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Contos-->O golpe militar -- 16/04/2003 - 19:49 (Clodoaldo Turcato) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Lá fomos nós para a Bahia. O ônibus quase nos mata de susto ao chegar. Um frio na espinha me ocorreu ao ver o carro em que iríamos viajar cerca de dois mil e quinhentos quilômetros, de Goiânia à Recife. Fabricado pela Mercedes Bens em 1988, sem ar condicionado, sem assento para os pés, sem televisão, e o pior, sem freios. A idéia mais sensata seria abandonar a viagem ali mesmo, porém a pressa me fez cometer a loucura de embarcar. E assim partimos
O amigo leitor fique tranqüilo, estes escritos não são póstumos; eu sobrevivi.
Os primeiros trezentos quilômetros foram calmos, nenhum incidente, apenas um pneu furado. No entanto, mal deparamos com o São Francisco para quase conhecer sua profundidade. Graças as perícia do motorista, que era a única coisa segura a bordo, não despencamos ponte a baixo. Foram três horas para o reboque e outras tantas para o conserto nos freios. Enquanto os mecânicos trabalhavam, aguardamos em um posto de combustíveis.
Eu ainda não tinha dialogado com ninguém, até que um Sargento do Exército – soube depois sua patente – puxou assunto comigo:
_ Vai pro Recife? – perguntou-me
Olhei com indiferença para aquele baixinho, portando uma lata de cerveja.
_ Meu nome é Oliveira, Gerson Oliveira, Sargento do Exército Brasileiro.
Falou com tanta arrogância que senti vontade de quebrar todos os dedos daquela mão estendida. Diante de minha indecisão, ele repetiu:
_ Oliveira, Sargento do Exército...
_ Prazer, Cláudio, poeta – respondi.
_ Poeta? – com a maior cara de nojo.
_ Sim, poeta. Por quê?
_ Bem, eu sempre fui meio ignorante nestas coisas de poesia.
_ Eu digo o mesmo: não entendo nada dessas coisas de exército – esnobe quanto.
Ele sorriu amarelo e sentou-se ao meu lado, como se fora convidado ou bem-vindo.
Logo vi que estava diante de um “pentelho”; como não tinha para fazer, dei corda à conversa, que se estendera sobre os mais diversos assuntos. No início fui cordial e até cordato, mas duas horas de tagarelice dele, passei a defender todas as minhas posições e tantas outras não minhas, desde que o contrariasse; cheguei ao extremo de defender o fim das Forças Aramadas no Brasil. Foi quando, pela primeira vez, ele se irritou:
_ O senhor não está em seu juízo perfeito! Como acabar com as Forças Armadas? Que maluquice!
_ Por decreto, por lei ou coisa assim...
_ Não pode estar falando sério..
_ Claro que estou – respondi no mesmo tom.
Ele bebeu um gole de cerveja me fuzilando com os olhos; fez menção de sair, deu uma volta sob os calcanhares e com o dedo em riste sentenciou:
_ Impatriota! Como ousa?
Todas as pessoas que nos cercavam se reteram em nos observar, imaginado um desfecho brigado para o caso. Mantive a altivez diante de sua reação, sempre com um sorriso irônico, de canto. Houve um silêncio geral. Por cerca de um minuto a multidão aguardou o início dos bofetões . A tensão fora tão grande que a queda de um fio de cabelo soaria um estrondo. Até que tomei a iniciativa de sair da frente do homem, quando ele agarrou meu ombro:
_ Eu ainda não acabei.
Me virei depressa, pronto para esmurra-lo; porém o motorista, que estava próximo, interveio:
_ O que é isso, amigos. Vamos nos acalmar, temos uma longa viagem pela frente.
Sai e fui para o outro lado do balcão, tentando ignorar o soldado.
Eram seis horas quando os mecânicos pararam o trabalho e não houve proposta que os fizessem retornar. O motorista tentou todos os argumentos possíveis, porém o expediente acabara; continuariam no outro dia e fim.
Os viajantes eram todos pobres, muitos sem recurso algum, o que os obrigo a dormirem no ônibus. Alguns com melhores condições - dentre os quais estava eu - foram para um hotel. O percurso, cerca de seiscentos, foi transcorrido em vinte minutos, a pé. O grupo era composto por mim, uma senhora calva beirando trinta anos, um pastor crente, uma menina de doze anos, um cearense, um velho com mais de setenta anos e o nosso sargento. A demora fora ocasionado pelo velho, que além da idade, portava uma deficiência visual grave, mal enxergando sua frente, precisou de ajuda para a caminhada, prestada pelo bravo militar, que se dispôs seu ombro patriótico. E assim xingando a mãe do dono da empresa, mecânicos e familiares, Ministério dos Transportes e o ACM - já que xingando-o estende-se para todos os poderes constituídos as Bahia, com a preguiça e tudo - chegamos .
Na recepção eu me postei atrás do Sargento, que ajudava o velho Fioravante ( este era o nome do idoso, deficiente visual) e pude presenciar um dos mais belos golpes de minha vida: um legitimo 171.
O velho mal conseguia enxergar um e o Sargento se prontificou em auxilia-lo, naquelas formalidades corriqueiras de uma instalação num hotel. Preencheu a ficha de hospedes, carregou as malas e efetuou o pagamento, adiantado, como exigia o gerente do hotel.
_ São trinta reais, seu Fioranvante....
O velho estendeu a carteira para o sargento, que estalou os olhos diante de tantos cartões de créditos, talões de cheques e dinheiro vivo. Havia dinheiro suficiente para comprar até o quarto todo. Estranhei quando foi convencido que devia pagar em cheque.
_ É melhor assim, seu Fioravante. Vai que esse ônibus não saia amanhã, o senhor poder precisar de dinheiro . Pague com cheque, é ouro, todo mundo aceita.
Convencido o senhor estendeu o talão ao Sargento, que imediatamente preencheu uma folha de cinqüenta reais.
_ Fique com mais vinte, seu Fioravante.
O velho sentou-se a sala de espera, enquanto seu guardião foi ao banheiro. Eu fui preencher minha ficha, para em seguida levar minha mala para o quarto. Enquanto aguardava o carregador, o militar saiu do banheiro e foi até o velho:
_ Seu Fioravante, o menino do caixa rasgou, sem querer, o cheque que o senhor passou pra ele. Vai ser preciso preencher outro.
Sem mais delongas, o velho retirou o talão de cheques e estendeu ao Sargento, que iniciou o preenchimento de um novo cheque. Eu pressenti que havia algo errado, pois o soldado nem passara pelo caixa, veio direto do banheiro. Me aproximei dos dois e vi pelo canto do olho que o cheque fora preenchido de cinco mil reais. Será que hotel daria todo aquele troco? E por que cinco mil? Se fosse para trocar o cheque rasgado bastaria preencher um do mesmo valor. Sentei-me próximo do caixa e me fingi interessado no Correio da Bahia, atentando para os detalhes da transação. O Sargento conversou rapidamente com o mesmo e retirou-se para junto do velho, levando-o, com suas malas para seu quarto. Pelo espelho colocado no balcão de entrada o vi jogar restos de papel, que julguei ser o cheque rasgado. Discretamente fui ao lixeiro e apanhei o picotado documento, colocando-o no bolso.
Retornei ao caixa:
_ Amigo, poderias me trocar um cheque?
O funcionário educadamente me disse que o hotel não trocava cheques, principalmente de fora da praça.
_ Sem exceção – insisti
_ Sim senhor, pra ninguém.
_ Me perdoe a insistência, mas meu amigo, o Sargento, trocou a pouco um cheque com o senhor de cinco mil reais. Não foi?
_ Creio que existe algum engano, senhor. Não fazemos troca nenhuma. O único cheque que recebemos foi este de cinqüenta reais.
Me estendeu o documento, o mesmo emitido pelo velho Fioravante.
Eu fiquei sem entender nada. Tinha absoluta certeza que vira o Sargento preenchendo o cheque de cinco mil reais, além do mais, o cheque de cinquenta estava no meu bolso todo picado. A não ser que...
Desculpei-me com o caixa e fui ao meu quarto, onde retirei os pedaços da folha de cheque recolhida no lixeiro e as estendi sobre a cama. Eis que minha suspeita se confirmou: o cheque picotado não era do velho Fioravante, mas sim de Gerson Oliveira, o nosso Sargento. O safado tinha enganado seu ajudado, trocou as folhas de cheque, aproveitando-se da cegueira do mesmo, e embolsando cinco mil.
O carro ficou pronto no outro dia eram dez horas. Eu já estava em pé desde às seis, esperando pelo velho, com o firme propósito de avisá-lo do golpe. Fioravante foi o último a deixar o quarto, seguido pelo salafrário, que cedia seu ombro militar em auxilio para a sala de café. Me sentei ao lado dos dois, para no menor descuido do soldado, colocar o velho a par da situação. Mas a oportunidade não surgiu; os dois não se separaram.
Por volta de oito e meia veio a informação de que o ônibus sairia às dez e meia. Eu tinha cerca de duas horas para denunciar o Sargento. Fiquei na periferia aguardando uma chance, mas ela não aparecera.
Em Feira de Santana Fioravante desceu, onde se despediu com tristeza de seu amigo, que o ajudara tanto naquela viagem. Os dois combinaram se contatarem por telefone, trocaram os números, se abraçaram e prometeram se visitar. Uma cena comovente...
Ao chegar-mos em Recife fui ter com o Sargento:
_ Quero falar contigo!
_ Ora! Nosso poeta – irônico
_ Eu vi seu golpe...
Ele permaneceu impassível
_ Golpe! Que golpe?
_ Do cheque... Você trocou o cheque do velho, fazendo-o pensar que estragado no caixa. Pediu um segundo e preencheu com cinco mil reais. Aproveitou-se da cegueira do homem para roubar.
O meu tom estava alto, fazendo com quem vários transeuntes parassem para observar a cena. Eu estava alterado diante da cara-de-pau do militar, e mais um instante terminaríamos o que começamos na Bahia. Mas o Sargento pegou sua mala, olhou bem no fundo de meus olhos e disse:
_ Prove, poeta.
Me deu as costa na direção do ponto de táxi.
Eu não podia provar nada.
Moral da estória: fiquei indignado e o soldado com cinco mil reais.

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