Pereira beirava os oitenta. Mas não queria morrer. Explicava:
— Tenho ainda muitos anos de lucidez para oferecer aos espíritos que desejam comunicar-se com os vivos.
De fato, todas as quintas-feiras, lá estava ele no centro, repetindo os pensamentos que lhe eram depositados na mente, seja em voz alta, seja por escrito.
Um dia, escreveu:
“Não venha para cá gagá. Aceite a sua sorte e disponha-se a enfrentar a viagem, sem ventanias.”
Como se tratasse de um texto curto, sem endereço certo, omitiu-o durante a leitura das mensagens, tentado deveras a fazê-lo desaparecer, já que remetê-lo a outro destinatário nem pensar!...
Em casa, pôs-se a refletir a respeito de passar desta para melhor, concluindo:
“É perfeitamente justificável que me observem a necessidade de chegar com a mente esclarecida e o coração confiante ao outro lado. Mas, do modo como o fizeram, dá a impressão de que conhecem dia e hora de meu trespasse. Então, para tirar qualquer dúvida, vou desejar que me escrevam, enquanto estiver inconsciente, durante a próxima sessão, a data exata ou aproximada da minha morte.”
Pensou em esquecer a reflexão, entretanto, durante toda a semana, martelou na cabeça a questão fundamental. Na quinta-feira seguinte, sentiu-se fortemente aliviado quando deixou de reconhecer o local e a hora, concentrando-se como sempre no trabalho mediúnico. Ao despertar, lá se consignava, em folha à parte, uma frase que, manifestamente, se referia à pergunta:
“Não sabemos e, se soubéssemos, não diríamos. Contudo, chegar aqui gagá irá provocar alguns meses de restabelecimento mental.”
Não querendo perder tempo, Pereira imediatamente interrogou, fazendo-o em voz alta, em plena reunião, quando um parceiro se ocupava com dizer a prece de encerramento:
— Que mal pode haver em auxiliar os irmãos, mesmo que isto nos custe alguns anos de padecimento?
A pergunta levantou séria celeuma, cada qual desejoso de dar conveniente explicação para o tema ou para a necessidade dele.
A verdade é que ninguém entendeu toda a extensão da demanda por lhes faltar o início do enredo. Nem Pereira estava muito inclinado a elucidar o ponto essencial. De fato, acabaram concordando em que o labor de tantos anos representava um padecimento para o corpo encarquilhado de alguém na casa dos oitenta.
Mas Pereira levou consigo a certeza de que valeria a pena sofrer no etéreo em troca da satisfação de ver legitimado um bem que nem todas as criaturas são capazes de exercer. Por isso, evitou novas consultas e continuou apanhando as mensagens até que seu relógio biológico assinalou o final de suas atividades lúcidas.
Ainda que insistisse, já não concatenava as idéias nem chegava a organizar um texto coerente que pudesse representar alívio para as dores morais dos consulentes. Chegou ao ponto de não poder refletir sobre o que ia fazer no centro, trocando as funções, sem reconhecer os parceiros.
Uma bela tarde de verão, em casa, sem pensar na vida ou na morte, abandonou a carcassa sobre o leito e se entregou aos guias que foram recebê-lo. Teria reconhecido de imediato sua condição de espírito errante? É bem pouco provável já que, toda quinta feira, se veste com o melhor trajo e se dirige ao centro espírita, agindo ainda como médium, recebendo comunicações que não lê porque todas dizem respeito à sua própria pessoa.
Agora, cinco anos depois, começa a atormentar-se com o fato de que deveria falecer, para subir ao patamar dos trabalhadores leais à doutrina espírita.
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