Um livro a flanar...
Era apenas uma criança comum, nem bonita nem feia, nem rica nem pobre, nem alta nem baixa... Cabelos e olhos castanhos... uma criança comum... família comum...
Mas não igual à maioria... Nem ela, nem a família... Pois naquela casa havia mãe, avô, tio, irmão, livros e tia... E pai não havia... Não como os que a menina sabia... O pai era o avô... Que a ela e ao irmão como filhos criou...
Uma criança que brinquedos incomuns receber não costumava... Por isso, seus próprios brinquedos saídos de páginas brancas ou amarelas inventava, criava, imaginava, e para as amigas – que somente para ela existiam – mostrava... E às companheiras ensinava... Também a criar, imaginar, inventar, fazer acontecer outras histórias, outros caminhos...
As tias, todas mestras, com seus livros instruíam... E as crianças sonhavam que a eles possuíam... História, Ciências, Geografia, Educação Moral e Cívica a ensinar... Literatura, Romances... Ah! Os romances... E a mãe, religiosa, a Bíblia a rezar...
Aquela criança, então, cercada de livros vivia... De alguns a história de cor já conhecia... Mas, sem cessar, lia e relia... E sempre, pela primeira vez, parecia que para si os trazia... Sozinha, a selecionar aprendia e, também, sozinha, percebia os livros que a ajudavam em sua imaginação tocar e outras histórias fabular...
Embaixo de uma prateleira no quartinho de costura onde a mãe seus trabalhos fazia, ao som do rádio de madeira, da bomba puxando água da caixa, sorria. “Faltou água da rua!” – ouvia. E ao ruído do trac trac da máquina de costura, a criança sentia...
Embalada pelos sonhos e sons, em castelos crescia, em festas se divertia, em grandes aventuras corria, a muitos romances pertencia, com muitas histórias se envolvia...
Uma criança especial... Com talento tal... Que foi crescendo... Outros interesses aparecendo... Mas a importância do livro cada vez mais percebendo...
E a eles sempre recorrendo... Com eles sempre convivendo...
A eles recorria na alegria e na nostalgia... Amando-os e respeitando-os, todos os dias de sua vida...
Casou-se. Os filhos chegaram. Moça ainda, com os filhos lidou. E dos livros mais uma vez precisou... Usava-os sempre... Para ninar, para acalmar, para alegrar e fazer sonhar... Foram crescendo os filhos... E sempre presentes os livros...
Pensou, então, a outras crianças presentear... Voltou a nos livros estudar...
E estudando, pela Literatura decidiu...Passaram-se os anos... E, de repente, como as tias, professora se viu...
E em sua casa e em sua sala muitos livros e textos espalhou... Novamente, em volta de muitos e muitos livros se viu... Mais do que antes... E agora, eram realmente todos seus...
Eram reais, eram igualmente fictícios. Fictícios e reais... Mas eram seus...
Um mundo totalmente seu que poderia ser também de todos...
E então, espalhou sua paixão...
... Que em todos tocou...
... Que em cada criança uma história despertou ...
... Que em cada história uma criança acordou...
E em reflexões a respeito de sua própria história, chegou à conclusão de que as cores de sua vida vinham daquelas páginas sempre abertas...
Sempre presentes...
Sempre dispostas...
Com os livros aprendeu a não ter uma vida castanha...
Hoje, várias cores aparecem.
Vida tamanha...
Onde suas vontades e sonhos se tecem...
E mesmo com os olhos fechados pode ver,
e debaixo daquela prateleira, o trac trac da máquina a ouvir,
a bomba d’água a puxar,
o som do rádio a tocar...
Num arco-íris de histórias a flanar...
Com o livro nas mãos,
ajuda a colorir vidas e sonhos,
com as amigas imaginárias
ou reais a partilhar,
ela vive a costurar
as aventuras,
as histórias,
os castelos...
(Adriana Luz – abril/2003)
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