O rapaz do balcão e o frentista me fizeram saber que a jukebox era "coisa de zona", ultrapassada, talvez como o próprio meretrício e minhas jurássicas preocupações de tradutor e de cronista. Quem ainda hoje precisa de ir à zona? Só mesmo os exacerbadamente românticos, só mesmo os sentimentais incuráveis.
Em Salvador, conta-se, e haverá quem nos conteste, o meretrício fixara domicílio na Rua Padre Manuel da Nóbrega. Idos tempos. E, de tanto existir, a placa fora se apagando. Já não se liam mais que as duas últimas sílabas do venerando sobrenome. Cunhou-se uma expressão: "eu vou no brega".
Concluo: nada mais "brega" do que uma jukebox. Mas se o aparelho teve o destino que teve, o nome estrangeiro teria sobrevivido naquele ambiente, por assim dizer, sócio-lingüístico? Não se lhe teria pespegado um apelido que fosse?
Em Portugal, tanto quanto sei, o vocábulo inglês até mui recentemente era de uso corrente. Desconheço se outras providências terão sido tomadas. Sabe-se lá se, por lá, a jukebox ainda hoje resiste. Na zona que seja.
Entre nós, eu não suspeitava de que ela tivesse chegado, e muito bem, ao falar da maladragem carioca. Para sabê-lo, foi preciso acatar sugestão de um amigo esteticamente refinado, que me fez abrir o espírito para as obras completas de Zeca Pagodinho.
Na cidade, o pagode é sabidamente detestado por quem não o pratica. Aqui, tanto pagode houve durante certo tempo, que acharam de inventar o epíteto controverso: "Araraquara, a capital do pagode". Muito antes de ter ocupado todos os desvãos do imaginário visual e auditivo verde-amarelo, o pagode por aqui tanto já vivera a sua glória, como amealhara rejeições.
A Funeral, uma banda de rock punk que cumpriu o feito de classificar-se entre as dez melhores do país numa das versões do festival Skol Rock, consagrou entre seus fãs locais e nas apresentações do festival, em 1996, um hit hilário e insuperável: "Pau no cu do pagode".
Henrique Punk, o vocalista, que me ajudou a criar Oxouzine em 97, não me perdoava, na época, pela insuportável conversão ao humor e ao balanço do grande Zeca Pagodinho. Não era apenas uma questão de gostar ou não gostar, eu explicava. Era, isto sim, uma questão de sobrevivência cultural. Impossível dar conta da vida e da língua brasileiras sem ouvir os nossos melhores artistas populares.
Mas nem eu mesmo, essa é a verdade, conseguia me convencer por inteiro disso que era mais uma intuição do que uma certeza: a língua portuguesa tem um dos seus melhores pontos de chegada, em termos de Brasil, em artistas, como Zeca Pagodinho. E nem eu mesmo esperava pela súbita confirmação, na prática, da minha acanhada explicação teórica.
Mas eis que um belo dia, ao ouvir um de seus registros, eu deparo com a tradução que tanto buscara, e que já nem sonhava encontrar para a palavra jukebox. Aconteceu. Estava ali, e vinha da boca do artista, e minhas orelhas registravam, para sempre: vitrola de ficha. Convenhamos, uma realização fantástica e invejável. Plasticamente irretocável, ela dá conta da função e do funcionamento do aparelho.
Não caberia, é claro, nas traduções das narrativas de Peter Handke. Mas essa já é uma outra história.
[continua]
|