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Contos-->ENCONTRO SELVAGEM -- 09/03/2003 - 12:17 (PAULO FONTENELLE DE ARAUJO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

           A avó de Elza sempre rezava durante as tempestades. Rezava tanto e tão fervorosamente que criou um ritual, cuja repetição dos mesmos atos evitaria a proximidade dos raios e o destelhamento da casa.

            Ela fechava as janelas, bebia um copo de água com açúcar, acendia velas no sopé da escada, perfumava as mãos com óleo canforado, colocava a cabeça sob os travesseiros e rezava o terço.

            Elza, a neta, acompanhava a prece. Não pelo medo do destelhamento. Orava porque gostava do lento, calculado e coreografado cerimonial da avó. A anciã brincava de chá com bonecas. Bonecas terríveis  os raios e trovões.

            Naquele dia, a avó não estava e despencou uma tempestade perfeita para o ritual.  Elza, treze anos, apresentou-se.

            BUM! Os trovões balançaram o espelho da cômoda. Não havia ninguém em casa. Ela poderia vestir-se de grande dama. A matriarca que, na finalização das rezas de chuva, protege a si, aos parentes e afasta as descargas elétricas do sobrado da família.

            A menina levantou-se, abriu o guarda-roupa, encontrou o rosário da avó. Um rosário de contas translúcidas, arroxeadas. Depois vestiu a camisola da mãe, calçou chinelinhos felpudos, passou nas mãos água-de-colônia e foi rezar na cama.

            A tempestade descia carregada. Pingavam significados: os trovões seriam assustadores anjos caídos.

            Elza se deitou, colocou os travesseiros sob a cabeça e pediu aos céus que o tenebroso fosse embora. Ergueu os braços para sinalizar o início de sua penitência e seguiu o rosário, cada conta o padre-nosso rezado baixinho. O baixinho lembrava o timbre das santas e das avós.

            A neta encontrava-se nesse divagar, quase dormindo, quase sonhando, quando escutou o som da tevê na sala de estar. Ela deveria desligá-lo. O eletrodoméstico poderia explodir – isso a avó também dizia. Televisões explodem, ponta de faca chama a faísca de raio, pés descalços atraem a eletricidade do mundo.

             Respirou impaciente, tirou o lençol – lá fora a tempestade corria solta – calçou os chinelinhos e foi desligar o aparelho.

            Desceu as escadas sem perder os ares de grande dama. Fechou os olhos. Sua camisola azul esvoaçaria sobre a prataria da sala. Abriu a porta.

            A tevê iniciara uma edição extra do noticiário nacional. Elza, a jovem senhora, quis saber do que se tratava.  Mexeu a antena, quando mostraram a jaula onde tudo acontecera. A voz do repórter declarava com desespero:

 

            “O leão Adamastor, animal do circo Grande Europa, em turnê pela cidade, devorou, agora à tarde, a repórter desta emissora, Cristina Pereira.”

 

            A menina não entendeu a notícia. Devorar o quê? Comeram a carne de alguém? A história prosseguia.

            Cristina era uma jornalista investigativa, famosa por sua audácia, apesar da baixa estatura. Entrara na jaula para terminar a matéria sobre “VIDAS NO CIRCO” e transformara-se em presa do leão Adamastor, uma mercadoria viva do circo.

             Ninguém pôde fazer nada. O domador ainda estalara o chicote para espantá-lo, mas a chibata era curta e o felino nem notara, concentrado no ato de alimentar-se. Deixaram o bicho comer. Rápido.

            O locutor da tevê comentou o incidente em “off”, lamentou a perda da colega, enquanto a câmera focalizava o leão estirado sobre o feno. Às vezes Adamastor bocejava, às vezes cheirava a pata.

              Entrevistaram o dono do circo:

             – Não cheguei a tempo. Lamento... O Adamastor é manso, muito manso. Estranhou a mulher. Não estava com fome. O bicho tem caninos, vocês sabiam? Ela insistira na reportagem. Entrou na jaula sem o consentimento do leão...  Eu não tenho nenhuma responsabilidade... Repórter teimosa e ainda usava aquele perfume. O bicho gosta da essência: “Almíscar Selvagem”. Eu conheço bem.

             Elza escutou a narração do ataque e impressionou-se. Enxergou chumaços de cabelo nos cantos da jaula. Seriam os cabelos da jornalista? Não se come cabelo.

             Adamastor levantou a cabeça, balançou a juba, acomodou-se. Era muita azia. Digerir mulheres não é fácil. O leão bocejou.

            A grande dama, de repente, perdeu as contas do rosário e começou a suar. A camisola grudou em suas pernas. Lembrou-se de antigas histórias. Bezerros são sempre fêmeas diante dos lobos. Cabritas são garotinhas. Lobos as mordem com mordeduras de bocas enormes para melhor engolir. Não deixam restos. Apenas os sapatinhos vermelhos.

            O repórter terminou a notícia anunciando o sacrifício do leão raivoso. Elza mordeu os lábios. Aquele animal afetara sua postura de senhora da casa. E agora vão sacrificá-lo.

            “A fera não tinha culpa”, pensou. Não tinha culpa.

            Na hora dessa conclusão, Elza sentiu os dentes do gato  mordendo-a de leve. Percebeu que ele a dominara e essa submissão agora parecia necessária. Raios são descargas tão pueris. Do tempo das avós. 

             Desligou a tevê para imaginar o enterro da repórter.  A família velaria qual parte do leão? A mulher reduziu-se aos órgãos da fera. Não percebiam?

            Se Elza fosse da família... escolheria os intestinos do bicho, o estômago e o focinho, o focinho áspero.

             Adamastor agora estaria fechando os olhos.  Fecharia-se inocente em um ronco profundo. Elza se perturbou. O som do roncador  repercutiria sobre os móveis da avó.

            Quis voltar ao medo da chuva, ao ritual, à brincadeira. A tempestade tornou-se mais caudalosa. Elza rezou, uma conta e outra ave-maria. Lá fora os trovões e  faltavam quinze padres-nossos.

            BUM!  Na quinta oração, levantou-se incomodada, esticou as pernas. Percebeu a bobagem. Rezar embaixo de cobertas. O ritual da avó perdera a graça. Imaginou-se como o neném da casa. Era isso também. Pensou na repórter, a sua ousadia diante do leão. Um adversário muito superior e envolvente.

            Abriu a janela, tocou a chuva que descia pelos telhados. Desceu as escadas, escancarou a porta da cozinha. Nunca se banhara na chuva. Parou. Sonhou.  Entrou na tempestade e abriu a boca.

            A chuva transformou-se em língua. Lambeu o  corpo da menina, o rego dos pequenos seios. Quem notaria a calcinha molhada?

            A tempestade engrossou. O vendaval abraçou aquele novo corpo. Ela se tornara a presa e se portaria como tal.

            Elza acertou o ritual. Sempre como presas, as mulheres enfrentarão os carnívoros que vierem.

            Outro trovão.  O bichano  estava perto.

 

Autor: Paulo Fontenelle de Araujo


Leia os poemas: "Contatos Urbanos" e "Treze anos" que estão no arquivo do meu nome

E-mail do autor: phcfontenelle@gmail.com

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