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cronicas-->Bolero -- 30/12/2002 - 17:58 (Renato Rossi) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Pan pan, pan pan pan, pan pan.

Era mais de meia noite, todos estavam numa destas conexões noturnas em que os aviões já estão bocejando. O saguão quase vazio, poucos passageiros esperando pelo derradeiro vóo para completar o percurso até o destino final.

Um a um, iam se virando, assim como quem não quer nada, como quem acompanha o vóo de uma mosca. Olhava em volta, como um radar, até identificar de onde vinham as batidas. Ao identificar, uma certa decepção. Apenas um baixinho engravatado, amarrotado e chato. Não por ser baixinho que muitos baixinhos há que não atormentam ninguém nas conexões tardias. Não por ser engravatado, que muitos há nas conexões de qualquer horário, silenciosos, geralmente quietos. Não por amarrotado, que qualquer um se amarrota em avião. Felizmente, nem os baixinhos, nem os engravatados, nem mesmo os amarrotados tem esta compulsão por bater com o pé no chão até atormentar toda a platéia. Platéia compulsória.

Bater, até que poderia, quem nunca arriscou uma batucada na pasta. Mas discreta, inaudível. Ele não, insistia no volume alto, não bastasse o silêncio do salão. Bater, pode, mas não alto. Não, acho melhor corrigir. Depois da meia noite devia ser proibido ficar batendo com o sapato novo no chão. É como eu digo, as coisas acontecem e o governo, onde está? Onde está o governo a esta hora que não vê este absurdo?

O que estaria se passando na cabeça do tal baixinho, engravatado e amarrotado? Talvez se sentisse um bailarino espanhol com sapatilhas e castanholas. Talvez um novo Fred Astaire aguardando pela descoberta, achando que num avião destes pode estar um olheiro de Hollywood? O que será que ele pensava estar tocando? Não sei, mas provavelmente ele achava estar tocando o Bolero de Ravel. Sim, eram batidas cadenciadas que ficavam mais altas a cada ciclo, prenunciando uma apoteose final. Sei lá.

A morena da primeira fila sem notar começou a balançar a cabeça como uma doida, acompanhando as batidas do baixinho. Ela não notava, mas a cabeça dela movimentava-se de tal forma que parecia girar sobre o pescoço. Talvez girasse mesmo. Movimentava-se a ponto do vizinho ficar olhando com cara de "que louca é esta", sem notar que ele próprio acompanhava as batidas com o cotovelo batendo na perna engessada. Já estava abrindo um buraco no gesso.

Quando se deu conta, a morena estava com dor no pescoço. Olhou em volta até localizar a origem dos sons. Apontou um olhar fulminante e ficou aguardando que ele olhasse para ela. Inútil, ele não olhava, não olhava para ninguém. Mal se virou e a morena já estava mexendo a cabeça novamente. O baixinho estava em êxtase com suas batidas, imaginando-se talvez em pleno Scala, de casaca apresentando-se para uma grande e erudita platéia. Só podia ser algo assim.

Pan pan pan, pan pan...

Isto com a sola do sapato no chão de granito. Salão vazio. Seguia o baile, melhor dizer conserto.

O grandão lá no fundo começou a balançar a perna. Balançava tão rápido que parecia que ia levantar vóo. Não chegou a tanto, mas quase. Na realidade, ele pairava mais ou menos dois centímetros acima do acento. Poucos notaram. O pessoal da fila do meio, três ou quatro apenas, sem notar iniciou uma coreografia, indo de um lado para o outro e batendo com os pés nos intervalos das batidas do baixinho. Acho que pensavam fazer a segunda voz.

Tinha a moça com um bebê. Em lugar de embalar a criança ela começou a cantar alguma coisa com o se estivesse acompanhando o baixinho. Cena bizarra. O baixinho batendo sem parar, a morena balançando a cabeça, o grandão sacudindo a perna a moça cantando e a fila do meio naquela coreografia. O salão todo se mexia acompanhando as batidas. Talvez por isso o avião demorasse tanto. Não seria prudente aterrissar perto desta gente.

Pan, pan, pan pan, pan pan pan, pan pan...

Era o bolero de Ravel. Ravel que perdoe a todos, mas devia mesmo ser o Bolero. Pelo menos era o que o baixinho pensava. E assim, foi um bom tempo.

De repente ele parou e foi fazer xixi. O pessoal, já embalado na sequência estabelecida nem notou sua parada. Continuou naquele frenesi.

O baixinho não demorou, mas quando entrou no salão novamente achou tudo aquilo muito estranho.

Ensaiou um sorriso e, sem notar, começou a bater no chão, acompanhando o pessoal.



Escrito em 21.10.2002
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