Salvador, 11 de novembro de 2002 – 23h05
Andorinha lá fora está dizendo:
— ‘Passei o dia à toa, à toa!’
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…”
Andorinha - Manuel Bandeira
Hoje acordei com um grande tédio da vida.
Estou com tédio de acordar tarde
Não por gosto
Mas por ter corpo exausto.
Estou com tédio das aulas na universidade
Por não querer ter só
Um diploma na parede
E um salário qualquer
De R$ 4.000,00 .
Estou com tédio de trabalhar por salário
Sem responsabilidade social.
Estou com tédio da fera solidão,
De rolar sozinho na cama,
Noite avançada em hora
Sem carinho e amor feminino.
Estou com tédio de meus queridos pais,
Meus amados e tristes pais,
Liliputianos que prendem Gulliver
E não o deixam mais crescer.
Estou com tédio as horas que passam
Dos minutos que passam
Dos segundos que passam
Insones e dos dias vazios.
Estou com tédio dos ônibus que atrasam
Tédio dos relógios de pontos
Tédio das nuvens que cobrem a lua
E impedem o luar banhar o mar.
Estou com tédio dos reality-shows na TV,
Do pseudojornalismo policial,
Dos terríveis programas dominicais
Que não fala nada de novo
E as novelas mexicanas made in USA.
Estou com tédio do exame anual de colsterol
Do artigo médico na TV,
Da última dieta das estrelas,
Do diz-que-me-diz suburbano,
Da fofoca provinciana.
Estou com tédio do carnaval baiano
Para turista ver e rebolar e se iludir.
Estou com tédio do clã Bush invadirem o Iraque
Para descontar em Saddan Husseim
A mediocridade americana.
Estou com tédio da minha conta corrente sem saldo
Dos juros do cheque-ouro
De deixar nos cofres bancários
Um pouco do meu sossego
E de minha fadiga como pagamento.
Estou com tédio d acordar e estar vivo
E ter de passar pela roda-viva,
Vivendo no piloto automático
Ou melhor, ser um fantoche do mercado
E da escravidão das grandes cidades.
Estou com tédio das noites de Sexta-feira
No qual vejo perdida
Mais uma semana
Sem ter construído minha vida
Ou ter sido útil ao meu próximo.
Estou com tédio do release protocolado
Carimbado e tributado.
Do boletim diário sem vida,
Do escrever mais um texto frio
Perdido no entulho da memória.
Estou com tédio de todos os sonhos frustados,
De não ter feito pesquisa,
E não ter viajado para Paris,
De não ser habitué do TCA,
De não viver a história,
De ser o pobre camponês
No quadro de Pedro Américo.
Estou com tédio enorme de ser 100% Ricardo Vial
De ver meus versos amontoados,
E não ter escrito um único romance,
De não ter vivido um grande romance,
Não ter redigido um único ensaio,
De ser só uma promessa.
Estou com tédio a falta de romantismo autêntico,
De não haver mais virgens nos sobrados,
De minha ex-namorada, de meus amores
Não viverem em um sobrado,
De não ter amigos para serenatas.;
Todos, desafinados, esqueceram
A doce boêmia da madrugada,
Tédio das noites sem serenatas.
Estou com tédio da velhice chegando célere,
E ver meus amigos casando,
Procriando, barriga aumentando
E não termos vivido loucuras,
Jovens e audazes aventuras,
Gostosas e pueris travessuras.
Estou com tédio enorme, tédio voraz,
Gigante de ter vivido em vão…
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