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Contos-->Placebo -- 30/04/2003 - 04:49 (ji) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Placebo


“Eu estava em casa, deitada na cama, grávida de quase três meses. De repente o telefone tocou. Naturalmente, eu fui me levantar quando então senti um líquido descendo pela perna, parecendo queimar a pele. Era sangue. Gritei pelo meu marido. Ele ligou para o médico, e recebi a temerosa e sempre aparentemente injusta notícia: eu havia perdido meu filho”. “Mas mãe, papai me disse uma vez que o aborto aconteceu na praia...”.
Era inimaginável, mas, vinte e poucos anos depois, já com meio século de vida, tinha-se comprovado os ditos populares que costumam qualificar o tempo como o mais eficiente remédio – ainda que terrivelmente amargo. O verdadeiro placebo. Espécie de panacéia – ainda que desvairadora – dos reles mortais. Não que, contudo, fosse capaz de apagar as lembranças. “Apenas”, devidamente fundido com o destino, o acaso, com a vida enfim, se liquefez. Homogeneizou, prodigiosamente, numa mistura de sabores cujo gosto final não foi a acidez esperada languidamente há cerca de 20 anos.
Então, a cortina miraculosa jogada pela união entre o tempo e o destino deu uma trégua: na verdade, a história contada anteriormente era relativa à gravidez do terceiro e último filho. Aos 26 anos, dois após o casamento com Ronaldo, Sônia dava a luz à sua primeira filha, Karine. Sem quaisquer complicações. Gravidez normal; parto normal. Até que veio a segunda gestação.
1980. Com seus 28 anos e um bebê de pouco mais de dois meses no ventre, Sônia vivia amenamente a terça-feira de carnaval, na praia do Farol de São Thomé. Ao atravessar a rua, uma batida de carro assustava a grávida e sustava sua gravidez. O sangue desceu na hora. Não nos motoristas do carro, com álcool nas veias. Inadvertidamente, todos olhavam para um lado enquanto a morte se apresentava do outro.
Correria. Malas feitas às pressas, todos voltaram para Campos dos Goytacazes, interior do estado do Rio de Janeiro, cidade natal e morada. Esbaforidamente, Ronaldo telefonou para o obstetra, Wilson Paes, primeiro a ter nos braços sua primeira filha. Fazendo jus às terças-feiras de carnaval no Brasil, o médico estava viajando. Em seu lugar, a também obstetra, Marisete Moraes, decretou repouso oficial. Poucas quartas-feiras de cinza foram tão negras quanto aquela no leito do Hospital dos Plantadores de Cana.
Talvez os displicentes motoristas sequer venham a saber que um dia cometeram um involuntário homicídio. Talvez morreram naquele mesmo dia, ou no decorrer desses vinte anos. Talvez (,dependendo da crença de cada um,) motoristas e feto até já tenham se encontrado no juízo final. Talvez o acidente aconteceu por se desviarem de uma mulher grávida que atravessara a rua. Talvez. Não para a futura-mãe. Tal vez foi fundamental, e a médica deu seu parecer irrefutável, dois dias depois: “Seu bebê está morto”.
“Não havia qualquer problema de saúde com mãe e filho, nem a idade era avançada para engravidar. Em casos assim, a única explicação é que o organismo pode recusar o bebê quando há má formação congênita acentuada. Seu filho poderia nascer sem perna, braço, cego ou com debilidades mentais. Mas é certo que ele morreu na hora, no momento do acidente e do susto”, disse mais tarde o obstetra e folião, Wilson Paes.
Os dias de repouso no hospital foram, além do luto, a passagem de status de mãe para túmulo. Dores, cólicas, e a estranha sensação e o choro desesperado no momento do acidente estavam irremediavelmente explicados. Sequer houve tempo para saber o sexo do bebê. Fez-se a curetagem. Materialmente, o feto sequer existia mais. Era como estivesse se dissolvido em meio à placenta. O trauma, como não poderia deixar de ser, foi imediato. Nada de filhos; só Karine, filha única, e assunto encerrado. Mas, “irremediável”, é uma daquelas palavras que devem ser banidas, em prol da estranha química entre o tempo e o acaso.


“Não saio daqui sem meu filho!”

Dois anos depois, já com 30 anos, a gravidez batia novamente à porta. É verdade, sem ter sido convidada. E assim sendo, dessa vez além da natural felicidade, uma estranhamente também natural mistura com medo e aflição. A gestação seguiu normalmente – como nas duas outras. Mas, ao terceiro mês, o pavor venceu o medo. Ao se levantar para atender ao telefone, novamente, aquela estranha sensação do sangue rasgando a pele perna abaixo. Dessa vez, Wilson Paes foi encontrado. Destino: hospital. Rápido.
“O sangramento até hoje foi inexplicável, e nos alertou para os riscos da gravidez. Como eu já tinha um histórico de aborto e aconteceu isso, o médico recomendou muito repouso e pouco esforço”. E assim foi feito. As semanas seguintes vieram, sem qualquer outro vestígio aterrorizante. O sétimo mês se apresentava, e a mãe já se preparava para o parto. “Com sete meses já dá pra nascer, não dá doutor?”. “Sim, mas é muito perigoso”. “Eu não quero que seja parto normal. Quero fazer cesariana.”
Naquela época, a cesariana, as cirurgias de um modo geral, eram vistas com cautela. Dificilmente os médicos aceitavam, e mesmo assim, tinha que haver a permissão do marido. E Ronaldo não queria. “Eu achei um absurdo, pois afinal, o corpo é meu e eu tinha esse direito. Com Karine doeu muito, e não queria passar por isso de novo. Insisti tanto até que um dia eles aceitaram”. A simples discussão acabou revelando mais um problema na gravidez. O bebê estava sentado, e o parto deveria ser feito por meio da cesariana. Acabou ficando marcado o para o dia 20 de outubro, quando completaria exatos nove meses.
Não deu tempo. Apesar de confortável e preguiçosamente instalado no ventre de sua mãe, o bebê teve pressa. Com oito meses e meio, no dia 5 de outubro de 1982, a bolsa se rompia e o trabalho de parto começava. Novamente correria, telefonema para Wilson Paes, encontro no Hospital dos Plantadores de Cana. Dessa vez, claro, com uma aura diferente, e o leito hospitalar se mostrava um pouco menos sombrio. Ou não.
“Vocês ligaram para o pediatra?”. “Não, eu não sabia”. “Pois é bom ligar, em vista de tudo o que já aconteceu”. Cláudio D’Ângelo, então, foi chamado. “Agora que o senhor disse isso, não quero começar o parto sem que ele esteja aqui”. “Desculpe, mas não posso esperar mais, ou você corre o risco de perder o bebê. Ou perdermos você”. O parto então teve inicio. Apreensão até o último momento, amenizada momentaneamente pela chegada do pediatra. Até que...
Pronto. O bebê nasceu. Um menino. Mirrado, roxo, mas nasceu. Porém, não com a saúde desejada: problemas respiratórios, sérios riscos de morte. A qualquer momento sua respiração podia falhar e falecer. Cláudio D’Ângelo fez plantão no hospital até de madrugada, por cinco dias, vigiando o recém-nascido que lutava pela vida de dentro da incubadora. Silêncio. A mãe ainda não sabia o que se passava.
A explicação médica: “Em partos assim, com oito meses e meio de gestação, o bebê nasce muito pequeno e debilitado, e por isso tem que ficar na incubadora por algum tempo”. Dois dias depois do parto, veio a recomendação à mãe. “É melhor você ir para casa, não há mais nada para fazer aqui. Você também precisa descansar e ficar de repouso”. “Nada disso. Só saio daqui com meu filho no colo!”.


E se...

No início da união, o casal Sônia e Ronaldo não planejou a quantidade de filhos, nem sonhou com determinado sexo ou nome. “Só quero que tenha saúde”, dizia ele. “Não tenho preferências”, dizia ela. Mas, ao saber que seria uma menina, a mãe não teve dúvidas: colocou na cabeça que seria Rossana – uma estranha combinação entre os nomes do casal. “Minha tia me salvou”, disse a quase-“Rossana”, anos mais tarde. “Minha irmã e uma concunhada diziam que era horrível. Até que um dia sugeriram ‘Karine’ e todos gostaram”, contou Sônia.
Com Felipe, o gosto duvidoso dos pais foi semelhante. “Quando meu marido soube que seria um menino, disse desde o início que o nome seria Ronaldo. Ronaldo José Vasconcelos Gomes Júnior. E eu achei horrível. Eu e minha irmã sempre adoramos o nome ‘Felipe’, e combinamos que, quem tivesse um filho primeiro, ficaria com o nome. Ela teve primeiro, mas Felipe teve sorte. Meu cunhado não tinha preferências, mas quando pegou o filho no colo enlouqueceu, e, aproveitando o efeito da anestesia, ‘convenceu’ minha irmã a colocar o nome de ‘Júnior’. Meu marido ainda quis que se chamasse ‘Ronaldo Filho’, mas aí, após o parto, foi a vez dele mudar de idéia, e acabou registrando como Felipe”.
Após o atribulado, porém feliz terceiro parto do segundo filho, Sônia resolveu operar para não engravidar mais. Chega de emoções desse nível nessa vida. Mas, e se ela tivesse desistido e operado antes? E se do segundo parto tivesse nascido seu segundo filho? Por onde vagaria a alma de Felipe? Teria ele plenas capacidades físicas e mentais, caso sua essência estivesse presente naquele pedaço de corpo da segunda gravidez? Talvez. Mas, de certo, tal vez foi, novamente, fundamental. Quando a vida seguiu seu rumo e se encarregou de fornecer as diretrizes necessárias; num verdadeiro placebo. E talvez o leitor não estivesse aqui, agora, lendo este texto.


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