A taça que se esvazia
Max era um engenheiro alemão, professor do Liceu de Artes e Ofícios de Salvador, e de quando em vez aportava na pequena cidade vizinha, para rever os patrícios da fábrica de charutos. A sua presença alvoroçava as moiçolas do interior, deslumbradas com o carisma louro e de olhos azuis, em especial a Lolita, que muito embora também belíssima, nem por longe denotava a nobreza do alemão sedutor.
Para a paixão e o casamento foi um pulo e as bodas foram comemoradas com champanhe e muita cerveja entre os amigos alemães e brasileiros.
A felicidade prometia-se eterna e perfeita, até que a segunda grande guerra deflagrou. Matava os jovens combatentes e exumava os fantasmas dos que ficavam em terra também – mesmo naquele final de mundo, a milhares de quilômetros do epicentro do conflito.
Ainda que a água impotável dizimasse crianças desnutridas e a energia elétrica fosse luxo de poucas horas no dia, a população sabia de todos os detalhes da guerra, ávida e mórbida na escuta dos poucos aparelhos de rádio da cidade.
Nos idos de 1942, o nacionalismo exacerbou-se e absorveu a alma do povo; e a captura dos inimigos tornou-se um ato de fé: todo alemão era um traidor em potencial, suspeito de monitorar os torpedeamentos dos navios mercantes brasileiros. Bastava uma simples acusação e qualquer alemão era preso, sob pancadas da polícia e aplausos dos vizinhos.
Max seguia sua vidinha, tranqüilo e feliz ao lado da amada. Introspectivo, permaneceu meio alheio ao turbilhão exterior, nem ao menos se preocupando em falar fluentemente o português, não obstante o seu saber.
Enquanto isso, um desvario há muito adormecido julgou-se sem risco para florescer e a paranóia venceu a batalha interior: Lolita achou patriótico denunciar o marido como espião. Disse à polícia que Max, pelo rádio, enviava mensagens aos submarinos, fornecendo as dicas para torpedear.
Max foi preso, mesmo sem possuir sequer rádio transmissor, vindo a morrer em conseqüência das torturas. Antes e em depoimento na polícia, só teve chance de falar: - É mentira. Não sou espião. Minha marida é doente!
E Lolita vive até hoje, em um manicômio impessoal.
Esta é uma história real, tal qual a taça que hoje ameaça novamente esvaziar-se.
Em 11 de abril de 2003.
Lêda Nova.