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Contos-->Outro dia estive com Daniel -- 07/03/2003 - 21:32 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Outro dia estive com Daniel. Encontramo-nos quando ele havia chegado de uma viagem. Na mão, ele trazia um disco com registros de um tacógrafo cujos dados ele já havia prestado conta à empresa em que trabalha. Enquanto conversávamos ele rodava aquele disquinho de papel segurando-o pelo furo, com os dedos polegar e indicador. Eu, que até então não conhecia aquilo, curioso, pedi para ver. Tinha que pegar para ver, claro! No princípio vi semelhança dos riscos em zigzag com os riscos de um sismógrafo ou de um eletrocardiograma. Me passou também pela mente as imagens do pólo ártico e antártico. Deduzi que essas imagens vinham do formato dos riscos nos círculos e as nuanças da cor do papel. Já que para ele era apenas um papel riscado, perguntei se o dava para mim. Riu e me perguntou o que faria com aquilo. Respondi: “Nada. O mesmo que você, brincar de rodar ele na mão”.
Tacógrafo diz-se de um aparelho criado para medir a velocidade dos veículos automotores de carga. Como todo invento, aos poucos ou rapidamente, não sei bem, foram agregando-lhe outras funções. Com um tacógrafo no carro é possível conferir, também, a distância percorrida, o tempos de condução, as paradas e os giros do motor. Pode monitorar o desempenho do motorista ao volante e o consumo de combustíveis. Em primeiro plano, tudo isso visa garantir uma viagem segura. Mas as informações adicionais permitem, também, a precisão no registro do tempo ao volante para controle de custos e contabilidade com o objetivo de aumentar lucros.
Daniel é motorista de caminhão, por gosto. Pelo menos fez esta opção conscientemente. Abandonou a contabilidade e foi viajar. Está na estrada há mais de oito anos. Pelo que me consta, nunca envolveu-se em acidente sério. Viaja no domingo, após o almoço, e retorna na sexta-feira à tarde. O que ele talvez nunca imaginou é que naquele disco de papel que me deu estivesse registrado um pedaço de sua vida que não mais se repetiria, embora repetisse o ato de viajar todas semanas.
Daniel viajou no dia 24 de novembro. Em casa ficou Mariângela com os três filhos: Marcos com dezesseis anos, Túlio com doze e Taciana com quatorze anos.
A vida de Mariângela é simples. Acorda cedo, prepara o café e organiza a saída dos meninos para a escola e depois vai para o trabalho na loja de materiais de construção. À tarde, quando chega em casa, prepara a janta, põe a roupa para bater e enquanto isso passa a roupa para o dia seguinte. À noite assiste à televisão com os meninos e depois dorme. Mariângela é aquela de quem se diz ser, da casa, o homem e a mulher. Não reclama. O que ela e Daniel ganham dá pra se viver.
Taciana é a única que estuda num colégio particular. Coisas de pai que ninguém explica. Só ela, com a escola, gasta mais da metade do salário da mãe. Mas Taciana corresponde. Ela vai bem na escola. Túlio e Marcos não ligam pelo fato de estudarem na escola pública. São também responsáveis e saem muito bem.
Quando perguntam para Mariângela sobre Daniel, ela diz: “Está viajando, volta na sexta.” Quando atrasa um dia, diz que é porque ele aproveitou para fazer entregas extras. É verdade. Ela sabe que Taci pedirá mais dinheiro para comprar livros. Mariângela é bela, simpática, atrativa e gosta de festa. Apesar do orçamento apertado se consideram-se uma família feliz. Se não for, será no papel.
No tacógrafo está registrado que Daniel viajou de madrugada. Às quatro horas em ponto deu partida no motor. Saiu bem devagar, fez o sinal da cruz e uma oração. Agradecia por mais uma semana de trabalho pela frente. Viajou meia hora na faixa de quarenta a oitenta quilômetros por hora e depois parou para tomar café. Tinha o costume de não incomodar Mariângela. Logo mais, ela também teria seus afazeres. Permaneceu parado apenas quinze minutos e depois, salvo quatro quedas bruscas de velocidade, devido a engarrafamentos, ele permaneceu guiando sem parar, em velocidade quase constante, por três horas e meia. Eram oito horas e dez minutos quando parou para lanchar. A está hora Mariângela já estava no trabalho e os meninos na escola. Só retomou a viagem às nove e voltou a parar às onze horas e trinta. Era a hora de almoço e fazia questão de manter o hábito, inclusive quando estava em casa com a família. Estava só naquele restaurante de estrada, vazio, sentado com seus pensamentos longe. Em casa, no mesmo horário, mulher e filhos à mesa, desagregados de Daniel para não se desagregarem como família.
Uma hora apenas foi o tempo gasto para o almoço. Limpou a boca com o guardanapo, tomou café e saiu com o palito nos dentes, entrou na boleia e retomou a velocidade oscilando agora apenas nos morros ou tráfego s de caminhões pesados. Parou cinco minutos no posto dos guardas rodoviários e só depois de rodar mais três horas foi que parou novamente, desta vez para descansar. Eram três horas da tarde, o asfalto estava quente. Descansaria e evitaria estouros de pneus.
Às dezesseis retoma a viagem e toca praticamente sem parar até às vinte e quarenta horas. A velocidade é abaixo da média que matinha antes. Roda muito entre sessenta e setenta. Agora Daniel não escuta o ronco dos motores. As marchas são passadas de maneira automática. Ele e caminhão já haviam se fundido em uma única peça. Daniel medita sobre o futuro dos filhos. Questiona-se por que não paga escola para todos. Se pune por não estar perto deles. Passa-lhe pela cabeça a possibilidade de desvios de conduta pela sua ausência. Depois reconforta-se. Tem consciência de que está na estrada por eles. Sabe que no final de semana vão poder novamente estar juntos.
Parou para jantar. Gastou quinze minutos a mais do que no almoço. Às vinte e uma hora e quarenta minutos retomou a viagem que agora oscilava muito. Isso acontece em estradas de serras e curvas. Uma hora depois voltou a manter a velocidade constante. Oscilava pouco entre setenta e oitenta. A constância era uma qualidade de Daniel. As oscilações bruscas para menos decorriam do trânsito de outros veículos. Na calmaria da noite viaja com dois sentidos. Uma na estrada e outro em Mariângela. No trânsito livre, relembrava de quando namoravam; da vez que brigaram; de quando houvera possibilidades de não reatar o namoro; das viagens que vazia até a casa dela, dos irmãos, dos pais, dos bailes da adolescência. Sentia-se feliz por isso. E a sua felicidade era a razão da constância da velocidade que viajava. Nunca ligou para as possíveis denuncias de tacógrafo.
Subindo um morro, a velocidade cai e, aos poucos, ela vai retomando a normalidade até atingir a escala máxima de cento e vinte e cinco quilômetros por hora. Essa ocorrência, não sistemática, decorria do espírito. Sentia-se alegre de ter Mariângela e a única maneira de manifestar a sua felicidade era fazer algo que correspondesse a ela. Com o motor livre ele também tinha a sensação de liberdade.
Efetivamente a peça que fazia o equilibro e a direção do veículo era a mente de Daniel. Aquele disquinho de papel jamais seguraria vinte e cinco toneladas sobre uma carreta de seis eixos. Antes da vontade de alguém controlar a sua viagem existia a vontade própria. Mariângela, Marcos, Túlio, e Taciana eram as única engrenagens redutoras de velocidade.
A viagem de Daniel se completa no disquinho do dia seguinte. Pelo corte dá para ver que a agulha do tacógrafo não parou de riscar a tinta pó do papel. Só ele e Deus sabem que hora parou. Mas pelo menos imaginemos Daniel voltando. Não precipita na volta. Pensa nos amigos, no churrasco de sábado e no clube pela manhã, que irá com Mariângela. Isso se Taciana não precisar de mais livros.
Daniel chega, faz o sinal da cruz, uma oração de chegada, encosta o caminhão no estacionamento, acerta as contas e volta para casa. Eu acho muito pouco o sentido dos registros de um tacógrafo. Tão pouco sentido tem, como tem o sentido que querem dar às nossas vidas. Se alguém inventasse um aparelho que medisse sentimento, talvez a vida tivesse mais sentido e quem sabe nem precisaríamos de tacógrafos.

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