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Contos-->O amante que virou monstro -- 11/08/2000 - 08:30 (gilberto luis lima barral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O amante que virou monstro

Ela lhe trouxe de volta alguns objetos que naqueles bons dias ele havia deixado em sua casa. Eram presentes seus a ela, na verdade ele não se lembrava de serem tantos. Talvez merecidos. Chovia torrencialmente nesta noite escura, cheia de ventos e sons cortantes em que terminavam seus romance. Temeroso depois das despedidas, se é que houve alguma, ele quis seguí-la e protegê-la, ao longe ao menos, no caminho de volta que ela faria. Não vinham sendo namorados desde alguns dias, mas como não puderam devido ao grande amor se desfazerem do caso de uma vez por todas levaram alguns dias nessa coisa de trazer livros de volta, entregar camisetas, devolver retratos até chegar no momento verdadeiramente doloroso e “necessário” da última visão. Quantas lágrimas a consumir. O amor não cessa de doer. Nos revela um lado solitário, desesperançado, desprezível e profundo. Primeiro nos leva a um lugar tranquilo, depois às sombras.

E o que não faltava eram sombras e vultos naquela caminhada. Chovia, e ao veio das caudalosas enxurradas nas ruas vinham se somar as águas do pranto abissal, interminável de Trissina. Ela berrava, gritava, grunhia, rasgava-se. Atrás dela vinha o ex-namorado que ao longe podia escutar a lamúria. Ele não tinha visto ainda ninguém tão desesperado e perdido. Quis correr à frente da moça para ver se não se lhe acometera uma cegueira, ou a loucura. Uma situação ímpar de prantos tão doloridos, mórbidos e vertiginosos. Poderia se antecipar no percurso e tomar Trissina nos braços e calar sua tristeza num abraço ou um beijo. Mas não quis, isto já havia sido feito ontem e não os livraram de tamanha dor. Ali sob aquela chuva dos diabos a coisa se amplificava . Tinha que ser o fim. Na verdade tinham mesmo


marcado aquele encontro com perspectivas de um novo retorno, qual nada iludiram-se. A uns cincoenta metros da casa da moça Martov parou e ficou ao longe observando-a entrar no prédio onde morava. Não estava tranquilo. Acabava de terminar uma relação.

Dois dias depois já não chovia mais na cidade. Martov saiu para as ruas e viu as pessoas do mesmo modo, inteiradas em suas vidas. Se viu possuidor de uma vida também somente não sabia o tamanho e o sentido dela. Numa banca de jornais leu numa manchete que uma famosa artista se desfazia de seu quinto casamento. Achou aquilo um disparate, mas ficou feliz em saber de outras histórias parecidas com a sua. Pode ver que não era tão singular assim. Como anunciavam nas calçadas um corte de cabelo baratíssimo resolveu experimentar um destes. Se aparecesse com um corte novo quem sabe não suscitasse comentários. Alguma explicação. Explicar é bonito: um dia a mulher pediu ao seu amante que deitasse sobre seu corpo e lhe olhasse nos olhos assim nasceu o amor, dizem alguns. Há muito o jovem não se via no espelho. Pode se ver de frente e de costas na barbearia. Não estava tão moço. De certo modo no entanto a vida lhe tinha sido generosa, percebeu que os esparsos cabelos brancos e as incipientes rugas lhe tornava mais imponente, mais belo?

Saiu e pôs-se a circular pelas ruas da cidade. Pensou que talvez sua beleza a pouco refletida nos espelhos do salão do barbeiro pudesse encantar alguém. Não compartilhava da teoria de que quando alguém parte é porque outro vai chegar mas andava disposto a experimentar a vida novamente. Afinal depois da tempestade vem a bonança. As ruas limpas, o cheiro gostoso das árvores encharcadas. O céu inclusive aberto num azul claro como que alvejado. E se sua beleza talvez encante alguém então quem sabe lhe ofereçam um passeio, quem sabe os ombros.

Rodou, andou muito mas não achou nada, por fim uma descida a um lugar familiar inundou seus mais recentes planos de experimentar a vida arrastando-o atrozmente sozinho ao bar onde sempre chegava com Trissina. Suas promessas de novos

hábitos foram esquecidas. Ali o coro dos amigos embevecidos em álcool e fumo proporcionaria paliativas e animalescas gargalhadas noite e dia adentro e quantos mais dias ele precisasse. Sentindo-se em casa e aturdido discursou sobre o ódio. Nunca mais essa história de um olhar de uma mulher sobre o homem e pedidos de amor. O ódio lhe subia pelas ventas arqueadas a plenos pulmões. O suor banhava sua camisa. À gesticulação descontrolada desgrenhava os cabelos, soltava os botões das vestimentas. Os olhos pulavam pelas órbitas. Junto das palavras no falatório vinha um azedume das profundezas do estômago cheio das porcarias consumida naquela espelunca. Estava horrível, vociferava.

Tomado no alarido não percebeu a entrada de Trissina, glamourosa no bar. Metida num calça básica de tecido sintético acetinado preto que lhe realçava os soberbos volumes e numa t-shirt coladinha rosa choque nem parecia a desolada moça de outros dias. Estava numa versão matadora. Sempre esteve, necessário afirmar. Foi para os fundos. Lá onde estava Roci, o preterido, um amiguinho como dizem, sem chances nem piedades. Chegando-se até ele lhe disse em alto e bom som.

- seja mais homem comigo!

Roci tomando-a pelo braço os conduzia-os para fora do bar. A moça estava alegrecida pelo álcool, via-se no rímel, batom e esmalte, mas não de perder os saltos. A expressão com que anunciara sua chegada era uma incógnita insolúvel para o amiguinho desde o primeiro encontro deles. No dia da proclamação desta sentença o preterido tomava uma soda e comia torta de frango, Trissina fumava, ele não se inteirou das intenções dela nunca mais. Como de resto não se inteirava de nada. Talvez tivesse uma cabeça oca.

Martov deverás transformado já sobre o balcão palrando percebeu aos poucos o quadro, a movimentação, a cena e os protagonistas dela. Se aprumou. Concomitantemente o casal já à porta do bar tomou o rumo da rua atravessando-a

em direção a sala de cinema onde entrou. Trissina viria dormitar o filme inteiro. Martov ficou à espreita ensimesmado esperando pela saída deles.

Não sabia porque fazia aquilo se já tinham terminado os seus namoros. Ciúmes? Despeito? O certo é que estava colérico. Embriago de conhaque, cerveja e cigarros a coisa aumentava. Que estava agindo sob paixão isto era certo mas não era romântico. De transtornado se transformava em outra coisa. Estava se lixando para o amor. Pouco seguro de si como era agora lutava pelo partido do ódio. Se segurava de não se perder. E sozinho ali, bêbado a espreitar das sombras e aos poucos em um monstro cada vez maior se transformando. Havia os sintomas da alucinação e medo nos seus olhos dilatados, estáticos e opacos emoldurados pela face enrubescida no etílico. As roupas empapadas em suor ganhavam caimentos novos arrastando-se sem mangas, coses ou bainhas. A nova cabeleira de poucas horas despenteada. Um bafo fedorento qual urina velha e o baba a escorrer pelo peitoril. Devia se afastar dali. Urgia se afastar. A cada instante mais monstro ainda.

O casal saiu do cinema, Martov carcomido o seguiu, queria ver onde daria aquilo. Embora, cortados os cabelos à tarde, as orelhas e pescoço estivessem mais à mostra sua cabeça não se refrescava. Hoje estava ele, para se ter uma dimensão mais específica da coisa monstro, transfigurado tal Trissina chorosa a duas noites atrás. Ela sempre maravilhosa nesta noite passada de término de namoro esteve horrível, chorando, babando, descabelando, falando coisas sem sentido algum, toda desbaratada. Como Betty Blue ao se lhe arrancar um olho. Com o diferencial do silêncio absoluto deste momento de agora. Martov continuava na sua perseguição em movimentos aveludados, imperceptíveis. Logo chegaram nas imediações do prédio onde morava a moça.

Trissina entrou no prédio, Roci a seguiu. Ultrapassando o edifício e se colocando entre plantas diversas de um jardim apropriado à arquitetura do território daqueles

moradores Martov pode ver a luz da sala do apartamento ser ligada. A cortina não o deixava ver o casal lá dentro. Aproximou-se e ficou quase que sob a janela, o mais perto que podia se deixar chegar. Logo depois acendeu-se uma lâmpada na cozinha. Demorou-se alguns minutos, muitos. O coração e o cérebro do monstro se estreitavam juntos. O coração apertava. O cérebro enviseirava. Cometeria uma merda qualquer. Afinal estava um monstro feio mesmo de álcool, fumo e paixão. De dentro do apartamento veio o cheiro forte do café cozido ao calor da água fervente. Martov respirava tenso. Mais longos minutos vieram. A lâmpada do quarto não se acendia. Isto aliava um pouco a tensão instalada naquele lugar. Não demorou muito uma luz clareou a entrada do prédio. A porta se abriu para Roci sair a passadas lentas porém equilibradas. Do meio da escuridão da noite o sorriso de Martov pode brilhar intenso quase delator aos olhos de Trissina que acompanhava o amigo até a portão de saída. O amiguinho, o preterido tinha ido embora sem penetrar no quarto do seu amor. O monstro Martov foi voltando a humano. E saiu das sombras para o jardim. Mas se ocultou à amada. Ela entrou. Pelas ruas sob as luzes saiu aquela figura saltitando como um espantalho a buscar seu rumo.


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