferir razão a quem não tem. Saiba controlar os seus impulsos, mas aja com coerência e firmeza, para que os maus momentos não se perpetuem.
Sabemos que nossas reflexões têm o condão de despertar para a vida íntima, pois não há quem não esteja ou não esteve em situação de se sentir pendente de decisões amargas. Mas se tudo se fizer com amor, os objetivos serão atingidos e o progresso se dará. Para isso, evidentemente, haverá que se socorrer o cidadão do concurso dos amigos da espiritualidade, que todos nós os temos bons e prontos para o socorro oportuno. E o meio de que dispomos é a prece. Oremos, pois, nos momentos de crise, que isso nos remeterá invariavelmente ao regaço carinhoso do Senhor.
Se o nosso caro leitor se desiludiu desta nossa prática, ao correr excessivamente veloz da pena de nosso escrevente, paciência! Que redija, então, de modo bem mais claro e preciso o roteiro que intentamos com nossas fracas luzes. Mas que se aproveite de nossos pensamentos, arcabouçando nova estrutura silogística, mais consentânea com sua própria expectativa. Publique o fruto de seus esforços e exponha-se à opinião, para receber o influxo vibratório das energias de quantos se sentirem ofendidos ou meramente ameaçados. Faça como os santos e você terá um dia o prazer de conviver na companhia deles.







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CONFLITO ARMADO





Nações se aprestam a opor irmão contra irmão. Os homens armam-se como nunca antes na face da Terra. A morte avizinha-se e ceifa as vidas humanas, irresponsavelmente. Aquela que deveria medir os seus atos ao atingir este ou aquele, de repente investe sobre a multidão e retira de cena grandes magotes de cada vez.
No âmbito espiritual, a azáfama redobra, triplica, centuplica. Não há meios de amparar a todos. Alguns se perdem na escuridão do báratro e a existência tem curso em pleno sofrimento.
Eis-nos aqui a estender-nos a respeito de tema primário do ponto de vista espirítico. Não há quem não saiba aonde estamos querendo chegar. Querem ver? O nosso escrevente julga até que a nossa mensagem irá embatucar e não teremos meios de bem desenvolver nossas idéias, longe do ramerrão de tantos e tantos espíritos protetores que vieram para diante dos mortais, a fim de trazer suas palavras de advertência, de aviso, de bondade e de afeto.
No entanto, caros irmãos, fica difícil para quem quer que seja deixar de avisar, de advertir, mesmo que seja com a palavra fácil de quem possui as vibrações mais puras, para atingir grande número de pessoas. Sabemos que os homens, ao lerem textos como os nossos, se enfadam, se enfastiam, se entediam, na ânsia de demonstrar que em nada podemos alterar o ritmo dos acontecimentos, porque ninguém é tão importante que possa afastar o perigo de uma guerra.
Sabemos que Santa Brígida de Vadstena escreveu ao Papa Clemente VII e aos reis da Inglaterra e da França com o fito de sustarem a Guerra dos Cem Anos. Que sucesso obteve, mesmo dizendo-se inspirada pelo próprio Cristo—Jesus? Nenhum. Então, que esperar de nós, principiantes na arte do socorrismo? Só pequenos arremedos, insignificantes mensagens, diminutos sentimentos...
Se bem pesadas as coisas, até a nós mesmos vai parecendo-nos que o produto de nossas preocupações se assemelha a qualquer mísera redação de aluno de primeiras letras. Quem não conseguiria elaborar texto mais contundente, mais esclarecedor, mais abusado até no sentido de promover junto ao leitor certo estremecimento, alguma vontade de atender ao apelo crístico?!... E assim nós temos a sensação de que nem a nossa tarefa estamos a desincumbir, tão frágil e tão flácida a nossa comunicação.
Mas não se perca o nosso leitor pelos lamentos destes ignorantes seres do etéreo. Veja, antes, em nossa manifestação, ardilosa armadilha preparada para envolvê-lo maliciosamente, no intuito de tê-lo a concordar conosco em que tudo vai mal no pior dos mundos, parodiando a célebre frase, às avessas. Tenhamos todos nós a sensibilidade de perceber que nada adiantará diante do fato caracterizado e que o conflito armado se estenderá pelo orbe todo.
Afinal de contas, como nos afirma Kardec, o princípio espiritual é o que vale. Os corpos incineram-se, desfazem-se, derruem-se, desmancham-se, desaparecem. Outros corpos serão argamassados do mesmo barro do anterior e a alma novamente pode volver a encher de vida perecível o contingente da humanidade.
E o progresso? Ora, o progresso (moral e espiritual) é para quem não precisou ler este texto para saber que só o amor constrói e que o bem maior está em promover o crescimento do irmão imerso nas sombras da ignorância.
Fechemos esta longa lengalenga advertindo para a atitude de derrotismo que intentamos desfazer aqui, por meio de sua exaltação ao absurdo. Perdoe-nos o caro amigo por utilizarmo-nos deste pobre recurso oratório para terminar a peroração. Ajude-nos a melhorar a pregação com sua prece e passe a ser o nosso assistente maior. Se as vibrações que recebermos nos alentarem para novos empuxos em favor da mediunidade psicográfica, muito lhe agradeceremos e voltaremos com novas arremetidas, mais confiantes e serenos.
Que a graça de Deus atinja a todos nós e que nos revele a sua infinita misericórdia!

Já tínhamos encerrado o texto, quando nos lembramos de dizer que os conflitos que se preparavam estão sendo, a custo, contidos por exércitos dos irmãos das falanges espirituais superiores, que, à falta de cartas escritas em nome do Senhor, têm procurado exercer sua influenciação diretamente no espírito dos mandatários do poder. Com a ajuda de Deus, poderá a humanidade, em breve, conduzir o seu aperfeiçoamento dentro da normalidade da convivência pacífica. Aliás, até o relacionamento individualizado está recebendo o influxo da orientação superior e só se atrevem a perturbar a paz social aqueles que se degeneraram, por força da incompreensão dos desígnios de Deus. Até para estes, contudo, restará a esperança de socorro em tempo hábil, quando descobrirem que suas atitudes repercutem de modo oneroso para sua felicidade e seu progresso. Sendo assim, como se vê, não há quem esteja ao desamparo.







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O ALEIJADINHO





Dedicado aos estudos, o jovenzinho manco procurava superar a sua deficiência física com ótimo desempenho intelectual. Fazia valer, em alto nível, a lei da compensação, que, desde cedo, viu a necessidade de aplicar in totum, para obter da sociedade humana as mesmas regalias proporcionadas aos seres considerados perfeitos. Pessoa de dotes normais, Raulino precisou fazer crescer seus talentos. Assim, brilhou na escola até os doze anos de idade.
Com o primeiro buço, a primeira grande decepção amorosa. A jovenzinha por quem se deixou apaixonar, cujos encantos incluíam doces olhos azuis e aveludada pele morena, achava graça em suas tiradas inteligentes, mas preferia dependurar-se nos braços musculosos de taludo atleta mais velho, curto de idéias mas hábil com as mulheres.
Pareceu ao nosso Raulino ruir o mundo. E assim foi, de desilusão em desilusão, até que jovem zarolha resolveu atender-lhe aos apelos maritais. Casaram-se cedo, não passando ele dos dezoito e ela dos dezenove.
Daí para frente, a vida teria tido regular desenvolvimento, se não fora acontecimento imprevisível a deixar a família em rebuliço. O primeiro e único parto da jovem trouxe ao mundo três petizes roliços e cheirosos. Eram primores da natureza. Perfeitos quanto aos membros, belíssimos em seu olhar de inocência, mas retardados quanto à mente. Após três meses de vida, já se podiam notar as dificuldades de adaptação ao meio ambiente.
Raulino era pobre e inexperiente. Sua primeira idéia foi de abandoná-los à própria sorte, ou deixando-os aos cuidados de casa de saúde do Estado ou ele mesmo desertando do lar. Mas o nosso amigo tinha a debilidade física e não moral. Sempre havia de claudicar aparentemente, mas o espírito se mantinha firme e a primeira intenção se desfez no ar, como a golfada de vapor que sai do bico da chaleira.
Que fazer para dar a eles condições mínimas de sobrevivência em felicidade? Raulino desesperava, mas estava bem amparado pelas famílias, tanto sua como da mulher. Mercê de sua compostura exemplar, ofereceu aos familiares a segurança de quem se pode confiar para todos os eventos. Sendo assim, foi-lhe ofertado segundo emprego, rendoso o suficiente para a nutrição de todos da casa. À esposa foi dada condição de manter serviçal para os quefazeres domésticos, de sorte que liberada ficou para os cuidados com a higiene e a educação dos bebês.
Raulino se viu, portanto, aos vinte e dois anos de idade, pai de três filhos débeis mentais, casado com mulher zarolha, feia como a peste, mas de espírito cordato, sempre pronta para o sacrifício, quase diríamos sem vontade própria, se não fora o veemente desejo de se manter ao lado do esposo, que conseguira não tinha certeza como. Quanto aos filhos, dedicar-se-ia até a morte deles ou dela, para que se vissem cercados de ternos cuidados.
Foi assim que se passaram os anos do crescimento moral de nossa personagem. Aos quarenta e oito anos de idade, alquebrado pela muita luta na vida, voltava do cemitério com a roupa de luto puída pelo uso. Vinha de deixar lá o corpo da esposa, após sucessivos três desenlaces dos filhos, que não sobreviveram às sérias deficiências físicas que acompanharam os percalços intelectuais.
Toda a prova para Raulino lhe serviu para a competente compensação sentimental. Da mesma forma que precisou um dia desenvolver a inteligência para superar a sua depauperação física, levou todo o período do casamento a calcificar a sua espinha moral e espiritual, como contrapeso às deficiências intelectuais de seus parceiros de existência. Católico de berço, viu-se na contingência de procurar na doutrina espírita o consolo e a compreensão para os freqüentes insucessos de sua vida. Como tudo lhe proviera de fatos absolutamente naturais, nada havendo que pudesse atribuir-se às forças do acaso, parecia-lhe que fora predestinado ao sofrimento e à luta. O espiritismo, assim, fora a sua tábua de salvação, muito embora, em momento algum, tivesse servido à sua mulher, impedida que estava pelo baixo rendimento intelectual, a bem compreender o seu carma. De qualquer modo, no entanto, fora ela quem mantivera o espírito atento para as necessidades de cada filho e que suprira o marido de afeto e de amor, na compreensão das suas crises e quedas do vigor existencial.
Viúvo jovem mas extenuado pelo longo assédio das negras peripécias de sua vida, desiludido diante da falha de sua tentativa de procriar e viver em plena felicidade, Raulino saiu para fase de aventuras clandestinas, que o levariam ao desespero dos vícios, não fora a assistência de seus guias e protetores, que lhe fizeram ver, por via intuitiva, que os sacrifícios de sua vida se perderiam, se negasse, na última hora, os preceitos evangélicos, que tão diligentemente incorporara para enfrentar os dificultosos momentos de dor e angústia. Que aproveitasse agora para alguma tranqüilidade, plantando ainda algumas sementes para o futuro e não derrubando as árvores da floresta de sua vida.
Recomposto a tempo, o nosso amigo pôde oferecer os seus últimos doze anos ao socorrismo ativo do centro espírita que freqüentava. Ali adquiriu a certeza de que o seu grupo familiar estaria a esperá-lo do outro lado, para constituírem no etéreo a família que não lhes foi possível estabelecer sobre o orbe.
Ao chegar do outro lado, sem sofrimento, sufocou-o o desespero de não encontrar nenhum dos seres que pretendia rever com muito amor. Se foi verdade que passara por momentos de rejeição, bem se lembrava das tardes felizes em que carregava nas costas os três pimpolhos, que riam e se divertiam com os folguedos. Jamais lhes foi possível aprender sequer a ler, enquanto o pai decifrava para os colegas do grupo as teses filosóficas dos luminares do espiritismo. Lembrava-se ainda com que ternura a esposa o enlaçava e deixava rolar lágrimas de contida angústia, com a dor de ver o marido em desespero, sem que nada pudesse oferecer-lhe para confortá-lo.
Não percebera mas amara cada um daqueles seres com profunda e emocionada vibração. Naquele instante do retorno, em que suas ânsias o conduziram até com felicidade pela antevisão do reencontro, nenhum daqueles seus queridos estava ali para recepcioná-lo.
Ao intentar caminhar, verificou desde logo que a perna estava refeita e que seus passos careciam só de ajeitar-se à nova modalidade de movimento. Consultou o coração e sentiu-o pulsar forte. Perguntou pela presença de algum ser amigo que o precedera no etéreo e foi descobrindo que estavam bem ali seu pai, sua mãe, seus irmãos, alguns sobrinhos, tios, os avós e muitos outros parentes e amigos que iam aparecendo à medida que por eles ia perguntando. Inutilmente clamava pelos filhos e pela esposa.
Dois anos depois, ei-lo às voltas com intensa investigação no báratro para localização dos entes queridos. Levantou as informações possíveis e obteve terríveis respostas em relação a cada um dos seres. Soube que todos se haviam envolvido em crimes cerebrinos e que haviam concordado em se reunirem na Terra sob os auspícios de alguém que se oferecesse ao sacrifício, por culpas a serem resgatadas. Reviu a condição prévia de seu último encarne e percebeu que cumprira, em grande parte, seus compromissos, com exceção da paciência, que se transformara em mera resignação e expectativa da desvinculação carnal. As teses espíritas serviram-lhe para a compreensão de seus deveres mas a realização do amor só se deu, integralmente, após sentir a falta daquelas criaturas que lhe enchiam as horas e a vida. Percebeu que nem tudo lhe saíra perfeito e que o símbolo de sua existência carnal, o manquitolar, nada mais era do que o vezo moral que deveria sanar. Curar-se não se curou, mas aliviou em muito a sua necessidade cármica. Por dever de consciência, deveria procurar e auxiliar os demais no plano familiar. Mas o que vinha fazendo era muito mais que protocolar, era ato de profundo amor e gratidão. Sabia que, se não procedesse por aquela forma, sua existência iria tornar-se verdadeiro inferno moral. Coagido, portanto, pelos seus sentimentos, vagou pelas penumbrosas regiões do Hades até encontrar cada um daqueles seres a quem dera guarida. Evitou julgar o que os reconduzira àquelas regiões de sofrimento e dor e só lhes possibilitou muita assistência e carinho.
Hoje, o nosso amigo volta à presença dos mortais para trazer o seu testemunho existencial. Para os que rezarem por nós, por nossa família e por nossos amigos, a nossa vibração de agradecimento e afeto. Para os que se condoerem com nossa peregrinação e se sentirem irmãos nossos, o nosso apoio jubiloso e a nossa promessa de solidariedade e amparo. Para os que se virem, tanto quanto nós, pressionados a sair em busca de entidades queridas perdidas pelos descaminhos do mundo, o nosso mais irrestrito incentivo. Para os que se sentirem mais confortados, crentes de que em sua vida as tribulações sejam insignificantes, embora, às vezes, pareçam gigantescas, a nossa palavra de amor e de confiança, na certeza de que saberão encontrar o caminho de sua felicidade, na companhia dos que lhes são caros.
Fiquem, portanto, amigos, nos braços do Senhor e assegurem-se de que os seus aleijões significam tão-só provas a serem vencidas, as quais, com toda a certeza, ali foram colocadas por vocês mesmos, em momento de plena consciência e compreensão. Não queiram, na última hora, perder o que tão sabiamente um dia conseguiram construir. Fiquem na paz do Senhor e orem conosco a prece dominical.







22

OBRIGADO, SENHOR!





O menino dizia as suas preces e desejava que seus pais tivessem saúde e dinheiro, sabendo que, se assim fosse, poderiam ter vida mais sossegada e ele também. Mas não se esquecia de agradecer:
— Obrigado, Senhor!
E assim era toda noite, antes de deitar. E ele se lembrava de cada pequenina manifestação da boa vontade de Deus, quando o pai recebia o salário, quando a mãe ia ao médico e recebia notícia de que estava melhorando de sua erisipela, e assim por diante. Indício seguro de que suas preces estavam sendo atendidas era quando recebia presentes inesperados em dias comuns. Nos que se consagravam às festas, tudo bem; o garoto podia acreditar até em que se sacrificassem pela sua alegria. Mas, ao retornar o pai do trabalho, em dia normal, trazendo alguma lembrança, era batata, naquela noite:
— Obrigado, Senhor!
E assim cresceu o nosso Juvenal, sempre voltado para o Senhor, sempre pronto para o pedido e o agradecimento. De sua parte, além de ter sido bom filho para seus pais, muito pouca coisa havia feito para colaborar com a providência divina. Sabia que deveria trabalhar e isso fazia com denodo; mas era só. Não ia ao centro freqüentado pelos pais, não se aventurava a auxiliar nas campanhas para arrecadações de fundos nem despendia de seu mais que o desconto em folha obrigatório. Tinha frase célebre que dizia em meio às duas preces do pedido e do agradecimento:
— Meu pai trabalha, minha mãe trabalha, eu trabalho. Se todos trabalharem, não haverá motivo para ninguém pedir. Claro está que, se o frio for intenso, até posso buscar os que tiritam para agasalhar no centro; se a peste sobrevier, irei ajudar a sepultar os cadáveres; se houver terremoto, irei procurar nos escombros se há algum sobrevivente.
Juvenal não acreditava que poderia fazer frio para ele; ou ser atingido pela peste; ou ser vítima de soterramento. Ele trabalhava, pedia e agradecia...
Um dia...

Toda e qualquer história que pudéssemos inventar agora iria ter um único objetivo. Qual será tal objetivo? Que acontecerá com o Juvenal? Terá ímpetos de agradecer ao Senhor os infortúnios por que passar, dizendo a indefectível frase: “Obrigado, Senhor!”? Ou terá desvarios de orgulho e egocentrismo, que abalarão tão profundamente as suas convicções que irá, arremessado ao báratro, curtir sofrimentos atrozes de arrependimento e remorso?
Nada disso.

Um dia, após ter meditado profundamente por ter lido certa pregação espiritual apanhada por via mediúnica e inserta em página de periódico distribuído gratuitamente, Juvenal resolveu que sua atitude era estranha à postura do ideário espírita. Analisou, proficientemente, a sua performance de vida e chegou à conclusão de que deveria mudar. Daí por diante, deixou de pedir só para si e passou a pedir pela humanidade, descobrindo, finalmente, que, se era atendido, é porque havia quem pedisse por ele.
Reuniu a família, no final de semana, e manifestou à esposa e aos filhos o desejo de instituir no lar a prática da leitura regular da obra O Evangelho Segundo o Espiritismo, ao mesmo tempo que anunciou aos demais que se aproximaria de determinado centro espírita para levar a sua contribuição em dinheiro e o esforço de seu trabalho. Convocou aos demais para que o seguissem e, sem esperar resposta, abriu o livro indicado e leu o primeiro trecho encontrado ao acaso. Abriu nas últimas páginas e se deparou com o trecho em que se comenta o pai-nosso e leu: “O pão nosso de cada dia...” Reconheceu a lição íntima do pedido sublime e, antes de terminar a própria leitura, já estava enaltecendo a graça recebida:
— Obrigado, Senhor!







23

TIRANDO DÚVIDAS





Bom amigo escrevente:

Os seus companheiros do etéreo estão muito satisfeitos com o trabalho que vem sendo desenvolvido. Se lhe parece que houve diminuição do ritmo é para oferecer-lhe condizente descanso, à vista de certa exaustão psicológica compreensível. Mas não deixe de oferecer-se para o trabalho de todo dia, porque estamos necessitados de prosseguir com o nosso. Sabemos de sua disposição de ajudar e nosso lembrete vem apenas para confirmar o que intuitivamente já lhe havíamos passado.
Fique na paz do Senhor, agora e sempre!
Se você desejar, tire alguns dias para ficar na companhia da família, mas saiba que parecerão vazios e que você, por livre e espontânea vontade, irá retornar rapidinho para as tardes de psicografia. Sendo assim, nós não lhe propomos as férias que você vê todos gozarem. Ficarão a seu arbítrio e desejo de descansar. Era o que tínhamos de nossa parte.
Caso deseje alguma informação a respeito do serviço, pergunte, deixando bem registrada a questão para que nossa resposta vise a algo mais importante, ou seja, que algum ensino possa estar à vista da curiosidade dos leitores que acompanham as nossas comunicações.


Desejo saber se os irmãos que estão transmitindo suas mensagens nestes últimos tempos são os mesmos do Grupo do Amor que teceram comentários a respeito do desempenho humano sob o prisma da visão sentimental. Quero saber mais: se as turmas estão preparando textos de abertura e encerramento bem definidos, como fizeram as anteriores, até mesmo sem que o escrevente tivesse noção do que escrevia.

Evidentemente, as turmas que se apresentam têm cada uma orientador próprio, designado pela direção do instituto. Se, às vezes, lhe parece que algo não anda de acordo com os princípios estabelecidos pelos grupos anteriores, é porque há hesitações naturais, que serão superadas com o aprendizado dos mecanismos que lhes cabe assimilar. Fique, portanto, bem sossegado que tudo se esclarecerá em tempo hábil, mesmo que seja preciso um dia suspender o roteiro oficial, para reprogramar a seqüência das comunicações, definindo-lhes os parâmetros e os limites. Veja como neste dia estamos procedendo.


Haverá seqüência de trabalhos? Até quando? Não estaria a Escolinha carente de outros médiuns? Que será das publicações?

Vamos por partes.
Em primeiro lugar, você já sabe que, por tratar-se de escola de evangelização, nunca haverá paradeiro para o trabalho mediúnico, parte obrigatória do currículo. A sua presença junto a esta mesa dá aspectos de pura realidade ao aprendizado buscado, mas não pense que o serviço termine aqui. Há inúmeras outras formas de transmissão mediúnica que são treinadas junto aos mortais, muitas vezes até sem que eles mesmos se inteirem de que estão a serviço da espiritualidade. Isto responde em parte à segunda questão.
Certamente, no momento do crescimento do número de turmas com a formação de novos instrutores e professores, haveremos de recorrer-nos de outros médiuns. Entretanto, não é essa a tendência da instituição. Por determinação superior, a formação de novos mentores e formadores de socorristas é o prenúncio de outros núcleos de aprendizagem, com iniciativa e roteiro próprios. A multiplicação das escolas é objetivo maior que o inchaço das que existem. Desse modo, os problemas se circunscrevem a cada novo grupo de instrutores. Aí a experiência gerada é que lhes valerá para seu crescimento, em função dos tópicos que lhes são propostos à observação e apropriação.
No que tange às publicações, deixamos-lhe bem claro que não há pressa alguma. Se é bem verdade que as nossas notícias possam conter informações preciosas para agitar o intelecto e a sensibilidade dos possíveis leitores, não há como negar que o volume das obras espíritas é bem grande e sua qualidade superior a qualquer coisa que pretendamos oferecer à humanidade. Fique, portanto, bem tranqüilo, que nós não estamos a nos preocupar com isso.
Sabemos que sobra o seu serviço de preparação dos originais, que lhe tem tomado todo o tempo para possíveis implementos junto aos centros de ajuda espiritual, pois você se vê preso à sua máquina de escrever. Mas essa fase passará quando você atualizar a escrita. Como você vem aproximando-se do momento atual, uma vez que seu trabalho avança mais celeremente do que o nosso, chegará a hora em que o tempo lhe será restituído para aplicação livre. O que lhe pedimos é que não desanime e que insista no que toca às possibilidades que se abrirão para oferecer a mais pessoas a leitura de nossas produções. É bola de neve que não cessará de crescer e que favorecerá, de repente, o aparecimento da oportunidade que até agora não surgiu. Não corra atrás. Limite-se a prosseguir neste mesmo diapasão atual.


Quem tem estado comigo para orientação e assistência individualizadas? São os guias Lúcio e Hermínio? Tenho contado ainda com a proteção do grupo de Abigail? Poderiam esclarecer-me estes pontos?

Certamente. Todos da Escolinha de Evangelização se interessam por manter o médium em plena atividade. Para isso, têm realizado rodízio para assistência pessoal, apesar da atenção diuturna de Lúcio ou de Hermínio, alternadamente. Para médiuns a serviço constante do etéreo, nenhuma assistência é demasiado grande.
Se algo determinar a cessação dos trabalhos, o que não se encontra na mão de ninguém especificamente, a não ser na vontade soberana de nosso mediador, aí as condições de relacionamento entre os planos alterar-se-ão segundo o roteiro a ser impresso para o futuro, podendo ocorrer desde a configuração de maior implementação do socorro e dos cuidados, como a total ausência da participação de qualquer socorrista. Mas estamos só falando em tese, pois quer parecer-nos, pela análise espectral da aura de nosso amigo, que nada existe que subentenda qualquer interrupção. Fique, portanto, bem sossegado quanto a este aspecto.


Posso considerar as últimas mensagens como íntimas, sem serem pessoais? Melhor explicando: parecem os ditados referirem-se à pessoa do médium muito mais que a situações possíveis para outros indivíduos. Isto significa que os textos não devam ser divulgados? Que devo pensar a respeito disso?

Em hipótese alguma o grupo de alunos em fase de aprendizagem da magnetização e da mediunização iria elaborar textos relativos ao médium, mesmo porque não têm eles direito sobre essa assistência e proteção. O que temos realizado no momento é aproveitamento das inflexões psicológicas, emocionais e intelectuais do mediador, para ensinar aos alunos como agir em função da energia disponível e das circunstâncias em que se apresenta o aparato do instrumento sobre que devemos trabalhar. Muitas vezes, por falta de estímulos próprios, nós até que incitamos reações de sua parte, para oferecer o quadro de que necessitamos para a explicação do tópico do dia, De resto, foi assim que combinamos, não é verdade?... Fique, então, bem tranqüilo a respeito de mais este aspecto.


Quem está respondendo às questões? Posso dizer que Maciel é o principal deste setor da instituição? Que papel têm os instrutores que se responsabilizam pelas turmas?

O espírito que lhe escreve agora é Manuel, que ocupa posição intermediária entre Maciel, o mentor de todos os trabalhos da Escolinha, e outros servidores que atuam diretamente com os alunos, como Marcelo, Ovídio, Hermínio e outros. João é espírito de escol que se equivale a Maciel e que apresenta vastíssimo rol de atividades sob sua gerência e responsabilidade. Há professores eméritos que participam com seus trabalhos e com sua colaboração junto à administração, sem cargo específico, como é o caso do irmão Otávio. Existem ainda instrutores menores, mas estes cuidam de pequenos grupos de alunos, espécie de monitores, que já apresentaram composições na qualidade de discípulos. Há alguns que passaram por aqui e se retiraram, pois só vieram na condição de conferencistas, como foi o caso do irmão Frederico.
O que nos cabe informar agora é que o tônus vibratório a ser mantido na hora das transmissões é que está a cargo dos instrutores das turmas, que previamente analisam as comunicações, verificam se se enquadram no roteiro estabelecido e se estão de acordo com as lições desenvolvidas nas aulas, que são ministradas conforme comunicação anterior.
Neste dia de hoje, dando prosseguimento ao roteiro estabelecido em função das vibrações pessoais do mediador, tudo decorre perfeitamente de acordo com o programado. Os alunos do Grupo do Amor estão observando tudo o que passa e deverão sobre isso estender-se em relatório circunstanciado, cujas conclusões serão discutidas em aula próxima, de acordo com o calendário da equipe. Aí, sim, poderão expender opiniões a respeito do desempenho do escrevente, sempre de modo objetivo e absolutamente isento de qualquer apreciação de caráter valorativo. Seria interessante que o nosso amigo se dispusesse a participar como ouvinte dessa aula, para se inteirar de algumas observações justas que se fazem a respeito de sua atitude diante do mediunismo. É de interesse também avaliar algumas posturas dos discípulos não condizentes com a realidade dos fatos e o tipo de análise que se realiza para levar o grupo à descoberta das causas que provocaram as falsas interpretações.
Pensamos ter respondido às suas indagações.


Tenho até medo de ofender. Será que as mensagens de caráter individual endereçadas por minha mãe e demais familiares não estão sendo fantasiadas pela minha mente? Até que ponto posso considerá-las verdadeiras? Que meios devo empregar para controle de sua veracidade? Não estarei abusando desta abertura que me estão proporcionando? Quer parecer-me que pela primeira vez sou eu mesmo quem estabelece as perguntas. Ou estarei enganado?

Vamos começar pelo fim.
Você estabeleceu as dúvidas e o roteiro das questões de modo aleatório. Nós vimos a necessidade de vir em seu auxílio, para que não se deixasse envolver por frustrações que pusessem em perigo a psicografia. O socorro não veio senão no momento mais azado, quando se deu o cruzar de sua hesitação com o ponto de nosso programa relativo a esta característica psicológica. Daí estarmos a estender-nos largamente a respeito de cada assunto particularizado. Isto quer significar duas coisas: la.) você não deve temer estar abusando de sua prerrogativa de nos inquirir a verdade; afinal de contas, trata-se de sua própria vida e da segurança de sua participação nos trabalhos da Escolinha; 2a.) a maneira de controlar as informações assinadas pelos seus familiares será sempre esta mesma da consulta aos irmãos que velam pela justa realização destes trabalhos, que já se comprovaram absolutamente verossímeis quanto à sua procedência espiritual.
No que tange à informação solicitada no topo da questão, podemos afirmar que uma única vez houve a intromissão de espírito embusteiro, no caso de seu sogro, o que foi objeto de extenso comentário, pois tudo fora planejado e fazia parte de tópico obrigatório do roteiro do grupo em questão. Pode, portanto, ficar bem sossegado que todas as mensagens tiveram procedência bem definida.


Que pensar quanto às observações de várias pessoas relativas às mensagens de Maciel e de João, ao início das minhas atribuições em Cabreúva e mesmo aqui em Indaiatuba?

Deixe-se para que elas mesmas respondam às questões levantadas. Dia virá em que toda a luz se fará, íntegra, perfeita, imaculada. É só não apressar. Não é verdade que iremos todos nós encontrar-nos no reino do Senhor?!


Se não fiz todas as perguntas que gostariam que fizesse, queiram, por favor, acrescentar em forma de comentários o mais que se pretenda esclarecer para facilitação dos trabalhos. Estou pronto até para oferecer minha pena para que a elaboração das questões se faça como se estivesse eu mesmo propondo as perquirições...

Agradecemos a oferta e nos aproveitamos dela para esta manifestação final.
Evidentemente, o tudo que até hoje deixamos registrado e o mais que se programou para as próximas equipes é que redundará na longa mensagem que temos para o nosso irmão escrevente, que, para nós, como já dissemos, não passa de leitor privilegiado, que tem a plena possibilidade de contatar para inferência, inclusive, das intenções das diversas ponderações insertas nos textos. Melhor que isso é só a nossa assertiva de que estamos à disposição de todos os leitores, no momento de suas necessidades de apoio, ajuda e conforto, para o que insistimos em que tudo se faça rigorosamente do modo mais honesto e puro possível, em nome do Senhor Jesus, para honra e glória do Pai.
Verdadeiramente, se dissermos que a chave que irá abrir essa porta é a prece contrita e de coração, acredite. Sendo assim, abra-se, irmão, para a espiritualidade e procure pautar todo seu procedimento pelas normas evangélicas. Esse é o caminho para o bem maior, conforme nos ensina o nosso amigo e mentor Maciel, cuja lhanura no trato contrasta com sua palavra enérgica e fluente. Pode parecer, às vezes, que não tem comiseração pelo pecado, e isto é inteira verdade; mas o pecador é respeitado, na justa acepção do termo mais belo ditado pelo ensino de Jesus: em pureza de amor.


Queira, bom amigo, receber o nosso abraço afetuoso e nossos agradecimentos por esta magnífica tarde psicográfica. Veja bem no que a sua indisposição inicial se transformou: nesta alegria íntima do trabalho bem cumprido, na consciência exata do dever, no agradecimento em vibrátil emoção de afeto e carinho.
Fiquemos todos na paz de Deus!







24

O ORADOR FALIDO





Reginaldo era célebre pelas palestras que proferia. Tinha como base do raciocínio que o amor constrói tudo, do mesmo modo que suas ilações eram rápidas e movimentavam extenso cabedal de acontecimentos. Opunha o ódio ao amor e dava-lhe o condão da destruição, de modo que o universo se arquitetava a partir do amor divino e se derruía por força de quem desejasse ver prevalecer a maldade.
Sendo assim, não era propriamente pregador espírita, mas flutuava de uma religião a outra, provocando o entusiasmo do auditório, onde quer que se apresentasse. Era o que podíamos dizer um indivíduo universal, inteiramente integrado no ideal do ecumenismo mais sadio.
Mas Reginaldo pregava da boca para fora. Tudo que dizia podia ser comprovado nos livros e nas teses doutrinais de toda ciência ou religião que se dissesse interessada na salvação da alma e na superação das deficiências do corpo, quanto à viciação e ao ardor das paixões. Reginaldo, entretanto, no desejo da projeção moral sobre as platéias, se deixava inocular de sutis influenciações do mundo inferior para prevalecimento da tese de que, se o balão sobe, um dia terá de descer e, se for perfurado lá no alto, cairá estrondosamente, desfazendo a impressão da segurança das alturas. Assim, arquitetava-se contra ele severa reprimenda de caráter absolutamente maldoso.
Mas as forças do bem estavam atentas e se opuseram a que Reginaldo fosse jogado de vez ao solo das incompreensões.
No dia preparado para a acusação por meio da influenciação de ser embriagado que lhe invectivaria a soberba e o orgulho, dizendo para praticar aquele que tanto verberava os semelhantes, Reginaldo se viu preso ao leito por forte hemorragia intestinal. Precisava de sério tratamento.
A conferência foi cancelada e os organizadores, não percebendo as razões espirituais da suspensão do fluxo energético, lamentaram muito não tê-lo aquela noite, para a famosa palestra a respeito das bases do amor como sustentáculo da caridade. Não entenderam ou não quiseram ver, porque tinham ampla capacidade de perquirição das razões subjetivas que determinam os fatos carnais. Mas isto chegará a seu tempo a cada um de nós. Volvamos ao nosso caro confrade.
Do leito de casa foi levado para cirurgia de emergência no hospital. O fluxo sangüíneo, no entanto, estancou-se como por encanto e Reginaldo foi deixado sob observação, para que se solucionasse o problema através do estudo das possíveis causas.
Com a mente lúcida, o nosso orador viu naquele descanso inesperado boa oportunidade para colocar-se em dia com diversos temas que desejava desenvolver em palestras previamente marcadas. De resto, a sua pregação é que lhe dava o sustento da casa. Apesar de nada cobrar de centros espíritas, quando se apresentava diante de platéia leiga, vamos assim conceituar os que não se sentiam à vontade com os ensinamentos espíritas, aí cobrava taxas altas, já que não tinha outra fonte de renda.
Interrogou os médicos do etéreo a respeito de sua saúde e obteve deles a resposta de que dificilmente voltaria a apresentar-se em público, se não se ativesse a considerar a sua maneira de ser em relação ao fato pregado aos companheiros de existência.
Reginaldo desejou entender os dizeres que lhe brotavam na consciência, mas refutou a idéia de que a alteração solicitada devesse dar-se no campo da moralidade. Sopesou bem os termos com que vazava cada tema e descobriu que tudo poderia conter-se na mais pura obra de caráter doutrinal. Aliás, vários volumes de suas dissertações haviam saído do prelo e aguardavam distribuição oportuna junto às livrarias esotéricas do país, o que se daria em futuro próximo, tendo em vista a sua tournée de propaganda e de introdução das obras nas várias comunidades religiosas por onde perpassaria.
Julgou melhor os dizeres de que tinha sido alvo da parte de seus mentores e concluiu que não deveria mais cobrar pelas suas palestras. De graça daria o que de graça recebeu. Era assim que interpretava a manifestação de seus instrutores.
Tendo deixado o leito hospitalar, voltou para casa com o compromisso de prosseguir os exames clínicos, uma vez que os resultados, insatisfatoriamente, não revelavam qualquer causa que pudesse ter provocado a hemorragia.
Entrementes, as forças do mal arregimentavam novos encarnados para oporem dúvidas ao procedimento íntimo consciencial de nosso amigo, na oportunidade de sua apresentação diante das platéias. Não tinham ficado satisfeitos com a frustração de seu plano e não iriam deixar de mão beijada para os inimigos a facilidade de safarem o pregador do merecido castigo, por sua orgulhosa atitude diante das pessoas.
Mas a oposição dos guias de nosso amigo previa resultados dramáticos para impedir-lhe a derrocada fatal para a verdade de sua palavra. Em grave acidente, teve perfurada a garganta, de modo a arruinarem-se-lhe as cordas vocais. Ficava despojado de seu principal instrumento de trabalho, mas emocionou toda a coletividade com a tragédia de sua vida.
Após três longos meses de internação, tempo de que necessitou para várias cirurgias plásticas, a fim de se recomporem os tecidos lacerados, Reginaldo deixou novamente a instituição médica, pronto para prosseguir a sua carreira de orador. Havia, no entanto, o problema sério da dívida para saldar. Assinara vários compromissos de pagamento e necessitaria, agora mais que nunca, receber pelas palestras. No entanto, estava impossibilitado de utilizar-se de sua voz para a pregação fácil. Até os gestos se viam impedidos da mesma largueza anterior, uma vez que várias fraturas tiveram de ser reduzidas com prejuízo dos movimentos. Fora ferozmente prejudicado no aspecto físico. Ponderou a respeito do montante da dívida e o quanto poderia arrecadar com a venda das obras editadas e chegou a resultado assustador: precisaria vender cada pequeno volume a preço bem superior ao ajustado inicialmente, para poder dar-lhe cobertura integral.
Conversara intensivamente com as equipes socorristas que o ampararam durante a internação e, naqueles abençoados três meses de hospital, pôde, finalmente, inteirar-se do perigo que realmente estava correndo. Realizou muita prece pelas entidades que desejavam vê-lo na rua da amargura, percebeu o muito de amor que se continha no desastre de sua vida e imaginou modo bem plausível para prosseguir em seu itinerário oratório: iria falar através de amplificador diretamente instalado em seu aparelho fonador, o que lhe permitiria, junto ao microfone, desenvolver as suas teses moralistas. Não esperava que o público se agradasse de sua voz ou de sua postura, mas que compreendesse o valor de suas palavras.
Assim, em determinada noite de março, a fama de suas apresentações levou o público a lotar amplo auditório de crentes do evangelho de Jesus de certa seita bíblica.
Reginaldo assumiu o posto e, durante hora e meia, por esforço absolutamente homérico, conseguiu transmitir todas as noções que arquitetara de forma harmoniosa para o efeito do convencimento da platéia de que sua pregação provinha dos cânones celestiais diretamente para a consciência dos ouvintes.
Certo pastor estava preparado para insuflar no espírito do povo que Reginaldo extraíra os seus ensinamentos das fontes diabólicas do espiritismo, mas, na última hora, precisou calar-se, à vista do entusiasmo com que o público ovacionou o ilustre orador.
Foi sucesso absoluto. Vendeu ali todos os livros que programara e recebeu inúmeras encomendas que enviaria pelo correio, mediante prévia aquisição de quantos não queriam perder a oportunidade de possuir obra tão importante.
De palestra em palestra, Reginaldo foi ampliando os seus ganhos, de sorte que, quando terminou a venda do último exemplar, saldava também definitivamente os seus débitos para com o hospital.
No entanto, os convites escassearam para apresentação de nosso orador. À medida que os pagamentos se efetuavam, parecia fenecer o entusiasmo dos auditórios. A novidade do aparelho instalado em seu pescoço foi cedendo ao hábito da convivência e ele não mais se constituía em motivo de interesse para o público. Aliás, a sua última palestra obteve a presença de míseras dez pessoas que adquiriram os últimos dez exemplares disponíveis e a isso estavam atentos os editores, que sustaram o projeto da segunda edição bem a tempo de impedir o fracasso editorial.
Reginaldo acompanhava os acontecimentos com vivo interesse. Sabia dos riscos que correra e reconhecia agora, na força que recebia do Alto, o compromisso de assistência contínua. Através dos sacrifícios físicos que teve de suportar, foi aprimorando e avançando moralmente os seus atos de amor ao próximo, de modo que aquela postura sacerdotal, profética, ministerial e apostólica dos primeiros tempos foi cedendo para a conversa íntima, particular, o conselho acertado, o ouvido pronto para receber as queixas, a atitude condizente com a palavra carinhosa, amiga e consoladora que deixava indelevelmente impressa na mente das pessoas que o procuravam para a reflexão conjunta dos problemas. Passou a executar na prática a construção de sua personalidade, baseando-a no amor e na consideração pelas entidades sofridas de seus semelhantes.
As forças do mal precisaram reconhecer que Reginaldo já não mais se via a descoberto para a crítica do egoísmo e do orgulho. Ao contrário, a aproximação daquelas entidades fez com que fossem compreendendo que o ódio conseguira destruir as barreiras existentes entre todos e que não obtiveram o efeito desejado de lançar o nosso amigo à execração pública. Assim, muitos foram pacientemente conduzidos para o redil das ovelhas cativas pelo amor de nosso confrade, de sorte que aqueles que lhe foram um dia adversários podiam contar-se agora entre os que melhor o compreendiam, atendiam e auxiliavam.
Estabeleceu-se, entre todos os amigos do etéreo, sério conluio para devolver ao Reginaldo a sua capacidade física, com a finalidade de ligar o passado ao futuro. Sem que fosse consultado, sofreu diversas cirurgias de caráter espiritual, de molde que se soldassem de novo, em posição absolutamente normal, as cordas vocais.
Um belo dia, tendo regressado ao hospital para avaliação das cirurgias plásticas e tendo sido retirado o aparelho amplificador, surpreendentemente, Reginaldo apresentou desempenho fônico perfeito. Aliás, era o aparelho que estava opondo resistência à sua manifestação vocal. Os médicos maravilharam-se com o resultado de seu trabalho, julgando que tudo fora mérito seu e sorte do amigo. Faturaram para si a vitória cirúrgica e transformaram Reginaldo em porta-voz de sua habilidade.
Mas Reginaldo estava em outra bem diferente. Ao invés de agradecer aos amigos do etéreo a sua boa vontade relativamente ao desforço que fizeram para restaurar-lhe as condições ideais para a pregação, concitou-os a firmar trato de atividades bem distintas da anterior. Considerou-se falido como orador, mas pediu aos amigos que estabelecessem condições ótimas para atendimento individualizado aos sofredores. Desejava abrir consultório de assistência espiritual, para o que se prontificaria, inclusive, a estudos de psicologia, para obter o alvará regulamentar que lhe permitiria funcionar em caráter oficial. Agradecia a deferência de que fora alvo, mas desejava manter sua autonomia de decisão. Julgava não estar pedindo demais e insistiu naquele novo trabalho, que lhe parecia menos propenso a oferecer-lhe as tentações da fama e a inveja das entidades malignas. Iria desaparecer do contexto social das coletividades para dedicar-se às pessoas como seres de sangue e de espírito. Queria sentir o calor humano transudado na forma do amor efetivo e terno do reconhecimento do valor do trabalho que desempenharia.
Assim que recebeu o assentimento para seu desejo absolutamente imprevisível, pôs-se a campo para as tarefas do estudo e da preparação do local em que atenderia.
Passaram-se cinco anos de lutas nos bancos universitários até que pôde, finalmente, ostentar o competente diploma e respectivo registro profissional para dar andamento ao seu novo projeto de vida.
Assim que se instalou, recebeu inúmeras pessoas que vinham apresentar-se para encaminhamento no plano das atividades evangélicas. Reginaldo baseava a sua palestra íntima no amor como elemento basilar para a construção, ao tempo que o ódio só servia para a destruição. Dizia-o com sabedoria e convicção, como ato valioso retirado de sua experiência de vida. Tinha a assistência de inúmeros seres incorpóreos e suas recomendações não erravam o endereço do coração e da consciência de sua clientela. Dispunha de tempo para consultas gratuitas aos amigos dos centros espíritas mas cobrava alto dos chamados leigos. ou seja, daqueles que...
Hoje, Reginaldo se vê às voltas com inúmeros convites para apresentação em programas de televisão, em auditórios universitários... Parece que o nosso homem está predestinado a insuflar na mente dos desajustados o revide da inveja e do ciúme. Parece que sua luta irá ter de abrir-se à multidão. Disso tudo, porém, prevenido, tem absoluta consciência e conta com o apoio irrestrito de vasta constelação de espíritos amigos. Deus o proteja e abençoe!







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ENREDO ARREVESADO





Margarida era boa menina. Acatava as determinações paternas e jamais saía da linha de conduta por ele estabelecida. Mas Margarida era observadora. Sendo assim, descobriu, um dia, que o pai saía furtivo de certa casa das redondezas, mal afamada e sobre que se contavam histórias escabrosas a meia voz. Por essa época, a nossa jovenzinha contava treze anos e mal havia entrado na puberdade. Era meiga e carinhosa e foi com esse tom de voz que perguntou ao pai, na frente da mãe, o que fora fazer na supra-referida residência. Não dando oportunidade para a resposta, perguntou-lhe mais, se deveria obedecer-lhe quanto às ordens verbais ou se simplesmente bastava seguir-lhe o exemplo...
Diante da prerrogativa paterna dos safanões e do castigo, viu-se acuada por desacato, desaforo, desrespeito, desobediência e demais desarrazoadas descomposturas. Mas havia do seu lado santa protetora, a mãezinha querida, que se interpôs, para que a filha não sofresse o despautério do marido, na intenção ainda de que não se desviasse das devidas explicações.
Presa no quarto, além de alguns palavrões, outros tantos gritos e porta estrondando contra o batente a tremelicar os copos na cristaleira, nada mais pôde perceber a moçoila do efeito da discussão que se seguiu à sua colocação. Não entendia bem o que fizera, pois não demorava malícia em sua atitude. Tinha a intuição de que o pai deveria respeitar os compromissos para com a mãe e só. Mais tarde, talvez viesse até a compreender as causas que formulavam o procedimento paterno, mas, naquela oportunidade, achava que era preciso deixar tudo em pratos limpos. Disse o que disse por ingenuidade e por puro espírito de justiça.
O tempo passou. Os pais prosseguiram juntos e Margarida chegou ao final da idade de procriar. Como não obtivera concurso de marido legalizado, resolveu efetuar o que, na gíria moderna, se ousa chamar de produção independente, maneira pouco adequada de levantar o carma maternal de certas mulheres apontadas na espiritualidade para lutarem pela educação e favorecimento moral de certos indivíduos com que mantêm relacionamentos de diferentes aspectos, o mais das vezes de caráter meramente afetivo.
Margarida era inteligente e espírita, de modo que pensava que o sistema antigo de casar, engravidar e abandonar a esposa com filho era perigo que não queria que homem algum corresse em relação a si mesma. Bastava a ela compreender o seu intento de proporcionar oportunidade a um ou mais seres para virem ao mundo. Afinal de contas, seria desperdício orgânico desprezar sua potencialidade física de procriação. Para separar a parte moral do fato, deliberou oferecer-se à inseminação artificial, o que se realizou em hospital conceituado.
Foi assim, com tão avançado raciocínio, que veio ao mundo Ferrareto, mais propriamente João Enésio Ferrareto, sobrenome cedido pela mãe diretamente ao filho, embora a contragosto extremo do avô, que não admitia sequer a hipótese de semelhante ato. Enfim, a rapariga beirava os trinta e cinco anos e era financeiramente capaz de levar adiante a criação do filho.
No dia do nascimento, o nosso velho Ferrareto foi visitar o neto na maternidade, levado por sentimentos desenvolvidos no centro espírita para onde fora levado um dia pela mão da falecida. Diante do pequerrucho, desvaneceu-se de amor, desejando ardentemente dar-lhe todo carinho que há tempo se acumulava em dolorosa reserva, desde que a esposa se fora e a filha o deixara para morar sozinha. Sabia-se ranzinza e bruto, mas as lições aprendidas nestes últimos seis anos faziam o seu efeito. Resolveu ali mesmo, junto à parede de vidro que o separava do neto, que tudo faria para reaproximar-se da filha.
A nossa história teria breve desfecho se levantássemos agora a hipótese de o velho senhor simplesmente admitir uma palavra de desculpa e outra de perdão e pronto. Mas o arrogante senhor não curvava, até mesmo quando, diante do Pai, nas orações da noite, lhe pedia para lhe dar a compreensão do mundo. Fazia-o como se cumprisse a obrigação de pedir e esperava de Deus que cumprisse a obrigação de dar. Era tudo.
Sendo assim, bolou rocambolesco plano para introduzir-se nos sentimentos da filha. Imaginou que a moça fosse precisar de alguém para cuidar da criança durante seus horários de trabalho. Acertou com cara creche a assistência ao infante e aguardou que a filha saísse do hospital para revelar-lhe a sua idéia. Ao mesmo tempo, com a desculpa de ter de abrir o apartamento para arejamento, providenciou que os móveis destinados à criança fossem todos trocados por caros objetos adquiridos em loja especializada e luxuosa. Revirou os armários e providenciou a troca de todo o enxoval, supondo que a filha se deslumbraria com todos os seus cuidados.
Margarida era inteligente. Sem que suspeitasse das atitudes do pai, ainda assim pôde ver de longe que o velho desejara o neto com extremado afeto. Desse modo, preparou-se para as palavras do reencontro, pois sabia que, de um momento para outro, deveriam ajustar as suas contas. Mas enganava-se.
Se o pai agia com demonstrações de amor pelo garotinho, não perdia vaza para criticar a maneira pela qual fora concebido. Amava a filha, mas tinha maior apego às aparências. Jesus não lhe parecia o senhor e orientador do universo, mas a entidade benfazeja que viera trazer aos mortais a lei do perdão. Havia, entretanto, que compreender que, quando Deus perdoava, eximia os humanos de qualquer responsabilidade no mesmo sentido, não havendo, pois, que ele dirigir-se à filha nem esta a ele. João, o neto, era o símbolo vivo de que todos haviam sido compreendidos e perdoados. Bastava agora unirem-se em paz e prosseguirem a vida, sem explicações ou entrechoques de opiniões. Tudo se acertaria naturalmente. Sob este aspecto, até que não podia censurar a menina.
Quando Margarida descobriu que seu apartamento fora violado, mais ainda, que sua intimidade fora violentada pelo pai, não acreditou no que via. Percorreu os aposentos de um lado para outro mais de trinta vezes, espantando as sombras que desejavam instalar-se em sua mente. Ao abrir as gavetas, quase teve choque de nervos. Felizmente, o pai fora buscá-la mas se negara a subir, pretextando negócios. Queria que a surpresa e o deslumbramento não forçassem a moça a agradecimentos que só representariam mera subalternidade psicológica. Falariam sobre isso quando a alegria estivesse arrefecida.
À noite, toca a campainha. Era o pai com extraordinário buquê de rosas vermelhas e grande embrulho que mal disfarçava enorme urso de pelúcia.
Margarida abriu a porta e caiu em prantos nos braços do pai. Este ficou aparvalhado. Não teria acertado em tudo? Se algo não estivesse bem, que ela dissesse que ele trocaria.
— Pai, nem tudo na vida se pode trocar. Se eu desejasse ter outro pai, não conseguiria, nem você poderia, num passe de mágica, fazer-me desaparecer ou ao João, para substituir-nos. Nós precisamos é um do outro. Entre que está na hora de dar de mamar ao Ferrareto — parecia-lhe que o sobrenome dava maior envergadura ao filhote. — Depois disso, iremos realizar o evangelho, com todos os rituais de amor que contém: rezaremos o pai-nosso, abriremos o Evangelho, leremos algumas mensagens, conversaremos com os espíritos protetores e pediremos auxílio a eles. No final, agradeceremos a nossa união no Senhor e determinaremos até que ponto poderemos confiar em que não mais nos ofenderemos um ao outro. Se as palavras nos ajudarem, eu perdoarei estes anos de ofensas que sofri por ter um dia dito o que não deveria, pois implicava em julgamento. Você, querido amigo, irá pedir-me desculpas por me ter maltratado e humilhado todos estes anos. Se tudo se realizar conforme o que imagino que seja a orientação de nossos amigos da espiritualidade, nós resolveremos definitivamente as nossas pendências. Fique claro, no entanto, desde já, que, daqui a três anos, novo Ferrareto deverá ser recebido em festas em nosso lar e que, quando eu estiver trabalhando, você é quem irá cuidar deles...

Hoje o avô brinca com os netos na pracinha arborizada da cidadezinha e, às escondidas, compra-lhes o doce proibido pela mãe, mas toma o cuidado de dizer aos petizes para não contarem nada a ela, senão vão ficar sem as guloseimas...
Será que a humanidade um dia se emenda?


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