Primeiro remexer sentimentos antigos; depois, desatinos à parte. Tudo ultrapassado, já foi tempo, cinzeiros e cinzas, a lembrança sorri com o cigarro, a completar o cenário o sofá angustiado de antes. De antes? Fumaças espalhadas criam formas, quase espirituais; algumas fabricadas pela imaginação fértil dos "sensíveis". Mas as formas infestam o quarto, círculos que passeiam e se desfazem, vinculamdo-se à atmosfera. Como lembranças.
"Você se preocupa com esse sentir coisas baratas e dizê-las. Preso ao pecado da inteligência, sente-se culpado por ouvir músicas prosaicas,da parada de sucessos americana - esse enlatados. Sente vergonha de se emocionar. Não tenha medo de ser prosaico, ou idiota, ou prosaico.. ou idi.."
Ele até que abriu a janela. O ar da cidade é sufocante, como os cigarros... nos bailes eu fumava mais de um maço, na verdade levava dois, um em cada bolso, pros amigos o mais barato. Tímido, não dançava separado, e o baile, já naquele tempo não era aquela coisa arquetípica dos encontros rocambolescos. No intervalo, quando tocava música lenta, andava meio tonto pela pista, querendo dançar, colar meu rosto em outro, sentir um corpo diferente do meu. Rodava, rodava, até que me via sentado na arquibancada da piscina, assistindo a um espetáculo encenado pelo mundo, como num romance quando se devora as páginas com medo de que um vento venha desfazer as linhas;um romance cujos personagens estão a sua frente, sem poder tocá-los (quem não sonha um assim); tinha medo até de me apaixonar, no caso de acontecer... rodava meio tonto na pista, de rostos vítreos, cabelos de suor, beijos alheios... e lá estava eu a olhar na piscina o filme de uma vida inteira. Entre os dedos engasgados cigarros.
Mas a janela aberta ilumina a cidade. Sim, mil janelas formas essa constelação moderna - assim saímos do quarto para participar de galáxias anónimas, música no ar, armados os sentidos a vagar em pistas, em telas e piscinas. Acaba um cigarro.
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