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Contos-->Contornos -- 23/03/2003 - 21:27 (Patricia Rosa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Cheguei naquele quarto empoeirado e vi, de forma distinta de tudo o mais que havia ali, o quadro de um barco ancorado no porto. O quadro estava torto, ou talvez fossem meus olhos embaçados de poeira, minhas narinas irritadas, minha boca seca. Fui até ele tropeçando nas coisas que estavam espalhadas pelo caminho, sem mesmo perceber que pisava em algumas lembranças, em pedaços amassados de verdades e mentiras descobertas a custo de lágrimas e noites mal dormidas.
Caminhei até aquele quadro, que eu via torto, com aquela mesma convicção que temos aos dois anos de idade, que vamos conseguir chegar ao outro lado da sala, sem a ajuda da mão que, mesmo que nosso orgulho não reconheça, está ali para nos amparar caso não consigamos o nosso intento. Meus passos bêbados tinham um objetivo, queria chegar até a parede do outro lado do quarto e antes de mais nada corrigir aquele quadro, colocar o barco no prumo, talvez ele saísse do porto se não estivesse tão torto.
A cama estava entre nós, não consegui ver o que havia ali em cima, talvez alguns livros, um travesseiro velho, um cobertor carcomido, um colchão manchado de suor e de gozos esquecidos. Não quis, nem sei porque, apoiar-me na cama para alcançar o quadro, contudo, minha mão não alcançava meu intento, senti como que uma angustia percorrer meu corpo, um medo de encostar naquele móvel, medo que não tinha justificativa, um simples móvel coberto de poeira, esquecido durante anos naquele quarto fechado no porão, não poderia, decerto, me fazer qualquer mal. O fato é que ao olhar atentamente para a cama senti um suor estranho correr por todo meu corpo, algo indescritível como um suor da alma, frio, mas com algo de vida que talvez já tenha se ido, sem dizer adeus. Meu corpo aparecia diante de mim estendido num lençol limpo que com certeza não poderia estar ali, me via nua, como se me desprendesse do meu corpo e agora eu fosse só um espírito. Olhei para mim, sorri de mim, do meu rosto amedrontado de pé me fitando.
O tempo foi passando e eu só pude ficar ali imóvel, comigo deitada numa cama que não tinha poeira e um quadro torto de um barco ancorado no porto. Minha imobilidade aos poucos foi me dando uma sensação desagradável de mal estar, de impotência. Ao mesmo tempo, o mofo espalhado pelo lugar ia me asfixiando, aos poucos comecei a sentir tontura, enjôo, raiva, desprezo por aquela situação ridícula de estar impedindo a mim mesma de fazer um gesto simples, colocar o joelho sobre a cama e arrumar o quadro.
Já nem me lembrava ao certo o que me levou a entrar naquele quarto fechado, depois de tanto tempo esquecido no porão. Um pedaço de casa onde só se guardavam lembranças que não teriam justificativa de ficarem expostas na sala, ou em qualquer parte da casa. Olhei para os lados em busca de socorro, queria procurar uma janela, sabia que havia uma em algum lugar, um fosso de luz na verdade, para que algum ar puro entrasse ali e me deixasse respirar.
Meu desespero pela asfixia foi aumentado, uma fresta de luz entrava num canto, num esforço hercúleo dei alguns passos e abri, num empurrão, o basculante pintado de negro por algum sádico que quis transformar meu mausoléu de lembranças enterradas, num verdadeiro túmulo do passado.
O ar aos poucos foi melhorando meu estado físico, mas minha obsessão pelo quadro continuava a mandar em todos os meus pensamentos, dei uma volta rápida com meu corpo, respirei firme algo daquele ar que agora melhorava o ambiente, andei com firmeza, foi então que eu vi na parede contígua um espelho, manchado, quebrado, meio coberto por uma manta velha, mas eu me vi, olhei para mim no espelho e senti uma nova onda me invadir, uma força diferente me contaminar como um vírus que a ciência jamais irá conseguir catalogar. Com este novo combustível de vida encarei minha imagem lânguida deitada de pernas abertas, sexo úmido, seios intumescidos, olhar de prazer, mostrando ser aquela de mim que tudo podia e que estava agora me desafiando a fazer um pequeno gesto. Debrucei-me sobre minha imagem, toquei o quadro, dei um prumo aquele navio. Era o que me bastava, porque já nem sabia porque entrara ali depois de tanto tempo sendo algo de mim que vivera sem aquelas lembranças.
Deixei o resto para lá, chutei os empecilhos do caminho e decidi fazer uma faxina geral naquilo tudo, ao sair, olhei mais uma vez para a cama, eu ainda estava lá, mas agora com um sorriso de gratidão estampado nos olhos.

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