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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->BATUCADA DA VIDA -- 28/07/2004 - 12:58 (Marco Antonio Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
BATUCADA DA VIDA
Uma homenagem a Ary Barroso e Luiz Peixoto


-Tira essa criança! Eu disse que era pra tirar essa porra! Porque você não me ouviu, hein? Agora se foda sozinha, não me procure mais.
Batista deu as costas para Cleide e sumiu na noite da cidade, depois de dobrar a esquina do Cruzeiro de São Francisco e descer em direção à Baixa dos Sapateiros.
Grávida de nove meses, largada à toa pelo companheiro, Cleide veio atrás dele, proveniente da cidade de Alagoinhas. Não tinha um tostão e agora, para completar sua desdita, entrava em trabalho de parto, no meio da rua de uma cidade que ela não conhecia, nem tinha qualquer pessoa conhecida, senão o cafajeste que a emprenhou e depois desapareceu para curtir a vida boa de solteiro na capital.
Descendo por uma estreita rua que se liga à praça, Cleide é amparada por umas putas que por ali faziam vida.
Levada para um quartinho atrás de um bar, ela dá a luz uma garotinha, nascida sobe o estigma da desgraça, sua mãe não resistiu ao parto e morreu em seguida.
No bar, bebida e cantoria, a vida levada adiante por quem somente queria divertir-se para esquecer de todo o resto.
Uma branquinha para limpar a mente cheia de problemas, o leite que não comprou para as crianças, o chefe que persegue no trabalho. Os homens ali querem anestesiar a vida e se aliviar nos braços das putas que fazem tudo que suas mulheres não fazem em casa.
Uma fuga, uma válvula de escape, e toda aquela festa, toda a algazarra vai num crescendo de euforia e desastre, até que um desentendimento qualquer, no balcão, deflagra a briga, peixeiras navegam nas tripas de uns, socos derrubam outros, carteiras afanadas no calor da contenda, quebra-quebra e a polícia aparecendo para prender todo mundo e ganhar uns trocados também.
A garotinha sem nome chora, faminta pois sua mãe morreu antes que ela pudesse sugar algum alimento de seu corpo. A sorte virou-lhe a costa no momento mais crucial de sua iniciada existência.
Na confusão a coitadinha foi deixada ao lado do cadáver da mãe, enquanto as mulheres da vida que ajudaram-na a nascer, procuravam agora fugir de uma provável e dolorosa prisão.
Uma puta velha chamada Bartira encontrou a chorona criança e a carregou daquele inferno.
Bêbada, trazia em sua mão uma garrafa de caninha, que tragava sôfrega, enquanto cambaleava pelas vielas escuras e escorregadias, devido ao insistente chuviscar das frias noites de julho.
Bartira ouvia o choro da pequena, nua, enrolada num pano de prato que ela roubara da cozinha do bar, e lhe pedia para parar de chorar, colocando o dedo indicador entre os lábios e emitindo um "chiii" quase inaudível.
Quando não conseguia mais andar, ela simplesmente se apoiou numa parede velha e escorregou até sentar-se no chão. Acomodou a pequena criança em seu colo e encostou a boca da garrafa em seus lábios, ansiosos por alimento. Entornando a bebida, percebeu que a criança, embora rejeitasse o líquido inicialmente, acabou por aceitar a oferta e ingeriu a aguardente, até dormir, por ter ficado embriagada.
O resto da noite vigiou as duas criaturas infelizes. Uma no início de sua jornada de dores, outra já chegando a ponto de partida para um lugar melhor que aquele vale de lágrimas e miséria.
A manhã veio encontrar Bartira com uma tremenda ressaca, enquanto a pequena, encolhida em meio aos trapos sujos de sangue do parto, mexia pra lá e pra cá, possivelmente também de ressaca.
Os estômagos das duas, verdugo implacável, cobravam a sua paga diária.
Bartira olhou para o colo e se assustou.
Não lembrava de muita coisa, pra dizer a verdade não lembrava de nada, mas aquela criaturinha em seu colo, chupando dedo como forma de disfarçar a fome, encheu seu coração de piedade e afeição.
Bartira não conheceu uma vida afetiva.
Na infância vivia no sertão do Ceará, numa família pobre e numerosa. Afeição era um luxo, assim como a comida.
Sua mãe, já muito velha quando ela nasceu, não tinha mais paciência para cuidar dela, transferindo a tarefa para a filha mais velha. Depois de alguns anos, cansada da miséria que não oferecia nenhuma perspectiva de vida, pois dos vinte e oito irmãos, treze já haviam morrido quando ela fez doze anos, Bartira fugiu com o pessoal de um circo mambembe que passara pelo lugar.
Do início de sua jornada até aquele momento, passara toda sorte de privações, com as quais já estava acostumada desde o berço, e fora alvo de humilhações e perversidades cometidas por tantas pessoas, quantas cruzaram seu caminho.
No entanto ela guardara no coração um punhado de compaixão e amor, aprisionado desde que era criança, por conta de uma cadelinha que fizera a alegria dela e de seus irmãos, até o dia em que, sem nada para comer, a cadelinha foi parar na panela para matar a fome da família.
Ninguém queria comer a bichinha, mas quando o estômago falou mais alto, o coração obedeceu e as lágrimas de desconsolo das crianças cederam lugar à conformação pelo flagelo e o agradecimento por poder viver mais um dia.
Esse amor aprisionado no coração da Bartira agora quase a afogava, em grandes soluços que não conseguia conter.
Abraçou a pequena criatura e apertou-a contra o peito, enquanto deixava a cabeça vazia das grandes preocupações e se atinha apenas no amor que transbordava de sua alma e parecia vivifica-la naquele mágico instante.
Ela jogou fora a garrafa vazia e se levantou com alguma dificuldade e carregou dali a pequena garotinha, ainda sem nome.
Mais adiante, num boteco perto da Praça da Sé, entrou e foi logo fazendo a algazarra.
- Torca, olhe aqui o que você me fez!
- Sai pra lá véa vagabunda!
Torca era como atendia o velho português chamado Torquato. Grande coração, sempre trocava uns serviços domésticos de Bartira por um prato de comida, quando ela não descolava um cliente na zona.
Agora que ela estava ficando velha, isso se tornava quase rotina.
Vez ou outra o Torca, bem mais velho que ela, se arriscava a dar uma com a velha puta, mas era só pra aliviar, pois ele não tinha vontade de substituir a falecida esposa, Carmela, do seu coração e de sua casa, Mas quando viu Bartira agarrada com aquela recém-nascida, ele se assustou.
- Tais a ficar louca, ó Bartira? Qué qui tu faiz com esta pequerrucha nas mãos?
Ela não sabia de fato, mas agora estava feliz, pois aquela era a primeira vez que segurava uma criança em seus braços, viva.
Em sua profissão, por vezes se viu obrigada a abortar, e a única vez que decidiu ter a criança que trazia no bucho, ela nasceu morta. Era também uma garotinha, que somente encheu de amargura a vida daquela mulher, que bem poderia nunca ter existido.
Mas agora seria diferente.
- E qual é o nome desta coisinha? Já deste um nome para ela?
- Anja!
- Anja? E isso lá é nome de gente? Parece nome de cachorro.
- Pois é mesmo! Este era o nome de minha cachorrinha, quando eu morava no sertão.
- Você é louca, uma louca adorável e muito boa, Bartira. Queres ganhar um prato de feijão hoje? E um mingau para a Anja?
O coração de Torca era mole como sua barriga, mas ele tinha medo de dar guarida definitiva para Bartira, que já lhe havia roubado uns trocados algumas vezes.
Pelo menos no primeiro dia de vida da pequena Anja, um mingau já estava garantido.
Anja crescia, bonitinha, esperta e atenta ao mundo que lhe cercava.
Embora considerasse Bartira como sua mãe - assim ela a chamava - o fato desta manter-se bêbada diuturnamente, de algum modo afastava a garotinha. Torca era como um anjo da guarda para as duas, e Anja o chamava de padrinho.
As duas dormiam sob o viaduto da Praça da Sé, depois que as casas comerciais fechavam as portas começava o movimento de desvalidos, cada um arrastando consigo caixas e mais caixas de papelão, com as quais improvisavam abrigos para a noite.
Os poucos pertences estavam sempre à mão, embrulhados em sacos plásticos.
Assim acabavam as putas velhas, sem clientes, e assim começavam as putas novas, como deveria ser o destino de Anja.
Em breve deixaria a vida pueril de pedinte nas ruas do centro, e as aventuras de surrupiar os passantes distraídos pela atividade de profissional do entretenimento sexual.
Mas enquanto a vida não lhe cobrava um preço mais caro pelo seu simples existir, lá ia Anja, maltrapilha, suja e piolhenta, percorrendo com outros pivetes, as tristes ruas do centro velho da cidade, evitando a custo da presença da polícia, as ruas mais chiques de comércio, a Rua Chile e a Avenida Sete de Setembro. A Baixa dos Sapateiros era seu domínio, assim como suas adjacências.
Pedindo esmolas ela descolava uns trocados, dava uns espetos nos vendedores ambulantes de pastel e coxinha que ficavam na Praça dos Veteranos, e assim comia de vez em quando. O dinheiro angariado era entregue a Bartira, que quase sempre torrava tudo na cachaça, que também servia à pequenina, nas noites mais frias.
Torca ainda lhes oferecia comida em troca de trabalho, mas elas somente apareciam quando o negócio estava fraco.
Bater carteiras e cortar as bolsas das mulheres distraídas, notadamente das interioranas que passeavam na capital, era tarefa para os meninos mais velhos, mas os menores estavam sempre por perto para aprender as técnicas e algumas vezes se arriscavam a por em prática o que haviam aprendido. Por serem menos experientes, muitos acabavam apanhados pela autoridade e desapareciam por algum tempo, depois voltavam ao convívio, com algumas escoriações e até fraturas, prontos para recomeçar, com mais cautela.
Mesmo com toda essa dureza de vida, a infância desses infelizes meninos e meninas ainda guardava espaço para um pouco da inocência que animava seus poucos momentos de descontração. Brincadeiras comuns, como pique-esconde e amarelinha distraiam as mentes e os estômagos nos longos sábados e domingos, quando aquela área da cidade ficava entregue somente aos marginais, pois sem comércio aberto, não haviam os transeuntes que poderiam lhes proporcionar uma esmola ou um furto qualquer. Os domingos eram ermos, envoltos nos perigos proporcionado pelos indivíduos mais malvados do grupo, que extravasavam suas angústias e despeitos sobre os mais fracos, em surras, estupros e até assassinatos.
Quando aqueles garotos e garotas conseguiam um dinheirinho extra, partiam como um enxame de moscas diretamente para a confeitaria que se situava no alto da ladeira da praça, lado a lado com a câmara de vereadores. Lá ficavam, com os rostos sujos colados na vitrine, olhando as tortas e bolos confeitados, tão coloridos, que estavam tão perto e significavam algo tão distante para eles. Esperavam a casa estar vazia para entrar, sem correr risco de serem enxotados pelos empregados do estabelecimento, que temiam a perda dos clientes diante de uma invasão dos pivetes. O dono mesmo já os advertira, que não venderia nada a eles se houvesse um pé de pessoa dentro da loja, mas quando estava vazia, aceitava aqueles pequenos clientes miseráveis, que compravam as bobagens que sempre encantam o apetite das crianças: Pirulitos e balas, marias-moles, broas, bolinhos e sonhos.
Mas naquele dia eles haviam tirado a sorte grande, pois numa lanchonete perto da Barroquinha uma mulher esquecera a bolsa, e os moleques, atentos a todos os movimentos, encontraram uma boa quantia em dinheiro. Depois de dividirem com os mais velhos, que sempre estavam por perto, sobrou um bocado de dinheiro, que um deles disse ser suficiente para uma festa de aniversário.
- Mas aniversário de quem? Perguntou um menininho quase nu, trajando apenas um sujo calção folgado.
- É o aniversário da Anja! Falou a menina mais velha do grupo, que começava a ganhar peitos e tinha uma afeição quase que materna pela pequena.
E lá se foram eles para a tal confeitaria comprar um bolo de aniversário - inteiro - para a festinha da Anja.
O dono da casa comercial estava lá, e ficou nervoso quando os moleques entraram, um tanto desconfiados, no recinto, mas a menina mais velha foi logo dizendo: "Eu tenho dinheiro aqui, moço. Queremos comprar um bolo inteiro, um bolo de aniversário."
O homem deu um sorriso meio sarcástico e perguntou se eles sabiam quanto custava a iguaria que desejavam adquirir.
Para surpresa do sujeito, o dinheiro dava, e ainda sobrava, mas ele quando viu o quanto aqueles meninos carregavam falou com ar de reprovação: "Vocês andaram assaltando um banco?"
Dali a alguns minutos, os meninos saiam da confeitaria carregando um bolo enorme, todo confeitado de glacê de açúcar, cor-de-rosa, com os dizeres "Feliz Aniversário", para festejar o suposto nascimento da pequena Anja, que nem sabia exatamente quando nascera nem quantos anos tinha.
O tempo conferia a Anja um corpo de moça, jeitosa, apesar da miséria. Isso despertava nos garotos de rua um crescente desejo. A vida deles era isenta de restrições morais, ficando sempre no final das contas cada um por si, como reza a tal lei de muricy.
Não raras vezes eles se atiravam desafiadores e licenciosos, atiçados pela libido que começava a se descontrolar, com a chegada da adolescência. Agora os meninos andavam mais com outros meninos, enquanto as meninas se distanciavam, em um grupo à parte, preferindo a companhia das putas mais velhas, como a querer aprender com a observação das mestras do sexo nas ruas de Salvador.
Os dias de verão eram quentes e preguiçosos, mas a alegria daqueles meninos e meninas estava no banho que tomavam nas velhas fontes da cidade, que ninguém, senão os desvalidos, mendigos e marginais, freqüentavam. Uma delas fica na velha Ladeira do Hospital, atrás do convento da Misericórdia, onde funcionara por muito tempo a Santa Casa, o mais velho hospital da cidade.
Naquele lugar escondido, debruçado sobre a cidade baixa, e aberto para a Baía de Todos os Santos, eles se banhavam, e nessas ocasiões começavam os jogos sensuais em que uma ânsia exibicionista tomava conta dos meninos e também das meninas. Anja se via constantemente assediada pelos meninos que sempre que podiam tocavam-lhe as partes íntimas, mormente os peitinhos de menina-moça que começavam a despontar audaciosos, apontando para uma vida liberal e promíscua. Mas a menina não se sentia à vontade diante daquelas investidas, e sempre brigava, às vezes atacava seus assediadores com porretes ou pedras, e se valia da proteção das meninas mais velhas, mas estas estavam mais interessadas em se atirar ao sexo, do que fugir dele.
À noite ela ficava atenta aos movimentos ao redor, quando meninos e meninas mais velhos mantinham relações sexuais sob placas de papelão, no abrigo improvisado embaixo do viaduto. Outros meninos se masturbavam bem perto dela, acompanhando a movimentação dos mais velhos, e muitas vezes se iniciavam uns com os outros, abusando dos menores, que começavam a desenvolver atitudes violentas, como reação aos estupros sofridos.
Anja não escaparia deste destino, pois uma noite, quando estava sozinha, sem a companhia da velha Bartira, foi dominada por três outros garotos que a violentaram e a espancaram.
A coitada, seminua, vagou pelas ruas, sangrando muito, até chegar ao boteco do Torca, que penalizado a socorreu.
Já era tarde, e Bartira, que sempre passava pelo boteco, ainda não tinha dado as caras, o que começou a preocupar Anja, até que o velho portuga se dispôs a ir procura-la nas ruas próximas, pois podia estar caída em alguma sarjeta, bêbada como sempre.
Não tardaram a encontra-la numa ladeira que ficava ao lado do cine Pax, um cinema que pertencia à Ordem Terceira de São Francisco e que era ponto de encontro para prostitutas e homossexuais, uma vez que sua programação era quase que exclusivamente de filmes pornográficos.
Deitada sobre os paralelepípedos que calçavam a via, maltrapilha e com uma garrafa de pinga vazia, evidentemente, jazia a pobre criatura. Nenhum transeunte se dispusera a ajudar, limitando-se a olhar e passar ao largo, balançando as cabeças reprovadoramente.
Anja correu em direção à coitada e ajoelhando-se junto à sua cabeça, procurava ver se ela estava bem, mas logo percebeu que algo não estava certo. Seus olhos súplices se dirigiram para Torquato, como a pedir que ajudasse aquela criatura que se fizera de sua mãe, bem ou mal, foi a única pessoa que teve para ela um sentimento maternal, que foi a força que a fez carregar sua cruz, até com um certo destemor, num ambiente por demais violento e desumano.
O velho português se abaixou e procurou pelos sinais vitais de Bartira, mas ela estava gelada, dura como pau, morta.
- Não mais o que fazer aqui, menina, ela já está morta faz um tempão.
Anja não queria abandona-la, chorou muito, procurando aconchega-la em seu colo, mas de nada adiantava aquilo, Bartira já se fora.
Uma confusão começara ali perto, na Baixa dos Sapateiros, quando a polícia perseguia dois assaltantes, disparando tiros pra todo lado. Torca agarrou a menina pelo braço e levou-a consigo, arrastando-a e a si mesmo, ladeira acima, para escapar do tiroteio.
- Onde vozes ficavam, menina, você e Bartira?
- Nós dormíamos embaixo do viaduto da Praça da Sé? Porque?
- Veja bem, você já foi até estuprada, só porque a Bartira não estava lá pra te defender. Agora com ela morta, a coisa vai ficar preta pra ti. Queres uma guarida no meu boteco? Você pode trabalhar pra mim, não tenho dinheiro pra te pagar, mas posso te garantir comida e teto. O que achas?
Anja não tinha muito o que dizer, sabia que precisava de ajuda, e não pensou duas vezes. Seguiu com Torca, pra morar em seu boteco.
O carnaval parece zombar de toda a condição humana, liberando o mais recôndito ridículo que se guarda no fundo da alma, para mostrá-lo nas fantasias e exacerbações que a época permite, sem que olhares reprovadores aprisionem novamente a parte mais louca e inconseqüente de cada ser.
Os blocos e batucadas cruzavam a Praça da Sé, animando os moradores e transeuntes da região. O carnaval de outros tempos era mais tranqüilo que os novos, pois a marginalidade a que fora entregue a população do centro velho da cidade favoreceu a formação de criminosos, ladrões e traficantes, que usavam os velhos pardieiros que se estendiam desde a Praça da Sé até o bairro de Santo Antonio Além do Carmo, como esconderijo e moradia, sendo acoitados pelos moradores, muitos deles parentes destes malfeitores, que dividam entre si a condição degradante da miséria urbana.
Anja vivia desde a morte de Bartira, na casa do padrinho de consideração, Torquato. A casa de Torca se confundia com seu boteco, duas portas sempre abertas numa ruela antiga e suja davam para um interior com aspecto degradante. Escuro, devido à altura do cômodo, paredes pintadas em azul, manchadas pela umidade e pelas infiltrações, tinha colado cartazes da cerveja Carlsberg e de Coca-Cola. Algumas mesas de madeira, parcialmente cobertas por toalhas plásticas com desenho xadrez, coloridas de vermelho e branco, se espalhavam sem muita ordem sobre o velho piso de tabuleiro preto e branco. Um velho balcão separava uma velha geladeira Champion e um fogão da área dos fregueses. Pendurado na parede, um chifre de boi de onde saiam folhas da "Espada de Ogum", ficava logo acima do quadro de São Jorge, como a proteger a casa, na passagem lateral ao balcão.
O velho Torca servia suas bebidas misturadas com folhas e outras coisas, além de tira-gostos preparados na hora, para seus fregueses, e na hora do almoço sempre havia o "PF"que os moradores da área não deixavam de apreciar, pois era preparado por uma preta quituteira, que vendia cocada e outras guloseimas pelas ruas da cidade, mas ganhava uns trocados cozinhando, e bem, para o velho português, fazendo do boteco do Torca um lugar popular, também pela hospitalidade e alegria com que o velho recebia seus fregueses.
Uma porta tosca dava acesso a um longo corredor onde ficava o sanitário e mais três cômodos que serviam de sala e quartos para o português, que migrara para o Brasil com seus vinte e poucos anos trazendo consigo a jovem esposa Carmela e um filho, que não chegara vivo ao país. A vida dura do casal e a doença que deixara Carmela fragilizada, devido a perda do menino, impediram que eles tivessem outros filhos. Por fim viúvo, Torquato se enamorou de uma bela mulata que parecia estar interessada em casar-se com ele, mas ela era sem vergonha e enchia a cabeça do coitado de chifres de toda espécie.
Para ele era o fim. Não queria mais nada sério com mulheres, preferindo manter relações com as putas, que se alastravam pela região, do que se casar e passar pelo vexame de encontrar um homem em sua cama, traçando sua mulher, como fizera a mulata que o enfeitiçara alguns anos antes. Ele colocou os dois para fora debaixo de porrada, mas chifre tomado não se tira, e a marca daquele acontecimento ele carregava até hoje.
Durante o carnaval ele preferia manter o boteco fechado tão logo anoitecia, porque a vagabundagem era muito grande naquelas ocasiões, e o policiamento era muito acanhado.
Anja varria a soleira da porta, e de vez em quando parava para ouvir a música animada tocada pelas bandas que passavam na Praça da Sé, seguidas de foliões fantasiados de careta. Nos censurados anos setenta o carnaval da Bahia vinha mudando rapidamente, principalmente depois que Dodô e Osmar inovaram, criando o agora famoso trio elétrico. Há versões que afirmam mesmo ter havido uma simultaneidade na invenção da guitarra elétrica. O fato é que desde os anos sessenta o baiano quer mesmo é pular feito pipoca atrás do trio elétrico, cantando, suando e bebendo cerveja, namorando as morenas da terra e as turistas branquelas, cada vez mais freqüentes, e caindo de cabeça nas confusões que sempre acontecem nesses ajuntamentos, quando se bate em qualquer um e se apanha de quem quer que seja, e fica tudo por isso mesmo.
Os garotos e garotas que conviveram com Anja sob o viaduto de sua infância agora eram rapazes e moças. Muitos haviam sumido, levados pela morte prematura ou pela prisão por delitos nas ruas da cidade. Muitas garotas já eram agora putas feitas, mas Anja parecia estar imune, devido à proteção do velho Torca. Mas ela não esquecia dos antigos amigos e amigas, e não rejeitava ninguém por sua condição.
Um dos garotos, apelidado desde há muito como Tico, sempre dedicou um grande carinho para Anja, e agora que afloravam para a vida adulta, podia-se perceber que ele muito a desejava, mas não tinha muito jeito para travar um diálogo mais romântico com a velha amiga, que muitas vezes o fazia de confidente.
Tico também logrou escapar da marginalidade, indo auxiliar um engraxate do Terreiro de Jesus que fora com a cara dele, e agora vislumbrava grandes possibilidades, sonhador que era, pensava em trabalhar e formar sua família, a família que nunca teve, ao lado de Anja.
Tico sempre passava na porta do bar de Torca, quase sempre tinha um pretexto para lá entrar, nem que fosse só pra tomar uma pinga. O que ele queria de fato era ver a pequena garota, agora despontando como mulher, cheia de encantos, mesmo que as marcas de sua difícil infância teimassem em permanecer no seu semblante, sempre carregado.
- Anja, vamos lá na frente um pouquinho, vamos ver os "Inocentes". Tico insistia, mas ela não estava muito interessada na festa. Anja tinha outras idéias na cabeça.
- Vá você Tico, não quero me meter naquela bagunça.
- Quem te vê falando assim pensa até que você não é daqui. Onde já se viu baiana não gostar de carnaval?
- Olha quem fala! Muito me admira você, que só pensa em coisas sérias, agora vir aqui me chamar para pular carnaval. Eu é que estou te desconhecendo.
- Sabe o que é Anja, você é minha amiga, e eu sempre te vejo triste, que pensei em te fazer sorrir, com um pouco da alegria das ruas.
- Muito obrigado por pensar em mim como sua amiga. Eu também te quero muito bem.
Tico engolia aquelas palavras com dificuldade. Como fora burro! Porque não tinha coragem de confessar que a amava?
- Anja, você pode me servir uma branquinha?
- Claro! Entre.
Mais de uma vez ele tentara tomar coragem, junto com um copo de cachaça, mas nada. No entanto, sentia que agora poderia conseguir.
A caninha desceu queimando por sua garganta, mas não sem antes ser reverentemente dedicada ao santo, como rezava o costume.
- Vou querer outra!
- Vai se embriagar, é?
- Sente um pouco comigo, Anja. Quero contar-lhe algo.
Ambos sentaram-se à mesa. O bar estava estranhamente deserto naquele final de tarde da terça-feira momesca.
Tico dirigiu seu olhar mais expressivo para Anja e começou seu ensaiado discurso.
- Todos nós temos sonhos. Eu também tenho. Penso em sair das ruas, conseguir um trabalho melhor. Até me matriculei no Mobral! Sinto que vou conseguir ser alguém, e quero mais que tudo ter minha família.
Nesse momento Anja interrompeu Tico, pois pressentia para onde a conversa estava indo.
- Você é um bom moço, sonhador sim, mas com os pés plantados no chão. Sei que vai conseguir tudo que quer, mas deve ir embora daqui. Este lugar é como visgo, nos prende, mantém uma corrente invisível amarrando cada um de nós a um destino só.
- Eu quero sair daqui, mas quero levar alguém comigo, para dividir meus sonhos.
Nesse momento passavam dois policiais na porta do boteco, fazendo a ronda de Cosme e Damião. Um deles olhou para dentro e abriu largo sorriso para Anja, que também o retribuiu como nunca havia feito para com outros rapazes, inclusive Tico, que percebeu e se aborreceu com aquilo.
- Você está namorando o cabo Anselmo? Perguntou Tico com ar despeitado.
- Quem me dera, Tico. Respondeu Anja com perfurante franqueza. Ele me flerta, mas sei que não quer nada sério comigo. Sei até que está noivo de uma fulana da Saúde. Mas eu sinto por ele uma afeição profunda. Acho que estou apaixonada.
Nesse momento Tico bateu com o copo na mesa e pediu mais uma dose. A saideira, como disse.
- Não se aborreça comigo, Tico. Nós não amamos a quem gostaríamos de amar. muitas vezes amamos a que não nos merece, mas fazer o que.
- Fique comigo! Falou corajosamente o jovem engraxate.
- Beba sua pinga e se vá. Está na hora de fechar o bar.
Anja sabia que tinha partido o coração de Tico, mas era melhor assim, do que ficar alimentando fantasias que poderiam feri-lo muito mais.
Desde que ela viu o cabo Anselmo pela primeira vez, experimentou uma sensação especial em seu viver. Por um breve instante ela sentiu felicidade.
Seu coração bateu mais forte por aquele homem que tinha sorriso fácil e um jeito brejeiro, e que ao perceber sua emoção, soube falar-lhe direto ao coração, do jeito que as mulheres gostam.
Anselmo era noivo, e não tinha como esconder tal fato, pois mais de uma vez Anja encontrou-o na rua com a moça que ele prometera desposar.
Mas as coisas eram muito simples na cabeça de Anselmo, que rapidamente conquistou a simpatia do Torca, e tanto fazia se estivesse de serviço ou de folga, sempre aparecia no boteco para tomar uma folha podre ou um jiló, como chamavam as cachaças de infusão que Torquato preparava para seus fregueses.
Nessas visitas, ele não deixava por menos. Fazia a corte escancaradamente para Anja, que se desmanchava toda com os galanteios e os carinhos que o rapaz lhe fazia.
Não demorou muito e Anselmo seduziu a garota, levando-a para uma casa de tolerância, onde alugou um quarto por algumas horas, para manter com ela relações sexuais sem qualquer tipo de preconceito, o que ele não conseguia com sua noiva.
O fato de Anja não ser mais virgem, parecia não incomoda-lo, mas machista como era, sempre que estava numa roda de amigos, deixava claro que somente se casaria com uma mulher zero kilômetro, o que deixava Anja para a condição de filial.
A moça, mesmo sabedora dessas coisas, preferia se iludir, pois era mais fácil achar-se amada do que usada. Não que Anselmo não a amasse, mas do jeito dele, sem ter que assumir compromissos.
Ele era cuidadoso para não engravida-la, numa época em que esse tipo de coisa ainda era tabu, cuidava para que ela usasse pílulas anticoncepcionais.
Torquato a advertira diversas vezes que era melhor ela procurar uma pessoa disposta a assumi-la. Uma pessoa de bem, como o Tico. embora ele não tivesse nada, tinha caráter, e um bom coração. Anselmo somente queria se divertir com ela, e esse relacionamento não levaria a nada.
- Se você fosse filha da Bartira de verdade, eu diria que você herdou dela essa cabeça dura. Dizia Torquato sempre que o assunto entre ele e Anja era sobre o Anselmo.
Naquela tarde Torquato não fizera outra coisa senão dormir. Bebera a manhã toda e não agüentou ficar acordado até o momento de fechar o bar. O movimento atipicamente fraco fizera com que ele decidisse se recolher mais cedo. Anja ficou tomando conta do negócio, e depois que despachara Tico, começou a fechar o estabelecimento, para também ir dormir.
Foi quando Anselmo retornou, desta vez sozinho, e pediu para que ela deixasse ele entrar, pois precisava falar-lhe.
Ela hesitava, pois Torquato estava dormindo e não gostava de estranhos no boteco depois de fechado, mas como Anselmo insistisse muito, ela por fim cedeu.
Ele começou a envolve-la, tanto na conversa macia quanto nos abraços e beijos, até deixa-la no ponto de abate.
Uma vez era pouco, e não foi satisfatório, Anselmo queria mais dela, e haveria de conseguir tudo naquela terça-feira de carnaval.
Não adiantou nada Anja esboçar alguma resistência, pois ela mesma queria muito aquele homem, e não via porque resistir mais. Entregou-se finalmente, mais uma vez, cedendo às fantasias do policial, que a levou para a cama, no quarto que era contíguo ao de Torca.
Fornicaram a noite toda, tomando cuidado para se manterem silenciosos, de modo a não acordar o dono do boteco, que roncava alto.
Quando Anselmo se decidiu ir embora, Anja parecia querer pedir-lhe que ficasse, que ficasse com ela, mas as palavras não saiam de sua boca, quando ele virou-se e disse:
- Essa foi a saideira, pelo menos por enquanto, pois vou me casar no sábado e não poderei vir te ver por algum tempo, até o assanho de recém-casada de minha mulher se aplacar.
Aquelas palavras machucaram Anja, que começou a chorar e se amuou num canto da cama, com a cabeça entre os joelhos.
Anselmo pediu-lhe a chave, pois o Torquato poderia acordar a qualquer instante e não gostaria de encontra-lo ali.
Ela lhe deu a chave, e não se moveu do seu canto.
Quando Anselmo estava a destrancar a porta, Torquato levantou atordoado, acreditando tratar-se de um ladrão, e de posse de uma arma, começou a atirar, sem porém acertar o alvo.
Anselmo abaixou-se, sacou sua arma e atirou certeiro no coração do velho, que estrebuchou atrás do balcão, enquanto Anja, ao ouvir os tiros saiu do quarto gritando, mas não foi rápida o suficiente para impedir a tragédia. Encontrando o corpo de Torca ensangüentado, atirou-se sobre ele, como a querer salva-lo, mas já era tarde.
Anselmo, confuso, tratou de se retirar dali, enquanto moradores começavam a chegar, para acudir aos gritos da garota, agra desconsolada ao lado do "padrinho" morto.
O rabecão veio retirar o corpo quando já amanhecia.
Anja deu seu relato aos policiais, informando terem sido assaltados, quando Torca reagiu e foi morto pelos ladrões.
Depois de liberada ela seguiu para o Instituto Médico Legal, que funcionava ali perto, no velho prédio da faculdade de medicina, perto do Pelourinho.
Era facilmente identificável pelo forte odor de cadáveres em decomposição, que não poucas vezes invadia a rua, indignando moradores e passantes.
Ela recolhera todas as economias de Torca, visando lhe dar um funeral digno, mas um dos agentes funerários que ficavam quais urubus em carniça, cercando o necrotério, aproveitou-se da jovem meio confusa e, tomando todo seu dinheiro, desapareceu. Torquato teve um enterro de indigente, num canto qualquer do cemitério das Quintas dos Lázaros, debruçado sobre uma favela. Do outro lado do muro, mausoléus ricos e requintados, como se a podridão dos mortos pudesse diferir daqueles palácios lúgubres ou das covas rasas, que os cachorros cavavam para fazer dos defuntos enterrados sem caixão, uma refeição ligeira antes que os coveiros os espantassem, isso quando o faziam.
Somente Anja acompanhou o velho Torca até sua última morada.
Era uma tarde de quarta-feira, de Cinzas. Uma tarde estranhamente cinzenta para a época do ano. O céu se fechara de vez para aquela criatura. No ar um forte odor de ossos queimados, que vinha da fornalha do cemitério. Anja seguiu meio sem querer para o boteco, seu lar. Não sabia direito o que fazer. Não sabia ler ou escrever, não poderia levar o negócio adiante, achava que se daria mal.
Pensou em Tico, que horas antes dos terríveis acontecimentos que lhe mudaram o destino, lhe acenara com uma possível felicidade. Pequena e acanhada felicidade, mas ainda assim seria uma.
Chegou no bar quando já estava tudo escuro. Percebeu que deixara a porta aberta, e que fora irremediavelmente roubada. Tudo estava revirado. Ainda encontrou alguma coisa para comer, num armário escondido nos fundos. Apanhou uma garrafa de cachaça e bebeu, no gargalo, até secar.
Dormiu no chão, depois de se embriagar.
Quando o dia amanheceu, acordou com o barulho da rua, dia de trabalho, o carnaval já acabara.
Tentou arrumar as coisas, mas não havia muito o que arrumar.
Saiu rumo ao Terreiro de Jesus, tentando encontrar Tico, mas nada. Encontrou numa esquina algumas moças que se prostituíam, velhas conhecidas. Perguntou pelo rapaz, mas ninguém sabia dele.
Mais um dia se passara e ela já não tinha nada para comer, mas a fome apertava. Ela que tentara não se prostituir em meio a dezenas de casas de tolerância, não via agora outra saída. Enquanto contara com a proteção de Torquato, parecia que se livraria desta triste sina, mas agora estava só, sem qualquer perspectiva para ganhar a vida, senão vender o corpo para comer um pf qualquer, por aí.
Lutamos tanto para alcançar o mais alto que podemos em nossas vidas, mas qualquer revés da sorte nos leva de vez para o fundo, como uma pedra atirada num lago, sem possibilidade de retorno.
Pensamentos deste tipo assaltavam a moça, assustada mas resignada.
Arranjara uma roupa mais adequada com uma de suas amigas, pintara na cara uma maquiagem carregada, e se dispusera a oferecer seus préstimos numa esquina qualquer.
Levou seu primeiro freguês para o boteco semi-abandonado, pedindo perdão à alma de Torquato pelo uso que faria da casa a partir daquele momento.
Quando chegou o sábado ela acordou diferente. Naquele dia Anselmo se casaria.
Mesmo sabendo que ele fora o responsável pela morte de Torquato, sabia que a situação em que tudo aconteceu não o tornava totalmente responsável pelo crime, mas ela também era culpada, porque desobedecera ao "padrinho", e sua desobediência fora a causa primeira da morte dele.
Tentou passar o dia cuidando de seus afazeres.
Estava preste a alugar um dos quartos para duas moças que queriam ficar independentes de uma cafetina do Maciel, e desta forma poderia ter mais uma fonte de renda, além do sexo.
Mas quando já estava próximo o horário do casamento, ela se arrumou o melhor que pode e saiu rumo à igreja da Saúde, para olhar o casamento que poderia ser o seu.
Chegou cedo, e se pôs a esperar na esquina da igreja, que já começava a receber os primeiros convidados. Estava toda florida, flores brancas, cor da pureza, pureza que ela não tinha, nunca teve.
Roubou uma flor quando ninguém olhava, e assim que desceu as escadas da igreja, bateu de frente com Anselmo, elegantemente trajado para a cerimônia.
Ele fechou a cara e falou ríspido:
- O que você quer aqui. Suma daqui e não me procure mais.
- Eu apenas queria ver como você estava, depois de tudo que aconteceu.
- Não aconteceu nada. Foi um acidente e você viu tudo.
- Não estou querendo te culpar, mesmo tendo perdido a pessoa que mais me ajudou na vida, não consigo te culpar, porque acho que amo você.
- Vamos sair daqui antes que alguém nos veja.
E arrastando-a pelo braço, dobrou a esquina e desceu a ladeira que dava na Baixa dos Sapateiros.
Num beco escondido empurrou-a e depois começou a bater nela, dando-lhe chutes e socos, até deixa-la mole, estendida perto de uma lixeira.
- Não me apareça mais, não me procure, ou será pior para você. Se me procurar de novo, te mato.
Anselmo subiu a ladeira de volta à igreja, arrumando o terno machucado, desculpando-se com os convidados e sua noiva, afirmando ter sido vítima de uma tentativa de assalto, da qual ele se livrara, aplicando uma surra nos dois malfeitores que o haviam atacado.
Quando a noite chegou, Anja por fim se levantou, vagarosamente, e arrastou-se até o velho boteco.
Algumas lágrimas ela ainda vertera, enquanto pensava em tudo que havia passado, mas por fim decidiu não chorar mais.
No Terreiro de Jesus estavam fazendo uma festa, uma batucada relembrava os momentos mais entusiásticos do carnaval que havia acabado há poucos dias.
Ela arrumou os cabelos, ajeitou o vestido roto pela surra, e aproximou-se do povo que dançava e cantava, entre eles muitas de suas amigas putas e pivetes da área.
Era um carnaval para os deserdados, um bloco de tristes alegrias, farrapos de roupas e de almas.
Ela que nunca tivera grandes afinidades com aquela alegria estranha, tentava remexer os quadris e assumir uma nova identidade, mais precavida contra as porradas da vida. Seus ossos doíam, estava cheia de hematomas e tinha os olhos roxos dos vários socos que recebera de Anselmo. Estava deformada, mas ninguém ligava para isso naquele meio, onde todos, de uma forma ou de outra, tinha também suas deformações, e procuravam não se aperceber delas, tanto em si quanto nos outros.
Um homem que ela nem viu bem a agarrou pela cintura e deu voltas com ela no meio da roda, enquanto os demais batiam animadas palmas.
O batuque prosseguia animado, regado a cachaça e cerveja, com uns churrasquinhos de gato para disfarçar as barrigas vazias.
De vez em quando uma dupla de policiais passava ao largo, mas nem se dava ao trabalho de encostar. Alguns até que desejavam estar ali, naquela festa, mas tinham um dever a cumprir.
Os carinhos de última hora do tal homem terminaram em uma transa rápida num canto externo da igreja de São Domingos.
- Você pode ir em minha casa de vez em quando.
Anja estava anestesiada, e tentava se prender em qualquer demonstração fugas de carinho que lhe surgisse.
Bebeu até quase cair.
Uma de suas inquilinas a levou para casa, que rapidamente se transformou em brega, mesmo pequeno, mas o suficiente para que as moças ali residentes pudessem levar a vida que a sorte lhes destinara.
De vez em quando uma batida policial tirava o sossego da área, cada vez mais infiltrada de traficantes.
Anja olhava o tempo passar sem se preocupar com nada que lhe acontecesse.
Parecia que olhava somente para o fim, como alguém que, do alto de uma montanha, avista seu destino, sem se importar com a jornada, por vezes penosa, que terá até alcança-lo.
Para ela só havia um destino, a morte.
Então pouco importava se estivesse sempre bêbada ou até dopada, pois muitas vezes seus fregueses a forçavam a cheirar cocaína. Cigarros baseados de maconha eram comuns ao seu dia-a-dia, e serviam para ver o mundo à sua volta de uma maneira mais alegre e festiva.
De resto, era seguir em frente, nos caminhos que conhecia, até o dia que Deus quisesse.

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