Usina de Letras
Usina de Letras
288 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62176 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50582)

Humor (20028)

Infantil (5424)

Infanto Juvenil (4757)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6183)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->Namorados,etc. - um texto de Milton Hatoum -- 04/11/2016 - 18:16 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Namorados,etc." - um texto de Milton Hatoum

João Ferreira

04 de novembro de 2016



Sou um leitor assíduo do caderno 2 do Estado de S. Paulo. Existe nesse caderno um labirinto sagrado onde moram sábios e competentes escritores que publicam textos que nos trazem muitos ângulos de análise e ensinamentos. De segunda domingo, por ordem de sucessão dos dias de semana, são publicados originais de Lúcia Guimarães, Vanessa Bárbara, Humberto Werneck, Arnaldo Jabor, Roberto Damatta, Luís Fernando Verríssimo, Inácio Loyola Brandão, Milton Hatoum, Marcelo Rubens Paiva, Sérgio Augusto, Ruth Manus, Leandro Karnal. Curto todos porque todos são estrelas com luz própria. Mas no meio de tudo vou tendo minhas preferências também. É natural. Pelo culto que presto à "Obra Aberta" de Umberto Eco desde seu aparecimento em pleno domínio do formalismo russo e do estruturalismo, e pelo que me ensinou a "Estética da Recepção" da escola alemã de Kontanz, liderada por Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, e Hans Ulrich Gumbrecht, habituei-me a dar a máxima importância à teoria que desfechou a obra literária e expandiu a democrática convivência entre leitor e autor. As exposições de Jauss e Iser nos ensinaram muito sobre a relação e interação do texto com o leitor. Tornou-se pois uma conquista comum a admissão pacífica desta relação entre leitor e escritor. Em resumo há que admitir, inicialmente, que cada escritor tem sua escrita, seu saber, seu círculo de ideias tacitamente delineado, seus destaques ostensivos de mensagem, sua literariedade marcante, sua maneira de analisar a cultura de massa e a cultura erudita, sua forma de se comportar frente aos acontecimentos mais marcantes e mais comentados do mundo e que, do outro lado do texto diagramado, existe um personagem esotérico que se chama leitor. Tudo isso faz parte do mundo da produção e da circulação de ideias através da escrita no âmbito da galáxia literária. Os textos de cada escritor levam para o leitor uma carga cultural que deverá ser contatada, conferida, consumida, interpretada ou até abandonada pelo leitor. O leitor é um candidato a dar uma atenção e uma resposta a cada texto. A primeira resposta pela leitura. A segunda resposta pela análise e pela interpretação. E a terceira resposta pelo possível diálogo e possível crítica às propostas do texto. O que marca especificamente cada um destes colunistas ou colaboradores do Caderno 2 do Estado de S.Paulo é a tonalidade própria que cada um demonstra, tonalidade que ressoa junto dos leitores como um solo que emerge no meio da variedade de registros e de instrumentos do conjunto de uma orquestra. Colocando-me agora como leitor eu diria que sou esse tipo de ouvinte que distingue sons diferentes em cada texto, sons que o ouvido de minha alma melhor distingue. É por isso que como leitor me amarro e fico muito voltado para textos singularmente específicos como são os textos de Arnaldo Jabor que sempre distingo e me encantam pela originalidade, pelo humor, pela capacidade de análise, pela crítica desassombrada e por sua original leitura da sociedade em que vivemos, sociedade com um rosto acovardado e frágil em sua máscara de hipocrisia e encobrimento. Às quartas-feiras presto minha atenção ao texto de Roberto Damatta, de quem sou leitor há muitos anos.Mas leio também Lúcia Guimarães, Vanessa Bárbara, Luís Fernando Veríssimo e outros. Hoje, tive a sorte de ler um texto que aos meus sentidos interiores soou como um texto maravilhoso e fantástico. Um texto da autoria de Milton Hatoum intitulado "Namorados, etc." É um texto que mistura reportagem com crônica, comentário, análise e crítica social. Um texto que concentra uma literatura de fundo. Uma palavra elegante mimetizada com cultura de fina observação e habilidade artística. Hatoum aproveita uma visita que fez ao Recôncavo Baiano, região de Cachoeira e S. Félix, que conheceu em tempos. Fala do edifício suntuoso de uma Faculdade cristã, lá no alto, "não sei se evangélica ou adventista". Em tom curioso, o escritor-repórter descreve assim sua visita e observação: " No calor do meio dia, jovens namorados saíam de mãos dadas da Faculdade. As moças, de saia longa preta e blusa branca de manga comprida, nada ofereciam à fome do olhar, que era apenas a fome efêmera de um passeante curioso. Mesmo assim, pouco ou nada, ofereciam, nem mesmo tornozelos sem meias. Os rapazes, engravatados, usavam paletó e sapatos pretos. E os solitários, com trajes semelhantes, seguravam uma Bíblia de capa preta. Não notei esse pudor nem essa fé fervorosa na minha primeira visita ao Recôncavo. Eu era um jovem universitário e o Brasil não dava sinais ostensivos de que seria uma triste república de pastores em que milhões de fieis só leem a Bíblia, e o que é mais temeroso, leem o livro sagrado ao pé da letra, guiados por pastores e "bispos", não pouco ávidos de dízimos e de poder político... [Fecha parágrafo]. Lá em baixo, no centro histórico de Cachoeira, fui ver a Capela de Nossa Senhora da Ajuda, uma das joias da arquitetura colonial da Bahia e do Brasil [...]Fiquei admirando a capela restaurada pelo Iphan no ano passado[...] Nos degraus que dão acesso ao alpendre, uma moça de bermuda e camiseta regata pousava as pernas sobre o colo do namorado[...] Namoravam numa espécie de malemolência felina[...] Fui ao mercado de Cachoeira, andei pelo centro da cidade e subi a colina para ver mais uma vez a capela. Os namorados ainda estavam lá, agora adormecidos, inertes num gesto de estatuária sensual[...] Não sei se louvam a Deus ou adoram uma divindade pouco conhecida. Sei apenas que são humildes amantes baianos nos degraus de pedra de um santuário e isso os torna mais livres e talvez mais felizes." [Fecha a citação].

Curti muito o texto de Hatoum que li em plena manhã de 4 de setembro quando tomava meu café da manhã na padaria Capri, em Brasília. Seu enorme poder de observação crítica mostra a maturidade de seu tempo social, e nos indica que é um escritor que consegue ser democraticamente convivente, lírico, arguto demolidor de "pústulas cancerosas" e hipócritas do tecido social, distinguindo-as, para bem da nossa lucidez, das células oxigenadas e vitalizadas de uma sociedade ainda em percurso.

João Ferreira

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 73Exibido 715 vezesFale com o autor