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Contos-->Óculos de Sol -- 09/04/2003 - 12:38 (FLAVIO DOS SANTOS FERREIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ÓCULOS DE SOL


I



A vitrine da loja repleta de variedade de óculos. Havia muitos modelos bonitos e de última geração. Muita gente lá dentro experimentando, porém ele se recusando a entrar. Tinha o dinheiro em mãos, mas estava com medo de entrar. Jamais tinha entrado em uma loja chique do centro. Jamais tinha comprado óculos de sol. E tinha que ser de marca. Logo ele, que sempre concebia que esses aparelhos eram para pessoas bonitas e ricas. Não para mancos de rosto e fracos de bolso.
Sempre quando comprava alguma coisa, ia sempre às feiras. Nunca às lojas chiques do Gilberto. Neste lugar o pessoal é mais exigente, observa as pessoas, os seus modos. Óculos de sol não se destina para qualquer um.
Mas naquele momento a implacável idéia lhe fez esquecer as fraquezas que julgava possuir. Neste momento o dinheiro falava mais alto. Com o dinheiro no bolso, mesmo pouco, a mancosidade do rosto se transforma em benção. Complicado caminho que seus olhos fisgaram! Também porque ficou namorando àqueles óculos há mais de seis meses?
Quem ganha salário-mínimo não tem condições de comprar óculos de sol — óculos de sol de marca. Agora ele tem, porque ajuntou dinheiro. Ufa! Longos e sofríveis meses para se livrar de um tormento.
Olhou de um lado a outro da rua. Não queria que nenhum conhecido lhe visse entrando na loja. Nenhum colega do trabalho podia vê-lo entrando ali. Logo aquela loja, que ele sempre chamava de casa de ilusões. Agora sabe muito bem que tinha que ser assim. Olhou de novo para as esquinas. Aliás, não parava de olhar para ambos os lados das esquinas. Olhou de novo, e eis um colega do trabalho se aproximando. Caramba! Cidade tão grande e, de repente, tão pequena para alguém sem fama como ele. Tinha que entrar, e entrou.
Desajeitado, punha as mãos no bolso, tirava-as, colocava-as novamente. Como os olhos sem óculos nos fazem lembrar que as pessoas são diferentes! Não sabia pois o que fazer. Se chamava a moça, se assoviava, para dizer que um freguês chegou. Se não foi notado é porque loja chique já sente o cheiro de pobre, e de longe. Não se pode gastar tempo com pobre! Os vendedores sabem quando um cliente é pobre. Eles demoram a atender deixando o pobre coitado babando as vitrines por longo tempo.
A demora no atendimento foi recompensada por uma morena de pernas longas que não coube em seus olhos mentirosos de japonês. Antes que ela lhe interrogasse, o nervosismo falou mais alto.
— Eu, eu, eu ... quero óculos!
Ele sabia que a elegante vendedora, de tailleur vermelho, tinha ficado sem graça, talvez por seus gestos repetitivos de colocar as mãos no bolso e tirá-las novamente. Porém a emoção falava bem mais alto do que o português atrapalhado que lhe saia naquele momento de euforia. Amealhou todo o ar que o pulmão podia e repetiu a frase, desta vez bem alto.
— Eu quero óculos, dona!
A vendedora de boca pequena acabou com a cara amarrada que o rosto ostentava por causa do atrapalhado freguês.
— De qual modelo, senhor? – disse-lhe sorrindo.
Apontou para um Rayn-Ban, de desenho arredondado e arrojado, que o brilho do sol batia no espelho d’água de frente à loja que, por sua vez, refletia nos óculos causando uma mistura de mistério e sedução que só o afobado comprador tinha enxergado.
Ela pediu o rapaz para se sentar. Entregou-lhe o modelo com muito cuidado para experimentar de frente ao espelho dupla face sobre o balcão. Que emoção segurar um verdadeiro óculos de sol! Logo um Rayn-Ban! O elogio da vendedora de que os óculos lhe pegaram bem, sem precisar experimentar outro modelo, foi o suficiente para iniciar a recuperação da sua baixa estima. Não foi preciso perguntar o preço, pois já sabia com muita antecedência. Pagou. Sim, pagou à vista, deixando a vendedora um tanto desconfiada da procedência do dinheiro. Fez gesto de que queria já guardar o produto, mas ela disse que ficaria mais bonito se ele saísse da loja usando o objeto. Óculos tão bonitos não podiam ficar escondidos.
É preciso vencer a timidez, pensou. Nada melhor do que vencer a timidez agora. A vendedora dos grandes olhos verdes champanhe tinha razão. Pôs a peça. Nossa, que emoção! Me sinto um novo homem. Bonito homem. Adquiri a grandeza de um homem sem cara amarrada. Virei um canalha em um simples colocar de óculos.
Não foi preciso, ao sair da loja, olhar para os lados para averiguar se vinha algum conhecido, mas recebeu um leve tapa nas costas. Quando virou-se, o amigo que tinha visto bem de longe. E o amigo riu, riu, riu.
— Não estou achando graça nenhuma, Felipe.
O amigo continuava rindo.
— Você está rindo da minha desgraça ou da minha alegria?
— De nenhum dos dois. Não me interprete mal. Achou que eu não tivesse visto você entrando na loja, seu bobo, mas eu vi você. Aquele desgraçado estava me enganando, foi isso que pensei quando você entrou na ótica. Quando me disse que ia ao médico por que estava com dor de barriga, eu não acreditei. Se chegou bem ao trabalho, como poderia ficar mal de hora para outra? Por azar seu, eu vi você entrando na loja. E resolvi expiar até este exato momento. Valeu a pena. E ri de você, de suas atrapalhadas, do seu nervosismo. A sorte desta vez te ajudou, colocando uma gata de pernas de outro mundo em seu caminho. Você é realmente sortudo, escolheu bem os óculos e escolheu muito bem a vendedora.
O amigo falava, mas Braga parecia estar longe. Não acreditava que a peça dos seus sonhos estivesse decorando seu rosto. Foi um longo tempo para comprar um remédio que destruiria a dor que machucava cada peça da sua vértebra.

II

Caminharam até o trabalho, bem devagar. Só o amigo falando. Não importava. O presente momento diferenciava-se dos outros. Agora, só queria ver o mundo sob outra perspectiva. O mundo dos óculos de sol. Totalmente diferente, tudo em preto e branco. Sensação nova, gostosa.
O restante do expediente não tirou os óculos, nem para ir ao banheiro, servindo de gozação para os amigos, que lhe chamavam de novo galã do pedaço. Se estava bonito, a chacota não interessava. Pura inveja. Óculos de marca não são para qualquer bolso raso.
Passou os dezoito anos de sua vida se perguntando porque não podia usar óculos de sol. Óculos de sol de verdade. A felicidade é que, de seis anos para cá, conseguiu um emprego de empacotador em supermercado no Gilberto. Decerto que não era dos bons, pois gostaria de ser mesmo era caixa que ganhava o dobro. Conseguido o emprego, o próximo passo, antes de calças e sapatos, seria adquirir um verdadeiro modelo Rayn-Ban.
Constatou algo interessante em Felipe, mesmo sendo amigos e vizinhos. Ele tornou-se à sua sombra. Ofereceu-lhe inclusive carona para casa, de moto. Primeira carona. Nunca havia lhe dado carona, apesar de morar perto. E Felipe tinha óculos de sol. Mas não era de marca. Foi comprado no camelô por uma ninharia. Apesar disso, sentiu em Felipe a leve inveja dos bobos, mas desapareceu imediatamente. Boa pessoa.
Não foram para casa de imediato. Tinha que haver comemoração na lanchonete. Afinal, mudança de vida merece respeito e louvor dos amigos.
— Sabe que você ficou galã com os óculos, Braga?
— Não vem com essa, Felipe.
— É sério, você ficou galã. Olhe para os lados, as meninas estão observando você. A sua pele escura e os óculos combinam. Pela primeira vez, eu estou sendo ofuscado por um rival.
— Eu não sou seu rival, sou seu amigo, embora você seja mais assediado pelas meninas.
— Desculpe, eu não quis dizer isso.
Braga sentiu vontade de contar algo. Contar algo que há muito silenciou, mas que de vez em quando lhe perturbava o coração.
— Não quer saber por que eu comprei os óculos? Alguém precisa saber, e você é essa pessoa, Felipe.
— Você não precisa me contar nada, sei onde você mora e trabalha, sei qual horas acorda e levanta. Contar o quê?
— Quer ou não quer ouvir?
— Tudo bem, eu quero.
— É ruim ser discriminado, Felipe. Não digo ser discriminado, sentir-se discriminado. Pertencer a um lugar, e não pertencê-lo ao mesmo tempo. Poder usufruir de alguma coisa, e por outro lado, não poder usufruir. Como no paraíso do Éden, uns poder tocar nos frutos da árvore, outros não ter esse direito. Destrói a gente por dentro. Bem devagar, destrói. Por exemplo, desejar uma garota, e saber que um boa pinta chegou primeiro. Sabe por quê? Porque tinha óculos de sol. Tudo bem que o desgraçado fosse galã. Antes de tudo, usava óculos de sol. Pior ainda, de feira.
— Você está falando de mim, seu amigo.
— Desculpe, não é de você. Não leve por esses caminhos. Eu torço para que você compre um igual ao meu.
— Continue então.
— Como estava dizendo, descobri que garotas gostam de caras que usam óculos de sol. Mulher gosta disso, de caras que usam óculos de sol. De caras que lhe transmitam maldade no rosto. De caras que lhes transmitam que é marcho. Não só por dentro, mas por fora, também.
— Como são as coisas, Braga. Sempre considerei você um cara tímido. De casa para o trabalho, e do trabalho para casa. Não acreditava que você adorava óculos de sol. Você deu um grande passo, cara.
— Um grande passo ou não, a verdade é que eu perdi uma garota para um canalha. Há um ano isto me aconteceu. Aconteceu com uma linda e desbocada loira oxigenada do colégio, quando eu terminava o último bimestre do secundário. Havia tempo que eu mandava vários bilhetes para ela, através de minha melhor amiga, que infelizmente trocava as minhas mensagens. A falsa amiga rescrevia-os, dizendo que havia um admirador secreto. Com certeza que a descrição do paquera que a Teresa fazia não se referia a mim, como eu fiquei sabendo depois, mas ao Tom, a quem ela ajudava, às escondidas. Todos os dias eu mandava bilhete de apaixonado. Todos os dias a Teresa rescrevia o bilhete. O último bilhete — ah, o último bilhete — que informava a data, o local e o horário do nosso primeiro encontro, não chegou às mãos da mulher, porque o admirador que usava óculos de sol tinha chegado primeiro. Maldito dia que me fez crescer uma raiva contra todos que não usam óculos de sol. Antes de mim, o filho-da-mãe chegou. A menina ficou fascinada pelo canalha. O cara não tirava de jeito nenhum os malditos óculos, como eu mesmo averiguei, de longe, vendo os dois abraçados. Para a minha infelicidade, ele sabia dos segredos da sedução. As meninas gostam. Admiram.
— E você aceitou a derrota?
Braga pensou, e disse-lhe:
— Eu não aceitei a derrota, se é isto que quer saber. Resolvi me vingar comprando óculos de sol de verdade.
— E agora, vai para o ringue?
— Isto é que eu não sei, Felipe. Vale lutar tanto por um amor baseado em óculos de sol?
— Olha cara, a gente está sempre ganhando e perdendo. Ora a vitória está em nossas mãos, ora a tijolo também está em nossas mãos. Quero dizer que o mundo tem muitas garotas. Cada uma mais linda que outra, ou mais feia que outra, sei lá. Em breve, você encontrará uma outra, e verá que o mundo é um caminho de lições. A gente anda, anda, e a gente acaba caindo em nova lição. Você vai ver.
— Está certo, não tiro a sua razão, Felipe.
Neste momento a atendente chegou. Pediram coca cola.
— Você não imagina como foi difícil comprar os óculos, Felipe.
— Você é doido, realmente comprou óculos caros.
— Não falo do preço. Falo das amarras que existe dentro da gente, de barreiras que nenhum Raio X consegue detectar. Nenhum aparelho percebe o que se passa por trás dos olhos da gente. Se percebesse o mundo teria menos problemas, pois os problemas das pessoas estão atrás da cor dos seus olhos. Se as pessoas fossem cegas, a violência seria bem menor e não caberia nos jornais. As dificuldades das pessoas são os olhos.
— Entendo.
— Não, não me entende. Não imagina como é difícil ser chamado de besta, de ser passado para trás por um miserável que tem óculos de sol. Não, você não sabe, Felipe. Esforçar-se para entender é uma coisa. Sentir a dor é maior do que a gente; é outro sofrimento que ninguém sabe, a não ser a pobre da vítima. Se torna pior quando isto é uma rede, rede de proporção gigantesca. Isto é que é pior. Vai para um lugar, lá está o problema. Foge para outro lugar, lá também está a rede. A utopia está nas pessoas de corações fingidos. Igualdade? Palavra inventada pelos galãs para dizer que somos todos iguais perante as mulheres. No fundo, no fundo, eles querem ser os donos de tudo. Isto, Felipe, você sabe muito bem. Mais do que eu, você sabe. E tem mais. O que me preocupa é a validade dos óculos de sol. Até quando vou poder olhar o mundo, o mundo dos óculos de sol, mundo preto e branco, se tudo que a gente vê, sem objeto algum, é colorido?
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Comentários: flaviosf@tcu.gov.br
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