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Contos-->O tempo do potreiro -- 24/03/2003 - 08:25 (Clodoaldo Turcato) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Me lembro agora, caro Apolonio, como fora linda a nossa infância. Como corríamos livres pelos campos verdes de Caibi, brincando com carrinhos de rolamento, descendo as ladeiras do potreiro do Domingos Gallon; um vasto terreno gramado, todo livre, para brincarmos. O único atrapalho eram as vacas e os não sei quantos quero-queros, que infestavam o local. Nosso passatempo predileto era descer a ladeira até atingirmos a sanga, acabando, vez por outra, dentro d’água.
Éramos arteiros pra caramba! Dentre nossas traquinagens, tinham duas que fazíamos freqüentemente: uma era descobrir um ninho de quero-quero e ameaçar mexer nos ovos. A mãe irrada avançava sobre nós, com vôos rassantes; daí nos jogávamos no chão, protegendo-nos de seu ataques. Outra era ir ao poço do Mucelim espiar as filhas do Armelindão tomar banho. Elas tinham seus treze ou quatorze anos; umas com o corpo formado, outras formando, escondidos em roupas longas. Não usavam biquíni, como hoje em dia, tomava banho vestidas. Nós não tínhamos a maldade dos Homens, apenas ficávamos no meio das pedras uivando, feito lobos, na vã tentativa de assusta-las. Quando elas percebiam nosso falsete, juntavam pedras de rio e atiravam em nossa direção, afugentando-nos aos gritos de pirralhos.
Com o tempo, a brincadeira com os quero-queros perdeu a graça; espiar as meninas era cada vez mais atraente. Não entendíamos direito porque aquela roupa colada no corpo, aprofundando os contornos pueris, cativava-nos daquela forma. Era algo mágico para nossos doze anos.
Vivíamos outros tempos, sem as facilidades de agora, que a criança de sete anos já sabe de tudo. A gente nem imaginava o que seria aquela comichão na pele, uma vontade doida de tocar naquelas mulheres; morder aquelas tetas...sei lá!
Certo dia, lembra-te do Gerson Fiorentin? - aquele que casou com a filha do Zélio Slaviero; acho que se chamava Derlaine... - Bom, esse aí. Fomos, como todas as tardes, espiar as moças tomar banho. Agora fazíamos o mínimo de barulho possível, afinal o objetivo era não espanta-las. Não entendíamos porque, mas depois de uns tempos, elas começaram a se esconder, entrando na água assim que nos viam. Alguma coisa tinha mudado. Cheguei a pensar que estávamos cometendo algum pecado fazendo aquilo, coisa feia, àquelas proibições do catecismo me vinham à cabeça nessas horas. Assim, sentávamos sobre um pé de arraticum , donde tínhamos plena visão da sanga. Por várias vezes pegamos elas trocando de roupa e fazendo umas coisas que nossa inocência não compreendia: uma ficava vigiando, enquanto as outras beijavam-se pelo corpo todo, até a vagina; gemiam alto. Depois de alguns instantes trocavam de parceira, fazendo a roda completa. Mas como ia dizendo, naquela boca da noite estávamos de plantão, quando o Gerson apareceu. Mal chegou e já foi entrando. Todos ficaram nus. Iniciaram uma beijação só, a mais velha agarrou o pênis duro dele, chupando-o . Fizemos a maior cara de nojo. O que seria aquilo? Em seguida ele ficou em cima de uma delas, que abriu as pernas, e iniciou movimentos verticais, aumentando a pressão, até gritar alto e parar cansado. Todos ficaram rindo por uns quinze minutos, até que reiniciou o ritual, agora com outra. Demorou-se um pouco mais, mas o movimento foi o mesmo, até o desmaio. Meia hora mais tarde repetiu-se com a mais novinha, uma menininha, com seus treze anos. Ela pareceu não gostar, pois chorou bastante, quando foi consolada pelas mais velhas. “Da próxima vez você vai gostar.” Já era escuro quando fomos embora.
E foi assim por muitos dias, e nós lá, firmes, sem que ninguém soubesse. Realmente, as mais novinha não chorou mais das outras vezes, aceitou com naturalidade e mesma alegria das velhas. Certo dia as moças se mudaram. Não tínhamos mais o que olhar. O carrinho de rolamento perdera a graça e os quero-queros ficaram ainda mais chatos. Tínhamos quinze anos.
Um dia aprendemos o que tudo aquilo significava, principalmente a comichão pelo corpo: desejo. Tudo aprendido nas aulas de educação sexual, ministradas pela professora Élida; motivo de vários abaixo assinados na comunidade para retirá-la. Estava ensinando coisas proibidas, safadezas, para a molecada. Lembra a vergonha no começo das aulas? Aqueles novos todos: menstruação ( que mamãe falava misturação), óvulos, ovários, útero, testículos, pênis, saco escrotal... Jesus! quanta novidade. A professora com toda a sua bondade explicou tudo, detalhe por detalhe, todo o aparelho reprodutor, concepção e nascimento. A cegonha morreu nesse tempo. A cada aula entendíamos mais o que acontecera no poço do Mucelin. Aí nossa mentora nos falou da masturbação, explicou-nos o movimento correto e tudo. Naquele dia, que não sei se era manhã ou tarde, ela abriu o mundo pra gente . Eu mal cheguei em casa e fui experimentar a novidade – imagino que tu também . Ela tinha razão, é uma das coisas mais maravilhosas do mundo.
No outro dia ficamos quietos, mesmo com o rosto denunciando a nossa iniciação. No recreio trocamos confidências, relatando a sensação de cada um e os projetos para o futuro. Nesse dia matamos nossa doçura. Nesse tempo já tínhamos assassinado Papai Noel, Coelho da Páscoa e a Cegonha. Enquanto o carrinho de rolamento enferrujava, corríamos para descobrir o novo universo: as mulheres. Além de espiar namorados, folheávamos, às escondidas, revistas eróticas, trazidas por companheiros um pouco mais velhos. Nossos olhos enxergavam a maldade e sonhávamos com nossa primeira vez.
Com desasseies anos caiu o resto da candura que ainda tinhamos. Soubemos pelo Nino , filho do Santo Gasparin – lembra dele? – que a Marlene Pholman, aquela loirinha bonitinha, iam tomar banho no Iracema, todas as tardes. Era informação quente. No mesmo dia fomos ao local indicado. Meu coração, e creio que o seu também, saia pela boca, afinal todos falavam que a Marlene era fácil; isso nos atiçou. Realmente era verdade, ela estava lá. Nos colocamos no meio de um pé de uveira, donde podíamos vê-la se esbaldando. Uma angústia danada me subiu à garganta; fiquei ereto na hora. Descemos para nos aproximarmos mais, você fez tanto barulho nessa tentativa, que nossa presença foi denunciada. A moça nos olhou, a principio assustada, depois se pôs a rir. “Olha, o filho do Jura e do Eulálio! A dupla de bocós”.
Eu queria retornar, mas tu, num gesto de bravura, pediu “se ela não dava pra nóis.” Foi assim, lembra? Não sei de onde tiraste tanta coragem. Ela riu ainda mais alto. “Vocês?” E depois, mais calma. “Nunca comeram ninguém?” Sem a menor vergonha, respondeste que não. O Diabo desceu em tu, foste para perto dela e lascaste um beijo tão forte que ela apavorou. “Ei! Quem te deu essa liberdade, menino?” “Por favor, Marlene. Eu te imploro. Ninguém vai saber mesmo.”
Creio que foi por pura piedade que ela concordou. E ali mesmo, no meio do Rio Iracema, tivemos nossa primeira vez. Eu não consigo descrever a emoção, uma sensação de quebra. Naquele dia a vida começou a correr; rompemos com a infância.
Depois do segundo grau eu fui embora para o Mato Grosso. A vida me atropelou e a alegria ficou pra trás. Tu ficaste em Caibi e progrediste como colono. De nossos dias de infância nunca mais conversamos, tudo foi engolido, junto com o surgimento da calvície. Trilhamos por caminhos distintos . Tu tiveste coragem somente naquela tarde, não te aventuraste a mais nada. Eu me tornei corajoso somente daquele dia em diante e parti para longe. Isso fazem cinquenta anos, parece mentira, mas são cinquenta anos sem nos ver, sem notícia alguma. Já somos desconhecidos. Que pena!
Vendo tu deitado neste caixão ornamentado, me volta nossa infância; os dias no potreiro do Domingos Gallon, fomos os últimos à tais brincadeiras. Antes de vir prá cá, passei pelo potreiro. Tudo estava lá: as árvores, a sanga, a ladeira e os quero-queros. Mas ninguém brincando, ninguém jogando bola, um deserto. Certamente os meninos estariam jogando vídeo game e as meninas vendo televisão. Que tristeza, caro Apolonio... E olha que nos dois ajudamos a construir o mundo do jeito que está. Tu dirias que não, mas é verdade. Ninguém mais é inocente, bocó, como a gente era. Será que ainda existem aulas de educação sexual nas escolas? Não, creio que não. Hoje em dia já ensinam como usar camisinha. Pois é, ninguém segura este mundo mesmo.
O pior de tudo é que somente hoje, minutos ante da missa fúnebre, me dei conta do que fizemos. Daqui a pouco será a minha vez, e veja que não consigo explicar minha saudade, não consigo entender porque não fizemos este tempo tão bom como fora o nosso. Há! caro Apolonio, foram bons tempos. Tempos que uma mulher era um mistério, longe dos cartazes de propaganda de cerveja. Tempos que nosso mundo era acabar a aula e irmos para o potreiro brincar com o carrinho de rolamentos.
Vou de volta para o Mato Grosso, creio que fiquei aqui por tempo demais. Não conseguiria ver o caixão descendo à cova. Me perdoe. Não é descaso nem nada, apenas não quero ver o pouco que restou de minha vida enterrar-se contigo.
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