Duas fortes passagens, ambas relacionadas à compaixão, levam-nos a Dostoiévski e Nietzsche. É sabido que o filósofo alemão muito admirava o grande russo. Pois bem... No livro "Crime e Castigo", do Dostoiévski, o personagem principal sonha que, acompanhado pelo pai, assiste a uma tremenda covardia contra uma pobre égua. Homens bêbados passam a golpeá-la e chicoteá-la incessantemente, inclusive nos olhos. O dono é o mais perverso e alega que, por lhe pertencer, poderia dispor do seu corpo. E autoriza a rapaziada: " Nos focinhos, nos olhos, dêem nos olhos!". E de tanto apanhar, a égua "estende o focinho, respira c/ dificuldade e morre".
O personagem, então menino, não compreende a passividade do pai (teríamos leituras outras por aí, mas o contexto é a compaixão). Então, "abre caminho por entre as pessoas e se aproxima da égua, pega-lhe no focinho morto, ensangüentado, e beija-a nos olhos e nos lábios". E "arrebatado de furor, lança-se com os pequenos punhos contra" o dono do animal.
Agora, voltemos ao Nietzsche, admirador confesso do Dostoiévski. O fato a ser mencionado não se restringe à esfera literária, mas realmente ocorreu em Turim. Vemos que guarda semelhança c/ o sentimento acima narrado. Aqui vai: o filósofo avistou um cavalo sendo violentamente espancado pelo cocheiro. Revoltou-se e, aos berros, correu em direção ao animal. Abraçou-lhe então o pescoço, chorando copiosamente. Muito desesperado, dizia-lhe algo. Talvez pedisse perdão pela humanidade, que tanto o decepcionava.
Curiosamente, isso ocorreu no mesmo ano em que a loucura de Nietzsche foi diagnosticada. Alguns dizem que em ápice da sífilis. Evidentemente, a dispersão na época era bem menor do que dos nossos tempos. Imagino como deve ter se entregue às obras de Dostoiévski, sorvendo cada uma de suas palavras, imagens e significados. Inteligências raras. E entre as suas convergências, sem dúvida estava a compaixão.
|