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Contos-->UNHAS -- 11/02/2003 - 23:55 (PAULO FONTENELLE DE ARAUJO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

           Tinha que ser logo no dia em que toda a sua família estava em sua casa. Um vento forte fechou a porta do quarto na ponta do dedo médio esquerdo de Oswaldinho, seis anos de idade.

            Waldinho gritou, saiu correndo, encontrou a mãe e chorou. Suplicou à mulher que lhe salvasse o dedo. A mãe soprou, soprou, passou mercurocromo, cobriu o machucado com ‘band-aid”, beijou o dedo, as mãos do filho, beijou  e despachou o garoto.

            A dor, de fato, passara, mas o menino parou na ferida. Ficou remexendo o machucado. Tirava o “band-aid”. A unha surgia. Diferente, roxa, dobrada.  Mostrou para a tia, exibiu para os primos. Apontou o sangue coagulado.

            O pai chegou em casa. Examinou o dedo e perguntou se o filho chorara.

             – Homem não chora. Não quero filho maricas, chorando por bobagens. 

             Os primos riram.

               – Maricas? – envergonhou-se. Não era maricas e, se um dia na vida chorou, foi porque a pancada doera. Ninguém fica muito homem depois do primeiro dedo espremido na portada. 

              Oswaldinho usou muitos argumentos para assegurar a virilidade. Algo que ele mal entendia, senão que parecia algo bruto, mantido aos empurrões. Empurrar os outros. Chutou a porta e terminou por fechar o semblante miúdo, sem entender as teses do mundo masculino.

            A mãe intercedeu, comentário mais besta do marido:

             – Saí de perto! 

              Chamou o filho e consolou-o. Aquele seria um dia especial. A família iria ao circo.

             – Você não vai deixar que este machucado atrapalhe o passeio, né? 

            O circo erguia-se longe, onde palhaços vendiam marionetes. A família acomodou-se junto ao picadeiro, e Oswaldinho, que ainda admirava o ferimento, passou a admirar a malabarista de maiô azul que entrou no palco.

            A artista arremessou para o alto duas argolas douradas, deitou-se sobre a corda bamba, segurou os bambolês que jogara, com a ponta dos pés, girou os círculos e abriu as pernas em leque, enquanto o assistente encaixava ali mais duas, mais três, muitas argolas imediatamente rodopiadas.

            As pernas da malabarista pareciam hastes de um carrossel. Giravam. E elas eram inquebráveis, flexíveis, lisas, magras.

            De tanto se impressionar, Oswaldinho excitou-se, e seu pequeno pênis cresceu. Já sentira antes. Aquilo embaraçava a sua vida. Ele não entendia. Ajeitou a cueca. Meteu as mãos nos bolsos da calça. Não cedia. Não cedia. E tão forte foi o gesto de acomodar o sexo em seu devido lugar que a unha machucada despregou-se e caiu.

              Oswaldinho entrou em parafuso. O pênis tornou-se irrelevante. A unha valia mais. Escapou. Achou a casca no chão. Apavorou-se. Inutilizara o dedo. Dedos precisam de unhas ajustadas.  Unhas precisam estar encaixadas nos dedos.

            A malabarista terminou o show, contorcendo-se para a reverência final. Ela tinha o controle de seus encaixes, e o menino assustou-se com o padrão desmontável da artista.

            Sem dúvida, meninas têm outra fixação. As pernas pareciam avulsas e sem roscas.  Rolam pela casa. Desconjuntadas, iguais a pernas de bonecas.

            No entanto, ele perdera a unha. Meninos deveriam ser criaturas pregadas até os fios dos cabelos.

             Encontrou a unha e a apertou em sua cavidade natural. Fixou o “band-aid” e girou. A tampa do dedo nunca mais cresceria. A pancada tirara a cola? Viveria sem unha. Era desmontável agora. Talvez nem fosse mais homem.

            Pensou em resolver o problema. Cogitou deixar o sangue coagulado sobre o dedo ferido. Adaptar ali um anel dourado. Sentiu-se o maricas.

            O garoto desistiu de acompanhar o espetáculo. Apertou novamente o “band-aid”. A fita não perdera a aderência. A unha despencava. Nem cuspe grudava.

            Quis guardá-la no bolso e tentar conectá-la mais tarde com cola (água fervida com maisena junta copo quebrado). Desistiu. No bolso ela racharia. Tão poucas as opções. Terminou por pressionar a unha no dedo com o polegar da outra mão e, se fosse necessário, pressionaria o dedo até o fim da vida.

            O pai tossiu.  O que ele pensaria diante do desmembramento do filho? Homens não perdem pedaços. Homens não choram. Ele queria chorar, mas a imposição paterna o impossibilitava de manifestar-se diante de desarranjos.

            O espetáculo prosseguia. Quis esquecer o problema. Em vão. Um elefante descortinou o picadeiro, chutou duas bolas imensas salpicadas de estrelas.  A domadora colocou a cabeça sob a pata do paquiderme. Pata imensa, unhas irremovíveis, cravadas.   

            Por fim, chamou-se o público para a última apresentação do dia: o Globo da Morte. Dentro de uma gaiola redonda, do tamanho do circo, dois motociclistas soltariam piruetas. A plateia aplaudiu.

            As motos roncaram alto e voltearam o interior do globo. Oswaldinho abriu a boca e esqueceu o dedo, o “band-aid”, a unha solta. As motos giravam. Suas rodas raspavam o metal da gaiola como lixas motorizadas.

            Um dos motoqueiros surgia de ponta-cabeça para, no instante seguinte, encontrar-se sob o capacete do outro motoqueiro. Eles sempre escapavam. Giros em grande velocidade e precisão. Máquinas sob o controle do homem.  O público aplaudiu. 

             – Que bacana! – chamou a atenção do pai. – Olha, papai! O senhor tá vendo?

             O pai respondeu que sim. Era bom estar ali no circo e pediu para o filho reparar no motor forte das motocicletas.

            O motor das motocicletas trouxe o menino de volta ao drama da unha despregada. Olhou o dedo. A unha caíra novamente no meio do show. Desapareceu. Decerto avançara pela arena. A mãe colocara no seu dedo um  esparadrapo inútil.

              Oswaldinho se perdeu também.  Tocou a ponta do dedo. Esponjosa. A mutilação fora irreversível.  Impossível qualquer emenda. Na falta de opções, montou uma careta sofrida, humilhada para sempre, acabada mesmo. Poderia participar de um show de aberrações. Sentar-se junto à mulher barbada, aos irmãos xifópagos, aos anões de voz grossa.

            À noite, o mutilado dormiu triste. Não tinha mais os dentes de leite. A mão seria outra boca banguela.  Decidiu esconder a mutilação dentro do bolso, usar esparadrapo para disfarçar o dedo. O esparadrapo seria apetrecho de circo. Viveria debaixo da lona. Na farsa.

            Foi com grande alívio que o farsante viu, depois de alguns dias de bolsos suados, a unha do dedo médio crescer novamente. 

             Oswaldo percebeu o  ser excepcional que era. Um homem mais do que homem... um mágico. Mágico homem provisoriamente na condição de menino.

             Mágicos constroem unhas nos dedos, fazem as mãos criarem lenços, tiram lenços brancos da cabeça dos pombos. Os pombos pousam no ombro do mágico.  

 


Autor:Paulo Fontenelle de Araujo
E-mail: phcfontenelle@gmail.com
 

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