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Contos-->O Espírito do Jaguar -- 01/03/2003 - 11:16 (Wilson Roberto de Carvalho de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O ESPÍRITO DO JAGUAR

A estalagem “Porco-do-mato” tem esse nome por dois motivos. Primeiro: é suja e fica no meio da floresta amazônica, em algum ponto entre o Brasil e a Bolívia; segundo: seu proprietário é grande, sujo e violento – exatamente como um porco-do-mato. Aliás, ele responde orgulhosamente pela alcunha de “Grande Porco”.
A chuva torrencial vence parcialmente sua batalha secular contra o calor dos trópicos e o véu da noite envolve a selva. Algumas dezenas de homens – garimpeiros, seringueiros e pequenos traficantes – entretêm-se com bebidas, cigarros e conversa fiada.
O ruído da chuva aumenta quando a porta da estalagem é vagarosamente aberta e um homem de pequena estatura entra, trajando peles e ostentando uma espessa barba grisalha. Apesar da aparente idade avançada, o visitante caminha com a leveza e a elegância de um garoto. Senta-se lentamente a uma mesa e acena para o estalajadeiro. Este se aproxima, com seus costumeiros maus modos, e pergunta:
– Tem dinheiro, forasteiro?
– Não – responde o homem – mas estou disposto a pagar com trabalho.
– Não preciso de ajuda.
– Então, posso contar uma história.
– E o que garante que é uma boa história?
– Se não gostar, poderá me espancar.
O dono da estalagem sorri, perverso. As dúzias de homens presentes fazem chacota.
– Pois bem. Então conte a história.
– Primeiro, traga-me uma garrafa.
Ao sinal do “Grande Porco”, uma jovem negra traz uma garrafa de aguardente e um copo. O velho observa a bela garota e seus olhos ficam marejados de lágrimas. Enche o copo, bebe um grande gole e começa:
“Há incontáveis gerações, quando as ilhas flutuantes finalmente se uniram formando a América Central, homens, animais e deuses caminhavam lado a lado. A nova ponte entre as Américas gerou mudanças de toda sorte, mas o maior impacto foi o encontro de espécies, até então desconhecidas entre si. Nessa época viveu Wan’sel, um grande leão-da-montanha, poderoso líder de seu bando – sim, porque naqueles dias os grandes felinos andavam em bandos. Wan’sel tinha um grande harém com as mais belas e saudáveis felinas do norte. Seus descendentes chegavam às centenas e ele era muito feliz. Porém, havia coisas que o intrigavam. Ele notava que os homens adoravam os deuses, apesar de serem idênticos a eles. Se havia alguma diferença entre as divindades e os humanos, o grande puma não a notava. Além disso, ele percebeu que havia todo um novo mundo para ser explorado, e seus olhos verdes brilhavam com a expectativa de aventura.
Enfim, Wan’sel resolveu explorar a nova terra criada pelas ilhas errantes e enveredeou-se em uma longa jornada pela América Central. Caminhou meses a fio vendo seres que nunca havia visto. Caçou animais estranhos – e saborosos – e bebeu de rios maiores que as estepes do norte.
Assim foi, até que uma noite ele a viu. Uma felina, sem duvida, mas sua beleza era indescritível. O luar refletia em sua pelagem negra, enquanto ela lambia suas patas, com uma sensualidade profana.
Sorrateiro, Wan’sel aproximou-se da bela pantera negra e perguntou:
– Quem é você?
– Juna’ili – ela respondeu.
– Por que você tem sobre si o véu da noite?
– Por que você porta o brilho do sol?
E aproximaram-se e amaram-se. Pela manhã, Wan’sel despertou e não encontrou Juna’ili. Frustrado, continuou sua jornada.
Certo dia encontrou uma grande aldeia de homens e ficou ao longe, observando horrorizado como aqueles macacos pelados sacrificavam barbaramente animais a seus deuses. Ele não conseguia entender como a morte de uma criatura poderia servir para alguma coisa, além de aplacar a fome do matador. Em meio à fumaça e aos toques frenéticos do tambor, Wan’sel pode ver sua doce Juna’ili sendo carregada, amarrada pelas patas a um pau. Era óbvio que ela estava sendo preparada para o sacrifício em favor aos deuses dos homens, que observavam satisfeitos os atos de covardia de seus seguidores.
Num ímpeto que supera o instinto e a razão – conhecido como amor – Wan’sel invadiu a aldeia e avançou sobre os algozes de sua amada. No primeiro instante, tomados de surpresa, humanos e deuses caíram por terra, vitimados pelas furiosas presas e garras do leão-da-montanha. Wan’sel conseguiu, com seus dentes, libertar Juna’ili, e ambos travaram uma feroz batalha contra os humanos e seus deuses.
Porém, a superioridade numérica e o uso de armas logo mudaram o rumo dos acontecimentos, e tanto Wan’sel quanto Juna’ili foram dominados. Em meio a seus mortos, os homens gritaram para seus deuses mesquinhos como iriam vingar os seus, imolando os felinos.
– Sabia que não poderia vencer – disse Juna’ili – Por que deu sua vida para me salvar?
– Não lhe dei nada que já não fosse seu – respondeu Wan’sel.
– Eu também tenho algo seu – a pantera olhou para o abdome, já proeminente.
Numa explosão de fúria, Wan’sel libertou-se e atacou seus captores. Mas foi em vão. Inúmeras lanças e flechas o atingiram e ele caiu, moribundo.
Juna’ili rosnou enlouquecida, enquanto era levada até o lado de Wan’sel, já quase sem vida. Num gesto de pretendia ser cruel, ela seria sacrificada ao lado dele. Os homens levantaram suas lanças e os deuses abriram um largo sorriso perverso.
Súbito, os céus gritaram na língua primal do trovão e a figura gigantesca de Tupã se fez presente. Abraçada a ele, a linda Jaci trazia lagos de lágrimas nos olhos.
– Malditos! – vociferou Tupã.
A um gesto seu, homens e deuses foram incinerados instantaneamente. Jaci tomou Wan’sel nas mãos e o acariciou.
– Por quê? – perguntou o puma.
– Não sabemos – respondeu Jaci.
– Mas vocês são deuses...
– Somos bem mais que isso. Mas as ações dos homens são um mistério para nós.
– Onde está Juna’ili?
A negra pantera aproximou-se, lambendo carinhosamente os olhos de Wan’sel. Suplicou:
– Não parta. Quero que você viva.
– Sabe que não é possível.
– Quero ir com você.
– Sabe que não é possível.
– Mas eu preciso estar eternamente com você.
Tupã interrompeu:
– Isso é possível. Se você quiser.
Juna’ili acenou com a cabeça, concordando.
Tupã levantou o braço e pegou uma estrela do céu. Retirou do útero de Juna’ili um pequeno felino pelado. Do puma, ele extraiu o pelo dourado e cobriu o pequeno rebento. Os buracos das flechas ele preencheu com pedaços retirados da pantera. Como não poderiam suportar as agruras, Wan’sel e Juna’ili morreram. Suas almas foram unidas à estrela e devolvidas ao céu, onde brilham eternamente.
Tendo nas mãos o pequeno filhote pintado, Tupã sentenciou:
– Você, criatura, é o primeiro de sua espécie. Será belo, forte e feroz como seus pais, e sua semente predominará sobre suas fêmeas. Porém, a cada dez anos, você caminhará entre os homens como um deles, na tentativa de entender a razão de sua loucura. Um dia haverá muitos de sua espécie, mas seu espírito será apenas um”.

O silêncio profundo da taverna “Porco-do-mato” consegue sobressair-se à própria tempestade. O velho continua:
– Então, até os dias de hoje, o espírito do jaguar caminha entre nós, a cada dez anos, tentando entender como pode haver criaturas tão estúpidas como os humanos.
O dono da taverna grita, pegando forte o forasteiro pelo braço:
– Chama-me de estúpido?
A resposta do velho tem a forma de longos dentes pontiagudos, e um rosnado ameaçador parte de sua garganta. Imediatamente ele o larga, como quem larga um ferro em brasa.
O homem velho se levanta e caminha até a porta. Antes de sair, volta-se para a platéia silenciosa e diz:
– Hoje, tanto os pumas quanto as panteras não andam mais em bandos. Todos os leões-da-montanha procuram, solitários, sua Juna’ili, e todas as panteras negras aguardam, ansiosas, por seu Wan’sel.
A porta é fechada quando o velho ganha a escuridão úmida da noite.

Vencendo o torpor que os dominava, um pequeno grupo de homens corre para fora. Tudo o que podem ver são as marcas de patas felinas banhadas pela chuva.




– FIM –
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