Sérgio Eustáquio da Silva, pós-graduado em história moderna e contemporânea, professor da E.M. Hélio Pellegrino(Belo Horizonte) e componente do Depto. de Educação da Regional Norte da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, e-mail: ser.eu@bol.com.br
No momento em que a população assiste assustada ao aumento da violência e a mídia vende-a como produto escrito ou visual, quero propor uma mudança de enfoque na forma de enxergar esse problema: pensar a violência como conseqüência de um processo democrático tardio, elitista e discriminatório que criou uma sociedade desigual e afastada da participação decisória, cuja violência primeira está na forma excludente que o modelo político social brasileiro impõe para a maioria da sua população.
A democracia assumiu na teoria política moderna diversas concepções, afastando-se da sua formulação original na Grécia antiga ( “demos” = governo e “kratos” = povo, quer dizer, governo do povo), onde todas as pessoas consideradas cidadãs participavam das decisões segundo o princípio da predominância da maioria (democracia direta).
Modernamente a democracia foi concebida sob a forma da participação representativa, na qual os poderes da maioria são exercidos num sistema de contrapesos constitucionais destinados a garantir a todos o exercício de direitos individuais ou coletivos, o que nem sempre acontece na prática.
Uma outra forma para a palavra democracia diz respeito à sua utilização para designar qualquer forma de governo, democrática ou não - nos dois sentidos acima - mas que se propõe a diminuir os desníveis sociais ou econômicos existentes entre as diversas classes e camadas da população e levou ao surgimento de um conceito político que expressa uma dicotomia, qual seja a de “Democracia Totalitária”, e foi usado para designar regimes como o da antiga União Soviética após a Revolução Bolchevique até a Perestroika e a Glasnost.
No Brasil qualquer que seja o significado utilizado é fácil perceber que essa palavra não consta da prática política brasileira, numa acepção mais abrangente.
Enquanto “governo do povo” os modelos aqui estabelecidos distanciaram-se “ad infinitum” desse ideal. Durante esses 500 anos o poder foi monopolizado por classes bem delimitadas historicamente, e durante a colonização (e mesmo muito tempo após a independência) índios, negros, pobres e mulheres foram afastados da esfera decisória, chegando mesmo - no caso de índios e negros - a serem considerados seres sem alma, inclusive com o aval da igreja.
Durante o período monárquico (1822-1889), computados o voto censitário e a continuidade do alijamento político da maioria da população, vê-se que a questão da democracia coloca-se somente de forma embrionária no Brasil, limitando-se à tentativa dos grandes proprietários de terra em controlar o poder executivo do imperador na Assembléia Constituinte de 1823 e à implantação de um “parlamentarismo às avessas”, pensado para solucionar conflitos e tensões entre liberais e conservadores, além da repressão a alguns movimentos sociais (Cabanagem, Balaiada, Sabinada e Farroupilha), deixavam antever o longo caminho a ser percorrido pela democracia brasileira.
Como forma de governo representativo o retrospecto também é dramático. Ditaduras de longo prazo como a de Vargas e a ditadura militar pós-64 até 1985, fechamentos do Congresso Nacional, manipulações de eleitores, fraudes, conchavos políticos como a “política dos governadores” e a “política do café-com-leite”, controle dos sindicatos, governos personalistas, utilização de “currais eleitorais”, Atos Institucionais, torturas, prisões e mortes arbitrárias, utilização da máquina pública para fins particulares e corrupção foram e ainda são práticas comuns no cotidiano político brasileiro.
Enquanto forma de governo que se propõe a diminuir desigualdades e desníveis sociais e econômicos, a democracia brasileira tem deixado muito a desejar. A política neoliberal, empreendida de forma mais sistemática desde o governo Collor e continuada por FHC, mostra-se como tiro que saiu pela culatra, causando danos sociais e econômicos difíceis de serem solucionados a curto e médio prazo: desemprego, política recessiva, desmonte do patrimônio estatal, subjugação ao FMI, caos da saúde, educação e falta dos direitos básicos fundamentais assegurados pela Constituição para a maioria da população brasileira.
Assim, critica-se aqui, não os avanços democráticos nem o conceito de democracia - entendida aqui como um sistema social que prevê mecanismos efetivos de participação popular nas decisões políticas, além da diminuição das desigualdades e desníveis sociais - mas a democracia amputada e incompleta que caracteriza-se pelo monopólio político por uma pequena elite e grupos encastelados nos órgãos públicos, muitos deles oriundos de outros períodos históricos, outros apadrinhados por antigos laços de parentesco com o poder.
Concluindo: para compreender-se o fenômeno da violência cotidiana é necessário antes de tudo desmistificar a construção da democracia no Brasil, na forma equivocada e elitizada em que se apresentou e ainda apresenta, onde a alguns é dado a carteirinha e as benesses de cidadão, enquanto a milhares de outros ela é negada como direito de fato.