Trica é a cadela de Cacá, que no primeiro dia do próximo ano sairá para uma volta ao mundo de bicicleta. Pois Cacá queria levar Trica em sua viagem, depois desistiu. Mas esta noite sonhou com Trica e voltou a ficar em dúvida. No sonho, Trica o defendia de ladrões de bicicletas. Em outra passagem, Cacá estava em apuros atolado na neve e Trica buscara ajuda. Acordou com algumas lambidas de Trica que, como sempre, estava pedindo comida.
Trica é uma destas cadelinhas que, genericamente, são enquadradas como da raça Fox. Naturalmente, os veterinários não se sentem muito inclinados a endossar a classificação e, sem maiores comentários, anotam SRD na carteira, fechando-a rapidamente antes que o dono perceba. Ela é branca com manchas marrons e tem tudo de Fox, exceto talvez o sangue. Mas quem se incomoda? Qualquer um que a olhe vai dizer que se trata de uma cadela Fox e certamente ficará comovido com sua expressão de pobre abandonada. Uma vez uma velhinha quis bater em Cacá, achando que ele a maltratava. Trica o salvou, rosnando para a senhora que logo percebeu o engano que estava cometendo. A velhinha então quis bater em Trica e foi a vez de Cacá salvá-la. Foi uma loucura, pois surgiu uma turma enorme querendo bater em Cacá e Trica, e só desistiram quando Trica fez sua cara de piedade. Aí o pessoal queria bater na velha, que saiu correndo.
Entre rosnadas e lambidas, pulgas e travesseiros, Cacá e Trica adaptaram-se um ao outro. Mais Cacá Ã Trica do que esta a Cacá. Vivem bem, principalmente quando dormem abraçados.
Como a maioria dos cães e as cadelas Fox em particular, Trica naturalmente tem esta expressão de cachorro que caiu da mudança e não sabe o que fazer. Ela vai chegando, se aninhando e quando se vê estamos catando pulgas. Não que ela seja propriamente pulguenta, mas acontece que ela só sossega quando alguém de suas relações a está afagando. É uma carente inconsolável e uma chantagista experimentada.
Ocorre então que Cacá, cada vez que a olha - e ela está lá, seguindo-o o tempo todo - fica com remorso e não sabe o que fazer. Já tentou conversar com ela e explicar que a viagem será muito demorada, que não há espaço para ela em sua bicicleta, que ela não conseguiria acompanhá-lo e que sua mãe e seu pai precisavam da companhia dela, ainda mais agora que ele iria fazer esta viagem tão demorada. Trica ouve tudo com atenção e ao término faz um comentário ininteligível e uma expressão de piedade. Cacá não suporta mais a situação, não sabe o que fazer.
Cacá resolveu discutir a questão com seu pai, Seu Jola, e exploraram a hipótese dele levar Trica consigo na viagem. Seu Jola logo imaginou um "Side Car" para Trica que assumiria as atividades de navegadora, formando uma equipe com Cacá. Cacá achou que Seu Jola estava exagerando um pouco, afinal Trica fugira das aulas de adestramento. Cacá não falou mas já tinha tomado sua decisão. Trica vai com ele, seja lá como for. Agora era definir como transportá-la na bicicleta.
Uma das alternativas era a preparação de uma mochila especial onde Trica se aninharia em parte do trajeto. Outra parte do tempo ela seguiria em uma cesta acoplada ao guidom onde poderia apreciar a paisagem. Dona Lea notou a movimentação e ofereceu-se para costurar a mochila e todo um guarda roupa inspirado nas roupas do Snoopy. Seu Jola rapidamente adaptou a cesta. Estava tudo pronto. Trica contudo, como não foi comunicada, continuava com aquela expressão "ninguém gosta de mim", tão peculiar aos cães.
Cacá então resolveu chamá-la para uma reunião de trabalho. Quando Trica recebeu a notícia, quase teve um enfarte. Seu rabo balançava tanto que ela pairava a uns trinta centímetros do solo e só não decolava porque Cacá teve o cuidado de amarrá-la ao pé da mesa. Cacá sabia com quem estava tratando.
Quando Trica viu os preparativos para o seu guarda roupa, fez algumas exigências. Só o básico, alguns jeans, uma jaqueta de couro e um chapéu e óculos de aviador, como os do Snoopy, seu ídolo. Trica não costumava usar roupas, mas para uma viagem tão longa, para ir ao exterior, talvez fosse melhor. Além das roupas esportivas pediu dois terninhos e um longo para as ocasiões mais formais. Não pediu muitas peças - disse que o resto ela ia comprando na viagem. Não era bem isto que Cacá tinha em mente, mas agora já estava feito. Paciência. Qualquer coisa era melhor que ter Trica ao seu lado fazendo chantagem. Além disto, se fosse sem ela a saudade poderia comprometer toda a aventura.
Foi realmente uma felicidade. Por mais que Trica tivesse imaginado e premeditado este momento, não conseguia conter-se de felicidade. Já se imaginava em Paris, Moscou, Roma. Seu maior sonho era visitar Nova Iorque, andar pela Quinta Avenida embrulhada em um daqueles casacões enormes, um luxo. No Havaí, visitaria o vulcão, em Bali com aquelas camisas coloridas. Não conseguia sequer dormir. Logo depois passou a andar com o focinho empinado, toda orgulhosa e não largava o passaporte. Na realidade, Trica vem arquitetando este golpe desde o primeiro dia em que ouviu falar sobre a viagem. Ninguém acreditava em Cacá e ela já estava tomando vacinas e obtendo vistos. Quando se considerou pronta, começou a campanha chantagista.
Cacá não a culpa. Qualquer cadela dedicada faria o mesmo.
