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Cronicas-->O horror da bondade no país do choro -- 06/01/2003 - 18:27 (Marcos Tadeu) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O horror consciente da bondade me persegue em horas incautas. O caso de hoje é deveras pitoresco, senão trágico. O caso trágico de uma tarde qualquer de segunda-feira, na rodoviária de Beagá, quando caí na tocaia da bondade. Irei contar-lhe, porém, peço que não apresente queixumes contra mim, leitor companheiro, pelo menos por enquanto, que eu estou prestes a mostrar que tenho razão em ver horror na bondade que persegue na tarde chuvosa da rodoviária da capital e se transforma, então, em caridade monetária.

Sim, antes que me pergunte, eu só viajo de ónibus, não dirijo em rodovias, culpa da neurose tamanha de me morrer no meio da estrada. Resultado de pesadelos infantis, em que dirigia trambolhos e caia ribanceira abaixo, logo naquela ponte da bê erre zero quarenta, a poucos metros da polícia rodoviária. E essas férias precisas me fizeram querer ir para Juiz de Fora, num acesso desgraçado de nostalgia e premência de pisar o Parque Halfeld e dar de comer aos pombos.

Retorno ao pátio da rodoviária, onde, encharcado como um porco e munido de guarda-chuva esganiçado, fui procurar o guichê. O aspecto de coisa nova que se mistura aos detritos da arquitetura maltratada daquela rodoviária sempre teve o poder de feitiço sobre mim. Mas e a maldita bondade do início, hein? Não façam isso comigo, se apercebem que eu pulo o assunto, xinguem, parem de ler. Voltemos mais uma vez à bondade horrorizada.

Procurava o guichê quando um casal humilde com filho pequeno me parou. E quando me pararam, parecia que eles três estavam ali há muito tempo, e se aproveitaram da minha cara molhada e perdida para o pedido misericordioso. E era um discurso tão misericordioso que nem consegui prestar atenção, pego de surpresa em minha inércia. A família precisava ir para Juiz de Fora, em função de um exame no bebê ou sabe-se lá o quê. O pai se encontrava no limite entre a gentileza e o desespero, pronto a fazer qualquer besteira se não conseguisse duas passagens até o anoitecer.

O pai implorou para que eu pagasse as passagens. Não hesitei em ver Cristo ali, travestido naqueles três, pronto a me provar, como sempre acontece quando tenho mais que cinquenta reais no bolso e toda a disposição do mundo para comprar, adivinhem, os ardilosos devedês. Não pensem que não resisti, tentei. Procurei ir para o carro, despistar o pai desesperado e a mãe absorta. Mas o pai me seguia, conforme a criança atrás do caminhão de sorvete naquele clipe de "Today". Não adiantou fugir. A minha cara molhada e complacente me entregava, e só cortando a cabeça para que ninguém percebesse o frêmito de bondade que me tomava a alma naquela hora. "Venham todos os necessitados, estou disposto". A boa vontade me venceu.

A bondade eclodiu da minha alma petrificada, do lodo a que chamamos essência humana. Nascida bela, do inferno. E lá se foram vinte e três reais, o preço da passagem, e que Cristo debite na minha conta, mas acho que Cristo me pagou através do rosto doloroso daquela mulher com o filho no colo me desejando um feliz natal e do cumprimento honesto do pai, semi-aliviado. Mas não há cumprimentos, não há agradecimentos, muito menos um feliz natal. O que há é pobreza demais, humilhação, miséria, degradação humana, fome na porta da lanchonete, essas coisas brutais. O pai me apertou a mão, e eu retribuí, sem graça, pois não há graça no estado em que se encontra o Brasil, apenas choro.

Fui embora e só pude pagar uma passagem, com mais um real para o leite. E o pai deve ter encontrado outra alma burguesa que lhe pagasse também uma passagem para acompanhar a mulher. Claro que encontrou. Será? Um peso na consciência agora me invade, pois dei os vinte e três reais mas devia ter dado mais outros vinte e três para o pai, pois a mulher não deveria viajar sozinha. Não acham? E agora? O que será da mulher e o bebê viajando sozinhos, sem um tostão no bolso, comunicação e alimento? E o pai, e a dignidade? Não poder voltar para a sua cidade é duro golpe. E eu aqui, com meus outros dinheiros a serem gastos com bobagem, à espera de que a bondade e seu horror consciente venha e me bata de novo na cabeça.


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