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Contos-->Um causo daqueles -- 15/03/2003 - 10:31 (Clodoaldo Turcato) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Eu conheci este sujeito numa de minhas viagens a Chapecó, utilizando os confortáveis ônibus da Reunidas, que na época transportava os pobres mortais oestinos, de cidade em cidade, naquele interior de Santa Catarina. Estava eu lendo o Diário Catarinense, páginas de esportes, passando pela de economia e finalmente os Classificados, quadro Acompanhantes. Eu adoro ler aqueles anúncios, tais como: “Luiza, vinda agora de Goiânia, seios durinhos, bunda empinadinha, corpo de modelo, pronta para atender seus mais íntimos desejos. Ligue fone tal”. Toda àquela sexpropaganda me fazem viajar por bundas, seios, pernas, oral, anal, dinheiro, mentira, fantasia, etc.
A primeira parada era Palmitos. Chato ter de parar em cada cidade, ainda mais em uma região onde a distância entre as mesmas é pouca. Mas era meu perecer. Entrou um sujeito e mirou meu acento. Não que eu fosse um privilégio, mas por não ter outro mesmo. Tinha um banco vago, com um alemão comendo salame e pão. Entre o bafo de salame e eu... adivinhem que foi o escolhido. Só o notei quando sentou-se ao meu lado, sem pedir licença. Parecia grande, dois metros, calculei. Com um chapéu de escoteiro, casaca de escoteiro, botas de escoteiro, lenço de escoteiro, cheguei a conclusão que era um seguidor de Baden Powel.
_ Lendo acompanhantes, hem!
Sim. Esta foi a primeira frase que o cara me direcionou. Fiquei paralisado. O vivente mal sentou e começa um dialogo neste tom?! Poderia ter usado uma expressão como: “Quente não!”. “Aceita alguma coisa?”. “Será que vai chover?”. Enfim, aquele monte de expressões próprias para quando você quer iniciar um bate papo, principalmente dentro de um ônibus lotado. Fiquei intrigado, será que estava dando bandeira com o jornal? Não era possível. Vai ver que o cara se enganara.
_ Como?
_ O jornal... Esse ai – apontando para o Diário - está lendo os Classificados na seção acompanhantes.
_ Não - titubeando.
_ Fique à vontade, não se preocupe. Você acha que alguém daqui destes colonos vão saber o que é acompanhante? Mal sabem o que é um jornal. Quer ver?
Levantou-se na poltrona e gritou.
_ Ei, o meu amigo aqui esta lendo Acompanhantes... Pode?
Todos olharam para o escoteiro sem entender nada. E eu pasmo, num istmo de vergonha e raiva, mas boquiaberto com a sua audácia.
Sentou-se como se nada tivesse acontecido. Puxou de uma mochila que carregava uma revista em quadrinhos americana. Lembro-me do titulo “ The Spirits”. E eu ai sem ação. Cheguei a imaginar que tudo aquilo não tinha acontecido. Mas era só olhar para o lado e lá estava aquele bonachão sem vergonha lendo com os lábios coisas como “God”, “please Mister Gordon “.
Já na terceira marcha é que ele voltou a se expressar.
_ Meu nome é Samuel. Você é o Clodoaldo. Sei por que o vi dando uma entrevista no SBT sobre a Liga Catarinense de Futebol Feminino. Futebol feminino e Classificados de acompanhantes; que salada, hem!
Mas que rapidez. Eu tinha dado uma entrevista minúscula na televisão regional, coisa de um minuto, já fazia mais de um mês, nada de relevante; imaginei que ninguém tivesse dado pelo fato. Mas não, meu novo amigo lembrara.
_ Prazer...
_ Pôxa, parece assustado. Por quê?
_ Nada não. Apenas para mim não é comum um sujeito desconhecido sentar-se ao meu lado e adivinhar quem eu sou, o que leio, o que gosto, etc.
_ Ah! perdoe-me. Eu sou meio rápido. Mas não é por mal, eu apenas quis me aproximar de você de uma forma diferente de que o “será que vai chover?”
_ Eu não vi você no grupo de escoteiros!
_ Não, não sou não. Este uniforme eu emprestei de um colega meu aqui da cidade. Devo devolver da outra vez que vier por aqui.
_ Vem seguido?
_ É a primeira vez.
_ Tem amigos?
_ Nenhum.
_ E o uniforme?
_ Estava no varal.
Ainda com um sorriso maroto nos lábios, pegou meu jornal e iniciou uma série de teses a respeito de cada anúncio.
_ Veja este aqui:
“Lolita, seios duros, bunda semelhante à Carla Perez, pronta para suas mais variadas fantasias. Venha me conhecer. Hotel, Motel ou Residência. Fone Bam ba bam”.

“Simone, morena, gostosa. Sem restrições. Ligue Já, Fone Tal”.
“Camila, morena, alta, olhos verdes, seios durinhos, do jeito que você gosta. Atende homens, mulheres e casais. Venha viver as mais loucas fantasias. Fone Tal”
“Carla e Manuela, duas panteras pra você. Venha viver seus mais loucos desejos. Ligue já. Fazemos oral (até o fim), anal completo. Fone Bam Bam Bam”.
E assim foi lendo os anúncios, todos de forma cativante, absorvendo cada detalhe. Quando finalizou me devolveu o jornal e perguntou:
- Qual destes você mais gostou?
- Como?
- Os anúncios...
- Bem, talvez o quarto seja o mais interessante.
- O da Camila e Manuela?
- É.
- Eu também gostei mais deste. Parece-me o mais chamativo. Fico pensando como devem passar bem aqueles Cheiques, com aquela mulherada toda.
- Com certeza.
A nossa conversa começava a fluir. Além do assunto atual, tendia a seguir novos rumos, bastante interessantes. Mesmo ainda surpreso com aquele homem, já estava gostando de ter alguém tão corajoso para minha companhia; dialogar sobre mulheres é super agradável.
- Qual a sua profissão?
- Vadio...
- Como?
- Sou um vadio. Ando por aí por esse mundo de meu Deus, sem destino, sem lenço e sem documento.
- Pôxa vida que legal. Imagina só viajar sem nada pra pensar, sobreviver de sonhos – desbarratinando.
- O que que é isso, pô? Você esta brincando, não tá dizendo o que pensa.
- Claro que estou.
- A é ? Você esta dizendo apenas coisas bobas para me agradar.
- Olha, eu gostaria de continuar o nosso ....
- Não – interrompeu com veemência- saber o que eu faço; com quem fico; onde vou é realmente importante pra você? Daqui a um quilometro já esquecerá de tudo. Lá no fundo você quer saber...
Parou.
Vi a irritação em seus olhos. Como vi chegando, pude notar saindo.. Olhava o vazio do asfalto sem mover um músculo . Eu fixei de tal forma naquele quadro, que o mundo parecia não existir. Era a saída de emergência, a janela, o Samuel e o asfalto passando a noventa por hora. Quando de repente virou-se e sorriu.
- Veja que coisa linda a criação, tudo tão próximo e nós tão distantes...
Voltei a ouvir o motor.
- Vai a Chapecó?
- Não sei.
- Estranho...
- Sério?
- Sério.
- Estranhas são as pessoas querendo saber de tudo sobre nossas vidas. Aonde vai, com quem esta. Isso é estranho. Indiscreto; horrível.
- Você é bem fora dos padrões – exclamei.
- Padrão...Eis a palavra chave. Existe um padrão para tudo: para nascer, para crescer, para amar e para morrer. Tudo muito certinho na cabeça das pessoas, mesmo goela abaixo. Infelizmente não conseguimos expressar nossos verdadeiros sentimentos. Sábio quem o faz.
- Esta é a sua forma de pensar – argumentei.
- É a assim que as coisas funcionam.
- Você conhece a verdade?
- Quem dera.
- E o que o faz pensar que esta certo?
- As evidências.
- Quais?
- Vejamos você. No futebol qual a equipe que você torce?
- Internacional.
- E por que não Chapecoense?
- Por que meu pai torcia e acabei torcendo também.
- É o que você queria?
- Não sei, mas isto não tem a menor importância.
_ Talvez seja por que você quis agradar ao paizinho, como tentou me agradar a pouco, por que era padrão seguir o pai.
- Pare com isso...
- É verdade...
A discussão ia se acalorando, quando ouvimos uma voz da frente.
- Todas as passagens na mão.
Lá vinha o ajudante contando os passageiros, em busca de um passageiro clandestino.
- Pegue a sua passagem – sugeri ao meu companheiro.
- Não tenho.
- Não tem?!
- Então é você o clandestino?
- Sim.
- Essa não!
Lá vinha o engravatado verificando os bilhetes. Nós estávamos nos bancos 25 e 26, eu imaginei que normalmente meu amigo havia atrasado, entrando sem pagar, pagaria posteriormente. Mas como meu colega não parecia normal, aquilo só poderia acabar em problemas.
- Suas passagens?
Estendi a minha.
- A do senhor, por favor! – dirigindo-se ao clandestino.
- Não tenho.
- Esqueceu?
- Não.
- Não? - indignado
- É que eu não tinha planos de viajar, aí cheguei na rodoviária, vi o ônibus de saída e resolvi entrar.
O cobrador embaralhou. Vi em seus olhos tudo o que pensava: estava diante de um espertinho. Quanto a Samuel, mantinha a cara de pau, olhando firme para o cobrador.
- Então vamos fazer o bilhete - sacando o bloco de passagens.
- Lamento informa-lo, mas tal atitude me parece incoerente com a situação.
- A é! E por quê?
- Como é que você vai emitir uma passagem se não sabe aonde eu vou?
- Como não sabe?
- Não planejei esta viagem, portanto é fácil deduzir que eu não sei aonde vou.
O cobrador parecia numa sinuca. Era evidente a sua surpresa e poucos recursos de argumentação.
- Então vou cobrar até São Carlos.
- Por quê?
- É a norma, se não sabe aonde vai, eu cobro até a próxima cidade.
- Padrão?
- É padrão – impaciente.
- Mais um padrão –virando-se pra mim.
O cobrador estava a postos, com a caneta na mão aguardando a reação de meu companheiro. Ele mantinha posse. Eu já via o moço no colarinho de Samuel. Mas ao contrário, manteve uma calma franciscana, encarando aquilo como brincadeira.
- Para São Carlos senhor?
- Não sei.
- Bem se decida. Eu não posso ficar aqui a manhã toda.
Naquele instante todas as pessoas já olhavam para nossa poltrona, aguardando o desfecho da cena. Os oponentes se miravam, encarando-se de tal forma que mais pareciam dois samurais, prontos para o combate: guarda alta e silêncio.
- E se eu não tiver dinheiro? – perguntou meu companheiro.
- Infelizmente terei que pedir para parar o carro e o senhor vai ter que descer.
- Sério?
- Sério.
- Eu adoraria andar pela relva palmitense.
O cobrador baixou sua guarda, numa atitude vencida, falou.
- Senhor, seja razoável, pague a passagem até São Carlos, para que eu não tenha de parar o ônibus e atrasar nossa viagem. Acabe logo com esta brincadeira.
- Meu amigo isso não é uma brincadeira, estou sem nenhum centavo. Faça o seu trabalho.
- Como quiser.
O rapaz ia se dirigindo para frente, no firme propósito de parar a viagem. Resolvi intervir.
- Tire logo essa passagem, eu pago.
E assim foi. Puxei uma nota de cinco reais e paguei até a cidade de São Carlos.
- Muito obrigado senhor – agradeceu-me o rapaz.
- Por nada.
Saiu.
Imediatamente Samuel abriu sua mochila, pegou a carteira onde pude ver vários talões de cheques, documentos, passaportes, cartão de crédito e muito, muito dinheiro.
- Tome – me passou dez reais.
Peguei o dinheiro com raiva e não dei troco.
- Por que fez esse carnaval todo se podia simplesmente ter pagado a porcaria da passagem?
- Só pra provar para você mais uma evidência.
- Não diga!
- Qual era a vontade do cobrador?
- Jogar você pela porta de emergência.
O homem riu alto. Na verdade esta era a minha vontade e não a do cobrador. Ele mais uma vez tinha manipulado de tal forma, que senti um extremo ódio, para instantes depois estar rindo com ele , um riso aliviado, como de criança briguenta que minutos após uma picuinha, volta à brincar com o brigado.
- Com certeza era vontade de todos. Na verdade eu fui inconveniente e teria sido a atitude mais correta à ser feita. Mas por medo do escândalo e de perder o emprego, buscou uma solução, que nada mais era do que um manual de instruções, devidamente padronizado. Esse garoto infelizmente vai ser cobrador o resto da vida. Não tem saída, não sabe dar uma guinada, não consegue reagir.
E assim fomos até a cidade de São Carlos, batendo papo dos mais variados. O estranho era por demais inteligente. Sabia quase tudo; mencionava muitas qualidades e me parecia ter um enorme respeito por Deus e à criação. Sujeito diferente, que dava medo. Durante o resto da viagem, para alívio de todos, não fez mais nada fora do normal. Chegamos, desceram todos, pois o ônibus ia fazer uma parada para o café.
_ Vamos seu manco. Tomar um cafezinho nesta linda cidade.
E saiu correndo com meu par de muletas, como se fosse deficiente. Eu conseguia me deslocar razoavelmente sem elas, por isso fui atrás manquitolando , sob os olhares dos viajantes, que já começavam a desconfiar da minha cumplicidade com o maluquinho. Desci, ele me esperava na porta rodeando sobre minhas pernas de madeira. Fomos para o bar, imediatamente começou a pegar iogurtes e produtos sem conservantes.
- Moça, por gentileza tem ai uma batata.
- Rufles?
- Não, batata crua mesmo.
Olhou com espanto para o escoteiro.
- Temos na cozinha.
- Poderia me arranjar uma?
- Se quiser...
- Então tá bom. Se não for parecer demasiado incoerente, descasque-a.
Cinco minutos depois ela veio com um prato de batatas. Samuel agradeceu, e qual foi nossa surpresa quando levou a batata à boca, mastigando-a como se fora um manjar qualquer.
- Eu estou com um pouco de azia, sabe.
- Azia?
- É...a batata acalma a dor de estômago.
- É naturalista?
- Sim, um pouco. A verdade é que eu detesto conservantes.
O lanche de meu amigo consistiu em iogurtes, suco natural de cereja e duas batatas cruas.
- Vai ficar aqui?
- Minha passagem é até aqui, não é?
- É, parece que é.
Sentamos na mesa próximo da janela, assim poderia ver quando da saída do ônibus. Logo atrás de nós sentava-se uma moça loira, que julguei ser de origem alemã. Meu amigo virou-se e perguntou:
- Senhorita, com licença, é de origem alemã?
- Sim, por quê?
- Sabia que em seu país mexer na bunda das moças é tão natural quanto mexer no cotovelo?
A moça vermelhou, tal um pimentão.
- Não sei – encabulada.
- É a mais pura verdade, pode crer.
- E por que esta me perguntando isso?
- Por que gostaria que a Senhorita não ficasse brava, caso eu passe a mão em sua bunda, afinal não estaria fazendo nada a mais do que preservar a valorosa cultura germânica.
- Ora seu...
- E digo mais: “Essa calcinha que esta usando é demais. Ainda mais com aquela rendinha na borda, bem próxima ao vênus”.
- Seu cafajeste...
Levantou-se espumando e se foi. Apesar do inconveniente pude, também conferir a calcinha com rendas da menina. O escoteiro por sua vez voltou-se para o lanche, como se nada tivesse acontecido.
- De onde tirou essa história de mexer nas nádegas?
- Folclore meu filho, o mais puro folclore.
Lanchou tudo sem deixar nenhuma migalha. Eu também comi bem, satisfeito com o ar fresco que fazia naquele dia .
Em poucos instantes o carro iria sair, então iniciei minhas despedidas.
_ Bem, já que vai ficar por aqui, foi um prazer – estendendo a mão.
- Ou desprazer.
- Digamos que foi diferente.
- Não esqueça de mim .
- Pode crer.
Levantei-me e me dirigi para o embarque. Da janela pude vê-lo flertando com a garçonete, que levava mais batatas.
A região oeste catarinense é formada por pequenas cidades, muito próxima uma das outras . A cada meia hora, ou menos, se chega a uma nova. De São Carlos a Águas de Chapecó, bastava cruzar a ponte, algo em torno de dez minutos. Nosso ônibus tinha pontos em todas as cidades e as paradas eram inevitáveis. E assim é uma viagem, de quem precisa se sujeitar as rotas concedidas a uma única empresa, desde que se iniciaram os trajetos.
- Águas de Chapecó - alardeou o cobrador.
Havíamos chegado. Eu estava tão preso aos meus pensamentos que mal percebi. Desceram os que chegavam e subiam os que iniciavam a viagem. Eu discutia o preço de um picolé com a vendedora, quando alguém bateu em meu ombro.
- Desocupado?
- Sim...
Qual foi a minha surpresa ao ver novamente em minha poltrona 25 o saudoso Samuel. Não sabia se o abraçava ou agarrava ele pelo pescoço. Olhou-me de lado .
- Tenho a passagem desta vez.
Pude ver o bilhete rosa em letra apressada : “Águas de Chapecó a Chapecó”.
- Quase que o táxi não alcança – continuou.
- Então vai até o fim?
- Exatamente. Vamos desfrutar do conforto deste veículo do maravilhoso Caramori até o fim. Gostou?
- Essa não!
Riu muito; olhava-me e ria.
- Esta ficando bem mais honesto.
Em nossa frente continuavam um casal de italianos, ambos levavam uma bolsa contendo salame, queijo e pão. Isso era é muito comum na região entre os gringos. Levam sua comida para não ter de compra-la na estrada, isso diminui a despesa de viagem. Devido ao calor e ao abafado, os alimentos exalavam um cheiro forte, fermentando. Samuel vendo aquilo ficou em pé, olhou para o casal e sapecou:
- O jovem casal faria a gentileza de me oferecer um pedaço de salame?
- Como?
- Um lanchinho para meu amigo- apontando pra mim.
- Eu!
Ele, impassível, prosseguiu:
- Sim, questo manco quá – mostrando meu par de muletas.
Eu sabia . Ele não podia ficar quieto, tinha necessidade em perverter. A italiana olhou-me e me indagou:
- O que aconteceu?
- Pólio...
- Como?
- Paralisia infantil senhora- apressou-se em responder meu estabanado companheiro.
Embora parecesse chata, essas perguntas já se tornaram corriqueiras . Eu respondia com a maior naturalidade. Era sempre a mesma narrativa: com sete meses eu havia contraído pólio e devido ao local onde meus pais moravam, foi difícil uma medicação mais adequada, ficando eu por vários meses de hospital em hospital, até que enfim acabei por ficar com seqüelas que derivaram em perda da força das pernas, obrigando-me a usar muletas como forma de locomoção. Invariavelmente todos os deficientes no primeiro momento atraem certa pena, principalmente de pessoas mais simples, como nossa colega. Mas com toda experiência acumulada, eu conseguia dominar estas situações e me sair bem . No final todos acabavam me encarando naturalmente, esquecendo meus problemas.
- Mas e o majare sai ou não sai? – diante da demora de nossa toscana.
Foi quando a senhora catou na bolsa um pão e um salame. Logo estávamos os quatro saboreando a típica comida italiana, em pleno movimento. Os velhos gringos pareciam felizes com a nossa atenção.
- O amigo gosta de balar? – indagou o escoteiro.
- Ó si – responderam mutuamente os italianos.
Samuel era uma caixa de surpresas. Tagarelava utilizando um sotaque idêntico ao que os moradores de origem italiana, residentes na região utilizavam , embora parecesse mais paulista.
- Voi conhoce “El Vechio Trivelin?”.
- Si – respondeu o homem.
Diante da afirmativa, meu amigo sentou-se para trás e soltou a voz:
“Nó, nó, nó
nó cossi nol dá
El Vechio Trivellin
Romai le mal thapá “.
No início os velhos companheiros timidamente acompanharam , mas com o vinho quente e argumentos insistentes, logo logo estávamos todos os quatro passeando pela musicalidade de nostra Itália, para o desagravo do discreto público das poltronas ao redor. Nosso repertório passou por “Mérica Mérica”, “Lá verginela” até chegar em “Estrada da vida”, ponto alto do recital. No desenrolar da apresentação teve até uma menina que meigamente pediu.
- Pode cantar aquela do Cristian e Ralf com o Aguinaldo Rayol. Aquela da novela, sabe?
Me pegou, pensei. Finalmente tinha chegado ao final de nosso repertório. Mas que nada, para espanto geral do público, ele simplesmente respondeu:
- Mas é claro meu bem.
Cantarolou toda a canção sem erro, inclusive com as entradas italianas . Eu tentava balbuciar o que sabia da canção e ria muito.
Embora o desconforto inicial, vários viajantes se emanaram ao coro, formando uma grande e desafinado coral. Quando acabava uma, alguém puxava outra. Nossa viagem se tornou uma grande enciclopédia musical; foi assim até a parada, uma beleza.
Chegamos a União do Oeste já passava das nove. Nosso cantor desceu animadamente batendo papo com todos.
- Quanto vai ser a parada seu motorista?
- Quinze minutos .
Voltou-se pra mim.
- Desce daí rapaz, vamos tomar uma água, que essa cantoria me deixou com a garganta seca.
No posto tinha um guinche da empresa. Eu estava mesmo precisando ir ao banheiro, e lá fui.
- Vou ao banheiro.
- Volte logo, e cuidado pra não sujar as calças. E pense em novas canções que o show não pode parar.
- Certo escoteiro.
O banheiro era igual a todos que havia visto em postos até então, com as características inerentes ao gênero : sujo e mal cheiroso. Fiz as minhas necessidades, lavei as mãos e apressei-me em seca-las na toalha improvisada, para não atrasar a viagem. Quando fui abrir a porta, não abriu. Estava emperrada . Forcei o trinco e nada. Empurrei, bati, acabei arrancando a maçaneta . Naquela hora, para completar minha situação, uma moto começou acelerar, abafando minhas batidas . Situação cômica, eu trancado num banheiro, sujo e fedorento, correndo o risco de perder o ônibus. Era muito comum naquela região os carros partirem sem conferir os passageiros. Lembrei-me que estava com a carteira dentro da mochila, se ficasse não teria mais dinheiro e seria complicado emprestar de alguém, além de ficar sem nenhum documento. Apavorei-me. Decidi gritar
Quanto mais eu gritava, mais a moto acelerava, abafando totalmente meus apelos. Mais gritos. Nenhum sinal. Fiquei ainda pior quando vi pela fresta da porta o meu ônibus saindo. Mentalizei: “Vai conferir, vai conferir, vai conferir...”. Nada. Desanimei. Não funcionou. Um tempo. A moto parou.
De repente ouvi vozes. Gritei.
- Ei, alguém aí. Me ajude, a porta emperrou.
Passos fracos, mais fortes, muito fortes. Gritei mais alto.
- Socorro! abra essa porta!
Algum bom samaritano gritou em voz solene.
- Carma amigo! Essa porta é assim memo, quebra de vez em quando. Mas num é sempre.
De repente, num empurrão magistral, a porta se abriu. Pude respirar ar puro. Vi ao longe o ônibus ficando pequeno na curva da estrada. Todos do posto me olhavam com um mistura de pena e culpa . Pena por mim e culpa pela porta.
Quando saí, cheio de raiva consegui dizer:
- Porcaria de porta; foi emperrar logo agora.
Ninguém mencionou um aí. Minha cara devia estar de poucos amigos. Sem dinheiro, sem documentos, sem roupas; enfim sem nada.
Uma pergunta: e agora?
Como poderia o Samuel ter me esquecido? Deve ter se empolgado com os italianos.. E quando dessem conta da minha falta já estariam distantes o suficiente, pra voltar. Sentei-me e procurei me acalmar. Imaginava uma solução, tateei no bolso em busca de um halls, quando senti na ponta dos dedos uma cédula . Eram os dez reais que o Samuel me dera. Na ocasião, eu tinha colocado dinheiro no bolso, sem guardar na carteira, devido a dificuldade de pegar a mochila no maleiro do carro ..
Fui ao guinche .
- Qual o próximo ônibus para Chapecó?
- Daqui a duas horas – respondeu-me um negrinho atarracado .
- E quanto custa?
- Oito reais?
- E para Caibi?
- Daqui a meia hora.
- Quanto?
- Quinze reais.
Fiquei pensativo por um instante. De qualquer forma eu teria que ir para Chapecó, pois minha mochila estava no ônibus, que ao descobrir a minha ausência deixaria no guarda volumes à espera do dono. O negócio era arriscar. Qualquer problema eu pousaria na casa de meu tio, que mora lá.
- Tira para Chapecó.
Peguei o troco, comprei um jornal e me pus a ler, adivinhe o que?
Duas horas depois o ônibus chegou. Só tinha mais uma parada antes de Chapecó, era uma pequena Vila perto de Caxambú do Sul. Depois de lá mais quinze minutos e chegaríamos.
Paramos. O tradicional sobe e desce de passageiros. Ouvi um barulho de carro chegando e um grito familiar.
Era Samuel, de táxi.
- Desce daí garoto, vamos seguir de carro.
Sem pestanejar fui ao seu encontro, dando graças a Deus por ele estar aí.
- Imaginei que iria tirar passagem para Chapecó e resolvi arriscar te esperar.
- E como que foram me esquecer. Por acaso a italiana te atraiu tanto que não lembrou deste coitado aqui – cobrei-o cheio de vontades pouco aconselháveis.
- Que que é isso? Subimos e voltamos a cantoria. Só percebi quando o cobrador perguntou se você teria ficado .
- Droga – irritado – e cadê a carro?
- Vamos comprar.
- Como é?
- Vamos até Caxambú e compramos um.
Como eu não gostava de duvidar dele, resolvi acreditar. Entramos no táxi e partimos para novas aventuras. Chegamos por volta do meio dia. Procuramos um restaurante e nos fixamos para comer. Eu estava cansado e esfomeado. Samuel por sua vez parecia incansável.
- E que tal a aventura?
- Mais ou menos .
- Não fica triste, a gente chega a tempo na cidade.
- E voltar?
- Eu te levo com nosso carro novo.
- E onde está esse carro?
- Qual o modelo que você mais gosta?
- Qualquer um – seco – pode ser o novo Passat.
- Então vai ser este.
Almoçamos e fomos para a única agência de carros existentes na cidade. Eu não estava levando ele muito a sério, mas ia junto para ver no que vai ia dar. No caminho me perguntou:
- Quanto custa o tal carro?
- Em torno de vinte e sete mil.
- Dólares?
- Reais.
- Lá está o banco, deixa-me encontrar o cartão.
Procurou em sua mochila, entre tantos até achar o que desejava . Fomos para uma banca, abriu um outro compartimento e retirou vários maços com cédulas de cem reais.
- Conta e vê quanto tem.
- Aqui?
- Sim, anda, conta logo.
Fiquei assim, morto de medo, em plena contando maços de cem reais. Os transeuntes arregalavam os olhos diante de nossa audácia.
- Dose mil e setecentos.
- Então precisa mais quinze mil.
- É...
- Vou tirar vinte.
E nos dirigimos para o Bradesco, onde para meu total disparate ele sacou quinze mil reais. A idéia do carro firmava mais. O que antes parecia deboche , concretizava-se . Samuel sabia do meu espanto , mas mantinha-se como se nada estivesse acontecendo . A passos largos fomos à concessionária , que ficava a dois quilômetros . Eu mal conseguia acompanha-lo, minhas pernas eram pouco habituadas à grandes distancias , principalmente em baixo de sol forte. Mas me mantive firme , a ansiedade de ver o final daquela história me dava forças para seguir . Antes da concessionária meu amigo parou e entrou numa loja onde se lia ”Roupas Usadas” .
Entrei também. Ele aproximou-se da vendedora , olhou para o avantajado decote e falou:
- Belos seios, senhorita .
- Como ? - assustada .
- Imaginei como seriam seus seios , por isso decidi elogiá-los .
- Não percebeu o meu rosto não? - em voz alta.
_Sim , mas prefiro seus seios – impossível.
A moça não encabulou e prosseguiu.
- Deseja alguma coisa?
- Sim, ver estes seios.
- Me perdoe mas isso não vai ser possível.
- Por quê?
- Isto aqui é uma loja de roupas e não uma zona .
- Mas você tem cara de puta.
Foi a gota d’água. Rápida como uma flecha a moça deferiu um tabefe que atingiu os ares, devido a bela esquiva de Samuel. Ela olhou com os olhos cheios de ódio, paralisada quando viu nas mãos do escoteiro um belo maço de azuizinhas.
- Mil reais pelos seus seios.
- Só seios?
- Sim.
- Passa pra cá.
- Mostra.
- Aqui?
- Quer ou não quer.
Neste momento Samuel pegou um cabide e o atirou no chão . A donzela entendeu o truque e baixou-se com ele, de forma que ninguém pudesse vê-los e ai baixou o decote mostrando um par de seios grandes e flácidos . Eu simplesmente não acreditei naquilo . Um pequeno strip , a peso de ouro, em plena tarde, numa cidade puritana, como eram todas da região .
Levantaram-se com o cabide na mão e a moça perguntou
- Mais alguma coisa , senhor?
- Sim, veja este terno para mim, mas tome o cuidado de rasga-lo e suja-lo bastante.
- Rasgar? - espantada.
- E sujar bastante.
- Vendo bem , você é doido mesmo.
Passou-se dez minutos e voltou nossa diva com um traje Mazzaropi, com a agravante de estar mais rasgado e sujo.
- Esta bom assim?
- Ótimo , posso vestir?
- Claro, tem este provador à direita.
Segundos depois o escoteiro se tornará maltrapilho, com chapéu e tudo.
- Fique com minhas roupas, é uma troca justa.
- Claro senhor...
- Obrigado.
E saímos assim, eu sem entender nada, ao lado de um maltrapilho maluco, com chapéu e tudo . Quando estávamos na rua, pude ouvir uma voz abafada .
- Seu Levigildo, estes cinquenta são daquele terno do falecido Ari
-Ah!
Moça esperta. Garantiu o leite das crianças, se é que com aqueles seios faltasse leite. Daquele jeito, chegamos finalmente na concessionária. No caminho, Samuel fez um correto, embora amargo discurso de como o dinheiro compra tudo, prova maior era o fato da loja de Roupas Usadas .
- Quase tudo – brandi
Entramos na loja, grande, bonita, imponente com o nome Wolkswagem em destaque . Eu sempre gostei de entrar em revendas de carro. Sempre limpinho, carros de luxo, cafezinho, chimarrão e principalmente belas atendentes. Aqueles rostinhos, vejam eu mencionei rostos, roupas com belo caimento, algum decote, saias acima do joelho, etc, etc...
Mas voltemos aos carros. Eu entrei na frente, estava vestido normalmente ou corretamente pelo menos. Samuel, por sua vez, naquele estado lamentável . Passei a porta e fui recebido por um belo sorriso branco e loiro e, por traz dos caninos, uma jovem com todos aqueles ingredientes de uma mulher gostosa. Samuel vinha atrás, mas foi barrado pelo segurança.
- Não pode entrar aqui – berrou.
Olhei para trás e vi Samuel juntando a mochila jogada pelo moreno king kong . Aquela mochila cheia de notinhas de cem reais .
- Ei, esse homem esta comigo –defendi .
Olhares incrédulos... A Solange, que estava em minha frente com o crachá de “atendente” corrigiu :
- Bom, é que se tornou comum a presença de mendigos em nossa porta, e ai tomamos medidas mais duras ...de vez em quando .
- Tudo bem , eu posso imaginar .
O Samuel encontrou ai uma chance para fazer o que mais sabia : armar barraco .
- A senhora me desculpe a ignorância deste pobre criado aqui, mas pelo visto, sua empresa se embasa na valorização do cidadão pela aparência externa?
- Bem, é incomum, fora de qualquer padrão uma vestimenta como a sua , embora não o conheça .
Tinha acionada a palavra mágica “padrão” . Samuel olhou-a com sarcasmo , recostou-se em uma pilastra .
- Então é assim mesmo , mede-se pela aparência , pelo externo .
- Em primeira avaliação - enrolando-se - O senhor a de convir ...
- Não – interrompeu – não me coloque em seu padrão . Eu tenho milhares de defeitos , pareço uma carniça , mas raramente julgo alguém pela roupa do corpo . Mas se assim preferir , o externo , a casca, saiba, Vossa Senhoria que esta mochila jogada na rua por seu gorila pançudo esta cheia de notinhas azuis, que poderiam ser de sua empresa . E se não bastar, ainda temos aqui talões de cheques , todos especiais , diga-se de passagem , anexo extrato comprovando que seus limites enormes nunca foram usados .
O discurso foi tão apaixonado que eu quase aplaudi . A atendente ficou paralisada, não acreditando no que via e ouvia . Com certeza aquela bela loira nunca mais iria querer expulsar um pedinte . Houve um silêncio no salão . Os que passavam tinha o privilégio de uma cena incomum . Um pedinte , um deficiente e uma loira oxigenada tremendo como vara verde . De repente.
- Me diga minha querida, tem nesta loja o ultimo modelo do Passat?
- Com certeza – engolindo seco .
- E onde esta ?
- Na área de exposição... por aqui...
E lá fomos, para uma vasta sala onde estavam os últimos modelos da marca, incluindo o Passat. Nossa atendente ia à frente, com Samuel no meio e eu na retaguarda.
- Tem umas pernas muito bonitas, não?... Hem! Clodoaldo...
- Com certeza...- Respondi.
- Imagine o resto...
Falou em alto e bom tom, para que ela ouvisse e reagisse. A moça virou-se sorridente.
- Muito obrigada!
Depois do vexame da entrada, meu amigo poderia despi-la em plena agência, que ouvira a mesma expressão.
- Muito obrigada!
No salão de exposição entre Gols e Saveiros, lá estava reluzente o Passat. Todo verde metálico. Uma beleza.
_ É esse mesmo!- exclamei.
_ Realmente bonitinho, vamos comprar.
E assim depois da Solange ter nos mostrado todas as qualidades do carro, efetuamos a compra.
- O pagamento será em dinheiro? - indagou nossa prestimosa vendedora.
- Sim – apressei-me em responder, fazendo-me de dono da situação.
Meu companheiro jogou-me a maleta lotada de reais e fui ao caixa.
- A nota sai em seu nome?
- Creio que em nome de meu colega...
- Não, não, em seu nome mesmo... pode tirar a nota em seu nome.... Clodoaldo Turcato - atalhou como um furacão o maltrapilho.
- Meu!
_ Claro, o carro vai ficar contigo mesmo.
- Ta brincando!
- To não.
Discutimos por uns instantes. Eu argumentando que não poderia ficar com o carro, não teria condições de arcar com o seguro, etc, etc. Mas de nada adiantou. A nota saiu em meu nome.
Saí da agência, ao volante de um veículo ao qual teria que trabalhar pelo menos dez anos como contador para compra-lo.
Eram 15:00 horas, quando peguei a BR em direção a Chapecó. Para traz ficou um bando de vendedores, em especial nossa atraente Solange jogando beijinhos. Antes da saída de Caxambu, Samuel pediu que eu parasse junto ao Posto de Gasolina.
- Vou ao banheiro.
Minutos após retornava em roupas esportivas e óculos escuros. Havia mudado totalmente. Agora com bermudas, chapéu e sandálias, assemelhava-se a um caçador australiano.
- Não poderia entrar na Capital do Oeste daquele jeito... não é?
Como novidades com ele ocorriam a toda hora, encarei como mais uma esquisitice.
De Caxambu a Chapecó era no máximo uma hora de viagem. Eu não tinha muita pressa, queria curtir aquele carrão. O Samuel nunca tinha pressa. Ligou o rádio e sintonizou a Rádio Atlântida. A emissora trazia uma programação muito variada, com muita música. Samuel cantava todas com extrema alegria. Eu abobado ao volante, feliz com sua companhia animada.
De repente a transmissão foi interrompida. Samuel estacou:
_“Recebemos nesse momento a informação de que perigoso traficante Toninho do Pó, foragido da Penitenciaria de Goiânia à seis meses, foi visto em nossa região. Segundo informações da Polícia, acredita-se que o mesmo tente retornar a sua terra natal pelo Aeroporto Municipal. Estão se fazendo barreiras nas estradas e rodoviárias desde São Miguel até Joaçaba. Qualquer informação ligue para a Delegacia mais próxima. Informou Atlanta FM, 99,9”.
O nome Toninho do Pó me chamara a atenção.
- Conheço esse cara...
- Conhece? - baixando o volume.
- Não pessoalmente, mas uma amiga minha, a Luíza, me contou sua estória. Ele foi preso em Abadiânia... em Goiás, com uma porrada de cocaína. Disse ela que teria sido castrado pela Federal.
_ Brincadeira...
_ Sério... bom foi o que me falou...
_ Essa Luíza?
_ É...
_ Deve ser conversa. A Federal não fez isso.
Ergueu o volume, voltando a berrar Paralamas do Sucesso.
Andamos cinqüenta quilômetros e encontramos uma barreira policial; eram três carros bloqueando a entrada da cidade.
_ Ei, a Polícia...- avisei-o
_ Ora, ora, os Ranger!
_ Vê se não apronta.
_ Sim General.
Notei certa tensão em Samuel. Não devia gostar de guardas. Encostei.
_ Por favor, documentos pessoais e do veículo.
Gelei. Não tinha a minha mochila. Minha carteira estava nela, no ônibus. E agora!
_ Por favor seus documentos. – repetiu o guarda.
Como num passe de mágica Samuel, estendeu minha mochila. Dentro tudo que me pertencia. Pude ver no canto de seus lábios um sorrisinho maroto. O danado estava com minhas coisas o tempo todo.
- Aqui estão.
Deu a volta no carro, deslumbrado com o verde prateado e devolveu-me tudo.
_ Carrinho bom, hem!
_ E verdade...
_ Muito obrigado e boa viagem.
Sai em marcha lenta sob olhares atentos dos transeuntes. Samuel ergueu o volume do rádio e pude ouvir um aliviado “Soi louco por ti América!”
Eram 16:30 quando entrei na Getulio Vargas. Um movimento intenso de carros. Pude ver viaturas da Policia Federal descendo a Marcilio Dias.
- Para onde vamos, Senhor? - indaguei.
- Conhece uma boa loja de departamentos?
- Sim...a Pernambucanas.
- Então vamos a ela, preciso comprar umas coisinhas.
A loja ficava a dois quarteirões , chegamos logo. Fiz menção para descer, mas fui imediatamente interrompido.
- É melhor esperar aqui. Afinal não vai querer que roubem seu carrão novo... vai?
- Com certeza....
Fiquei. Chapecó, apesar de ser uma cidade média, guardava muito das particularidades das pequenas cidades. Deixar a chave no comando do carro era hábito de muita gente, principalmente em plena luz do dia. Num local como aquele, não haveria necessidade para tanto cuidado, mas senti em meu amigo a vontade de ir sozinho. Porque? Bem ele devia ter lá suas razões, que não mereciam meu questionamento.
Eram 17:23 quando finalmente ele voltou. Estava trajando camiseta Pool, Calça Piere Cardin e um invocado tênis Adidas. Em duas sacolas vinham mais uns amontoados de coisas.
- Gostou?
- Ficou legal!
- Trouxe uma coisinha para você..
- Pra mim?
- É... olha só.
Estendeu-me uma sacola contendo um camiseta Dijon vermelha, um óculos Armani e um relógio digital Casio.
- Obrigado..
- Obrigado nada, vai vestindo.
- Agora?
- Claro, vamos lá tira logo essa camiseta. Me dá essa porcaria de relógio. Põe esta óculos... muito bem garotão , vai pegar todas.
Em segundos eu estava com camisa, óculos e relógio novos. Ainda bem que ele não resolveu me presentear com cuecas, imaginou o vexame?
Fomos para o Hotel Bertazo, o melhor da cidade, famoso pelas cinco estrelas.
- Passamos a noite lá e amanhã a gente sai pela cidade para se divertir um pouco. Quem sabe uma escapada para Camboriú.
- Ta maluco!
- Você acha é?
Eram 18 horas quando meu amigo solicitou duas suítes, uma de frente para a outra; números 10 e 12, todas pagas em dinheiro e adiantado.
- Vou descansar um pouco, te vejo as nove para o jantar. Faça bom proveito.
- Obrigado.
Ele foi a frente enquanto eu cuidava dos últimos detalhes , subindo logo a seguir. O meu quarto era amplo: cama grande, banheiro vasto, hidromassagem, sauna, frigobar, enfim todas aquelas delicias que pobre vê em raros momentos ou nunca em uma vida. Eu mesmo tinha estado num cinco estrelas por duas vezes apenas.
Fui experimentando um pouco de cada coisa, como um menino diante de uma montanha de brinquedos . Precisava aproveitar cada momento, afinal amanhã seria outro dia ...
Nesta minha exploração levei mais de hora. Quando dei por mim passavam das 20 horas; em uma hora sairia o jantar . Decidi tomar meu banho. Estava entrando na hidromassagem, quando a campainha tocou. Enrolado na toalha fui até a porta. Imaginei ser mais uma loucura de meu amigo, quem sabe, não conseguindo dormir e tinha resolvido inventar uma nova aventura.
Ao abrir, qual não foi minha surpresa ao ver do outro lado do porta duas belas moças. Eu naquele estado pouco próprio para ocasião, me enchi de vergonha. Não esbocei nenhuma reação, quando a moreninha se dirigiu a mim:
_ Oi gatinho... sou a Carla e esta é minha amiga Manuela... podemos entrar?
_ Entrar?.... Agora?
E Manuela foi entrando, me empurrando para trás. Fui de ré, até sentar no braço do sofá. Ela veio para cima de mim, enfiando a mão por baixo da toalha.
- Um amigo seu nos disse que você gostou do nosso anúncio no Jornal , por isso viemos aqui visita-lo.
A porta foi trancada pela Carla. Eram as meninas do Classificado. Tentei resistir bravamente, mas em dois segundos a minha resistência acabara. O que aconteceu dali em diante é proibido para menores e cardíacos. Só para o amigo ter uma idéia, tudo o que propagava o classificado era verdadeiro.
Meia noite me flagrei. Devia estar em casa. Puxa vida, tinha me esquecido que a volta estava programada para o mesmo dia. Com aquela loucura toda, eu havia me passado. Meu Deus do Céu, a cidade toda devia estar em polvorosa. Já imaginava a Odila.
- Foi morto ou seqüestrado. O ônibus tombou. Errou a estrada, foi atropelado...
Peguei o telefone, liguei. Do outro lado da linha minha esposa bocejando me atendeu.
_ Oi meu amor, de novo... a saudade é tanta pra me ligar a cada seis horas.
_ Ligar...
_ A meu bem, esta doido mesmo, não lembra que me ligou as cinco pra me avisar que ia dormir no Tio Fernande?
Samuel, ele tinha ligado.
- É... só saudade. E a Yana?
- Dormindo. Traga um presentinho para ela.
_ Certo... então boa noite.
_ Um beijo.
Desliguei.
Acordei pelas oito. Depois daquela cavalgada erótica, me sentia rejuvenescido. O único problema seria agüentar o Samuel com suas piadinhas a respeito de meu desempenho sexual. Mas enfim, tinha valido a pena.
Saí de meu quarto com a intenção de procura-lo. Mas no quarto dele estavam duas camareiras limpando, quanto ao meu companheiro nem sinal. Devia ter madrugado. Fui à garagem e o carro continuava lá, intacto. Na sala para o café nem pista. Fui à portaria.
_ O hospede do quarto dez saiu do hotel?
_ Não. Ele fechou a conta eram dez e meia, aproximadamente.
_ Fechou a conta?
_ Sim senhor.
_ Nenhum recado?
_ Não senhor.
Por um instante fiquei paralisado. Onde teria se metido? Retomei minhas ações e decidi fechar minha conta, pegar o carro e seguir minha vida.
O sonho acabara.
Às 8:30 eu estava no Centro Médico para meus exames.
_ O Dr. Nogara vai atende-lo em meia hora.
Com sorte ao meio dia estaria em casa. Ia ser difícil explicar como conseguira comprar aquele carrão, mas eu ia bolar alguma coisa. Enquanto aguardava, folhei uma edição da Revista Isto É. No índice um tópico me chamou a atenção. “Foge do presídio de Goiânia o mega traficante Toninho do Pó!”.
Outra vez aquele nome. Busquei automaticamente a página 72, onde a notícia estava. A reportagem era extensa; trazia todas as peripécias do bandido e a estória a castração. Tive um colapso quando uma fotografia enorme trazia o Toninho do Pó abraçado a duas beldades em um belo iate, num lugar qualquer em pleno mar. Nada demais a não ser pelo fato de que o malfeitor da revista era o meu colega Samuel. Isso mesmo, era ele. Aquele sorriso... inconfundível.
- Algum problema senhor?
Eu devo ter branqueado, pois a atendente percebeu minha mudança.
- O Senhor esta pálido.
- Um copo d’água por favor.
Fechei a revista.
Existem momentos na vida da gente em que se o mundo acabasse seria de bom grado. Eu procurava no sofá um buraco para me enfiar e nunca mais aparecer. Mas o buraco não aparecia e um copo d’água se postava em minha frente. Senti cada miligrama descendo pela goela. Levantei-me e pedi para cancelar minha consulta. Não esperei para saber se o cancelamento se efetuara, vazei. Dentro do carro me dei conta de que ele seria a maior prova de minha cumplicidade. Eu acobertara um dos maiores bandidos do Brasil, sem querer é verdade, mas quem iria acreditar? E o carro, as roupas o relógio, as mulheres...de graça. Quem gastaria cem mil reais com alguém por nada? E a Federal não acreditaria que eu teria sido tão tolo, a ponto de ficar 16 horas com um bandidaço e nem me tocar. E ninguém o viu me forçar a nada. Eu fiz, na visão do mundo, tudo de livre e espontânea vontade. Já via minhas bolas no vinagre.
Tudo isso me veio a mente quando eu já estava na sinaleira em frente ao Hotel Bertazo. Sinal vermelho. O hotel estava cercado por carros da Polícia e pela imprensa. A confusão era enorme. Tive vontade de abandonar o carro ali mesmo. Mas ele era o elo de ligação entre eu e Samuel. Sinal verde. Pisei fundo. Não sei como, mas sai liso sem bater em ninguém. Quando dei por mim estava fora de Chapecó a caminho de casa.
Mas restava o carro, o que fazer? Tateie em busca da Nota Fiscal. Estava emitida em nome de ... Carlos Fiorese.
Não era em meu nome. Surgiu uma luz. Haviam trocado os nomes, para minha sorte; bastava devolver e pronto. Restavam as contas do hotel. Verifiquei as notas, também em nome de Carlos Fiorese. Ele tinha pensado em tudo. Veio-me em mente que além de distrair minha atenção, Samuel cuidou para que nossa ligação nunca tivesse provas.
O carro tinha que ser devolvido. Peguei a BR para Caxambú. Do Posto de Gasolina liguei para a Solange.
_ Oi... preciso conversar com você.
_ Agora?
_ Sim, é importante.
_ Venha até a agência.
_ Não... tem que ser fora daí. No restaurante.
_ Por quê?
_ É que tem um erro naquele Passat.
_ Você é do Passat de ontem?
_ Sim, sou! Mas...
_ Estarei ai em dez minutos - desligou.
Eu esperei a moça no lado de fora do restaurante. O modo como ela desligou, me deixou de orelha em pé. Ela chegou sozinha, nenhum policial junto. Entrei atrás. Sentamos bem nos fundos.
_ Bem - iniciei - a respeito do carro...
_ Tudo bem - interrompeu - nós imaginamos que havia algo errado pela manhã, quando o CPF não fechava. Então pesquisamos o nome e não existia. Pensei que havia algum engano no nome que seu amigo forneceu.
_ Forneceu?
_ É enquanto o Senhor olhava o veículo, seu amigo me passou os dados para a nota, e naquela pressa nem verificamos o engano.
_ Puxa.
_ O melhor a fazer é trocar logo esta nota, pois se a matriz descobrir que vendemos um carro sem as normas de rotina, meu chefe vai me matar.
Aquilo me parecia muito vago. Tinha alguma coisa errada com aquele carro, que não era só a nota. Mas decidi seguir jogando o jogo dela.
_ Eu quero resolver isso.
_ Com certeza, nós também.
_ E aí...
_ Nosso gerente sugeriu que o Senhor devolvesse o seu Passat e pegaria um outro na semana que vem ou o dinheiro de volta.
_ Escuta, o que está errado nessa história?
_ Nada...
_ Tudo. Eu ouvi muito bem quando o Samuel passou o nome. Eu mesmo dei meus documentos e mesmo assim essa nota saiu em nome deste Carlos.
_ Mas foi engano.
_ Engano? O programa jamais aceitaria um CPF errado e vocês estão interligados com todas as agências. Essa nota jamais sairia sem o consentimento de vocês. Será que esse carro não seria uma doação ao filho do Prefeito de Palmitos pela compra de uma frota de dez caminhões em sua agência?
Eu tinha lido dias antes que o prefeito de uma cidade vizinha minha tinha aumentado sua frota de caçambas. O homem fez o maior estardalhaço na região. O que ninguém entendeu foi o motivo pelo qual a compra tinha sido feita em Caxambu e não na agência local. Eu tinha acertado em cheio. Depois descobri que o Carlos Fiorese era primo e não filho. Quando me achei dono da situação, ela ergueu os olhos e lascou:
_ A Federal esteve na Agência hoje.
Que miséria.
_ Eu disse a eles que um maltrapilho e um cara alto, moreno e cabeludo tinha passado por aqui. Uma descrição que poderia ser modificada se o meu cliente for importunado.
Voltei a estaca zero. A espertinha sacara tudo e eu estava em suas mãos. Nesse momento eu já queria dizer: “Obrigado Senhora!”. Só pude falar “E aí?”
_ Bem, nós precisávamos de vocês e vocês de nós, então...
_ Legal... e aí?
_ Bem, para que tudo fique bem, sugiro que devolva o carro e nós esqueceremos de tudo, bem como o Senhor esquece o prefeito e seu primo.
Aceitei na hora. Gentilmente a Solange pediu a um funcionário que me levasse até em casa. Por volta das 13:00 horas recebia o abraço de minha esposa e de minha filha, são e salvo.
A Maristela elogiou meu relógio novo. Dei a ela a camisa Dijon, lavada e perfumada no Hotel.
_ Abri o pacote para experimentar se servia em você...
_ Obrigado amor. E pra Yana?
Peguei o óculos e coloquei em minha menina de dois aninhos, que me abraçava as pernas. Ela gostou tanto que hoje, aos quatro anos ainda o tem, embora só com uma lente; quando coloca fica parecendo o Capitão Gancho.
Eu ainda tenho o relógio Casio; a camisa Dijon virou pano de chão. Coisas do tempo. Do Samuel nunca mais tive notícias. Mas sempre tenho a impressão de que a qualquer momento ele apareça sorrindo.
_ E aí manco, que tal um classificado?





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