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Contos-->Apertem os cintos (o piloto sumiu) ! -- 14/06/2003 - 12:35 (Lêda Maria Carvalho da Nova) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Apertem os cintos (o piloto sumiu)!

Todas as poltronas estão ocupadas. Os viajantes agitam-se inquietos, perturbados pela turbulência do vôo. Almir espia pela janela para ver se descobre a causa da agitação do aparelho. O céu está limpo e sem nuvens, mas a aeronave sacoleja inteira. De repente as bagagens de mão são arremessadas para baixo, a porta do sanitário balança e o corredor fica molhado da água que escorre da torneira da pia. A impressão é que as cadeiras estão desprendendo-se do piso. Ninguém mais esconde o medo e o pânico generaliza-se.
A voz oscilante da aeromoça ouve-se através do alto-falante:
- Apertem os cintos porque infelizmente o piloto sumiu, assim como os demais tripulantes.
Ante o inusitado da situação, a reação é de paralisia e de perplexo silêncio. Demoram-se alguns segundos até Almir dispor-se a ir para a cabine do comandante conferir o ocorrido. Quando adentra no compartimento, encontra somente a comissária de bordo chorando copiosamente e confirmando a verdade aterradora de que estão terrivelmente sós.
Instala-se em uma das cadeiras e levanta uma manivela que pende para o chão. O avião obedece ao comando, apruma-se e passa a voar incólume e atrevidamente indiferente ao que acontece no seu interior.
A aeromoça consegue acalmar-se e vai examinar as condições dos outros passageiros.
Almir fica sozinho no pequeno cômodo e lembra-se de que estava há menos de uma hora em solo firme, com um leve desconforto. Não identificou a razão e envolto nos preparativos do embarque desligara-se dos sentimentos. No ar o incômodo retornou e ele teve vontade de conversar; olhou à sua volta e frustrado não encontrou ninguém disponível para a intimidade.
Agora, entregue à própria sorte, a sensação aflitiva retorna. Almir escuta a si mesmo e ouve o eco da solidão. Conhece muitas pessoas, contudo não mantém uma relação onde caiba a revelação e uma comunicação verdadeira nunca ocorreu. Verifica que se morrer neste vôo não tem ninguém para chorar por si. Tem o vislumbre de uma experiência que pode vir a acontecer e delicia-se com o devaneio da leveza de um relacionamento sem jogos.
- É possível - depreende. Anseia por esse estado e constata dele precisar urgentemente. Infere que já começa a sentir a sua falta, neste momento em que sabe que é viável, e é preenchido por uma saudade nova, de uma realidade que conhece somente ao nível da possibilidade.
A imagem do avião solto no ar, sem conexão, retrata o seu próprio isolamento. Aproxima-se do sensorial e constata a ressonância dos movimentos automáticos da aeronave e dos batimentos do seu coração, sinalizando um influxo que puxa em alguma direção.
Olha para o mostrador de horas do painel e vê que ele está parado em sete horas. Pode ser da manhã ou da noite. Não tem importância, vez que está fora dos limites do tempo e do espaço, perdido por entre as nuvens do infinito e da mente. Toma consciência de um profundo terror: da morte e do desconhecido. A emoção lhe é familiar. É a mesma que impede a proximidade com o outro e consigo.
Reconhece a impotência de manusear aquele desconcertante maquinário e descobre que nada pode fazer naquele instante a não ser confiar. Não sabe muito bem em que. O ato parece suficiente por si mesmo e é o oposto do que tem o hábito de fazer na sua contumaz resistência.
Não obstante todo o medo que o assola, Almir assegura-se de que a sua dor está misturada com o prazer. Sente o gozo do orgasmo na antevisão da morte e os admite como expressões máximas da ausência de controle.
Compreende que atravessou a vida rejeitando tanto a experiência quanto os seus significados e o resultado foi o entorpecimento das suas faculdades. Desesperadamente resolve, nesse instante derradeiro, arriscar: entregar-se e romper as muralhas das defesas habilmente construídas; e ir para o novo, no abandono do modelo antigo e aparentemente confortável.
Opta em desistir do temor de aventurar-se por dentro de outra alma, para encontrar refletida a sua, no confronto das contradições, conflitos e angústias - e ver seus defeitos no espelho do igual, no perigo da retirada, pela descoberta do não-belo.
Lembra-se das pequenas mortes diárias, nunca confrontadas. Tem o desejo de fazer um filho, escrever um livro, plantar uma árvore, apaixonar-se. O que quer que seja que lhe dê um sentido de vida, em aparente contraposição à aniquilação.
É possuído da disposição de renascimento e expansão, de aprofundar-se no sofrimento e desarmar-se; resgatar a inocência perdida por entre o azedume dos desapontamentos e dissabores; acolher o ferimento e cicatrizá-lo; e perfilhar-se em sua totalidade e abraçar o outro e o imponderável.
Desvela as suas atitudes idênticas em relação à vida, à morte e ao amor e fica surpreso diante do óbvio não visualizado a tempo.
Recorda-se de Francisca, uma moça que quis a ele se entregar e o seu medo a rejeitara. Aspira reencontrá-la, penetrá-la e permitir ser invadido.
Seus pensamentos são interrompidos pelo trepidar do avião que começa a inclinar o bico, ameaçando despencar.
Deduz que junto com o piloto os seus deuses também desapareceram, numa retirada estratégica de algum movimento estelar como se, ao aprender a caminhar com as suas próprias pernas, a segurança de ser sustentado por elementos externos não mais se fizesse necessário.
Está completamente sozinho, comprova. Entregue ao seu poder e livre-arbítrio.
- É isso que deve ser a liberdade - decifra: a oportunidade de escolher, decidir e agir.
Nota algo emergindo do seu âmago e distingue uma força ao mesmo tempo inusitada e grandiosa.
A aeronave curva-se num grande impacto e sucumbe.
Na queda, Almir deslumbra o mar. Deitada por sobre uma onda está Francisca, a mulher que ele deixou partir. O rosto é o mesmo, entretanto o corpo tem a forma de sereia. Ela lhe acena e entoa um suave murmúrio, o seduzindo a mergulhar na inteireza da sua pele e da maresia.
A água salgada e escura inunda todo o seu corpo e ele percebe que está adentrando nos meandros do inconsciente, do outro e da corrente cósmica, através do mistério da vida-morte-vida e pela primeira vez faz contato com o cerne de sua essência e da criação.
Almir toca em Francisca e fascina-se pelo aspecto meio salamandra desse ser quase selvagem. Entrega-se ao encanto da alquimia do amor. Perscruta os olhos da amante e encontra a reciprocidade da união. Ocorre a partilha, alguma coisa torna-se posse comum e os ossos de ambos fundem-se.
Antes de submergir, Almir reflete:
- Porventura encontrarei imerso o meu particular piloto e o meu próprio Deus?
Estende a mão para a metade-peixe e metade-mulher e os dois firmam o pacto de fazerem a viagem sem garantias rumo ao incógnito.
Ao encontro da morte. Ou da vida.
Quem sabe a resposta? Talvez os deuses (ou o piloto).
Se alguém se atrever a conferir, provavelmente encontrará dois amantes dispostos a compartilhar o processo da vida e do amor.

Leda Nova
(Publicado no livro "Conversa ao pé do ouvido", da autora)
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