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Contos-->Fórceps -- 14/01/2000 - 02:48 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O sol naquela hora, naquele lugar e naquelas circunstâncias era insuportável, tamanha a ansiedade de todos os outros pais e mães que aguardavam seus queridos no portão do colégio. Mais um dia letivo do ano, barulho, carros, fumaça. Tudo como sempre esteve.
Abriram-se os portões.
A princípio, era natural aguardar a sua pequenina sair; em questão de minutos e crianças, lá viria ela, devagar para não se sujar. A mãe pensava assim, com aquele carinho habitual e cruzava os braços observando por cima de todos os outros a saída dela.
Então, de algum lugar, veio o medo: o sibilo de um mal enorme, inevitável e ao lado.
Como um arrepio que percorria cada centímetro de sua pele, alguns fatos foram revistos de maneira simultânea dentro de sua cabeça, a começar pela própria fisionomia da garota, da garota que esperava ali, saindo da aula ao meio dia: os joelhos sujos de terra das brincadeiras do recreio, o cabelo penteado e a mal formação que acabava na altura do cotovelo direito; ela não tinha um braço, a menina não tinha. Nasceu daquele jeito, mas tudo bem, deficiente física porém estaria apta a muitas coisas independente daquilo. Desde o começo não interferia em nada, absolutamente nada: cinco minutos, olhava para o relógio lembrando da filha e ela não saia, o que está acontecendo meu Deus, eu nunca me senti assim antes, pensava com aquela dor aguda que só as mães têm. Saiam aos montes, aos berros, aos trancos, pisando e derrubando tudo pela frente até encontrarem seus pais; centenas delas, suadas e exacerbadas no delírio de uma fragilidade aparente até onde algum adulto poderia analisar. Tudo bem, ela está vindo, sempre demora. Sempre demora, não quer se sujar, o que está me afligindo? Olhou para o relógio, voltou o rosto até o carro mal estacionado com o vidro aberto e pensou no atraso do almoço. Meio-dia quase, daqui a pouco eu entro e vou até a classe dela busca-la. Veio uma certa raiva, era natural. Será? Não hesitou mais, dirigiu-se para dentro do colégio enorme, navegando contra a corrente de alunos mal educados que insistia em sair por motivos óbvios se não o término da jornada matinal. Altos, baixos, magros, gordos, lancheiras e mochilas, amarrotados e nada de ver a sua garota sem braço caminhando vagarosamente como fazia todo santo dia naquela mesma hora. Sete horas, foi de sete horas da manhã que ela entrou, eu vi, eu vi. Ainda fez tchau para mim no carro, enquanto eu abaixava o vidro para acenar também. Acelerava o passo cada vez mais, procurando, estudando cada aluno, rasteando crianças conhecidas mas não achava nada, parecia até um local estranho. E as pernas já doíam, apenas alguns metros adiante da fortaleza didática; a idade não ajudava, quase quarenta e seis mas se conservava. O pátio era um pesadelo em forma de trilha, com tijolos coloridos no chão, uma fonte lá longe com alguns fedelhos sentados ao redor esperando. Onde ela está, onde ela está? Isso não é brincadeira, menina má. Percorrendo aquele labirinto infernal de salas, corredores e pátios, povoado por dezenas, lembrou da outra menina má, que nascera realmente de si, aos vinte anos: era a primeira filha, foi muito querida apesar dos problemas que teve; infância difícil e adolescência pior, principalmente quando se casou (sob seus protestos de mamãe cuidadosa mas nem tanto)e engravidou aos dezesseis. No dia do parto o pai morreu em algum buraco e a mãe-futura-avó não disse como foi, não vou dizer, foi um acidente, pronto, pronto, relaxe e já estamos chegando. Parto normal, respire e fique calma, a criança estava saindo, metade da cabeça para fora, nem teve pré-natal decente e a culpa era delas. De alguma maneira, ficou travada no osso da virilha e ela não queria soltar, asfixiando o bebê, pelo amor de Deus, anestesia essa coisa, o cirurgião suava e a anestesista tentava controlar o resto do corpo da garota para faze-la deixar a criança nascer, mas não estava adiantando e as luvas foram trocadas porque era sangue demais, muita água. Cesariana de urgência, demorando muito, chegaram a abrir mas a mãe gritava demais na sala de cirurgia, não podiam dar geral e usaram o fórceps, romperam o períneo e finalmente, saiu. O bebê não tinha um braço, era uma menininha linda sem um dos membros superiores e a vovó foi a primeira a carrega-la no colo, nem tinha quarenta anos ainda e já era avó. Para o sanatório com essa mãe maluca, eu vou criar a menina, ela é minha filha agora! E assim foi desde então, enquanto continuava a busca incansável. Ela veio buscá-la, eu sei, eu sei...vai tomá-la de mim, balbuciava enquanto chupava o nariz e limpava os olhos com o dorso da mão. Ninguém parecia vê-la ali dentro do colégio, era muita gente. Sentia-se dentro de um útero medonho, cheio de espinhos, cheirando a chocolate e refrigerante quente. Eu vou passar mal, a cabeça dói e a vista embaçou, dores na perna, osteoporose, depressão. Coisa de mulher velha mesmo, mas eu sou uma mãe ainda, blablabla, cadê a menina. Era o bloco final, ela tinha que estar por ali, só faltava aquele e se não achasse mais, era porque o fim chegara. Recordou-se também de quando pensou em abortar a sua primeira filha e se colocou no lugar do feto, na incerteza de alguém que ainda não nascera, onde a qualquer momento tudo podia acabar e ir para o inferno, enterrado. Lembrou-se do molde do fórceps na cabeça da neta/filha e o coração ia parar, meu Deus do céu. Pressão caindo, era oito por três mas ia cair mais e ela poderia desabar no corredor a qualquer momento, sem sequer ver a filha sem braço pela última vez. Fazia tempo, anos. Tosse, tosse, saliva misturada com lágrima e suor, nariz escorrendo e incontinência urinária.
Finalmente, avistou a garota sem braço. Ali, no colo da sua primeira filha dos olhos patológicos e amarelados de drogas pesadas e anti-depressivos, os pulsos rasgados por cicatrizes e o cabelo tosco. Tinha um instrumento na mão dela, mas não dava para ver, não dava. Era tipo um saca rolhas cirúrgico, daqueles que se usa para perfurar um útero numa histerectomia, uma coisa horrível, brilhante e escurecida. Eu vou furar a cabeça dela vaca, ela é a minha filha, não sua, gritava e chamava a atenção de poucas pessoas que se importariam a olhar para lá. A pequena aleijada estava em transe, nem podia se defender só com um braço e era acolhida no colo da mãe genitora. Olheiras distantes, nubladas e encharcadas nos problemas, toda vida é assim, não é? Uma toalha que se molha na urina que escorre para o chão, que só seca se torcer ou colocar no sol, mas aqui todo mundo é alérgico à luz. Vamos acabar com isso, vou furar a cabeça dela. Do outro lado, a avó se arrastava, não faça isso, ela é tudo, minha filha, não faça isso comigo, olha para você, está doente, doente demais. Eu não estou doente, o doutor disse que eu sou normal, mamãe piranha desgraçada. A filha é minha e acaba aqui, acabou, manejava o instrumento com ódio, desprezo, agonia e quinhentas gramas de remédios da folhinha azul.
Em segundos, tudo se resolveu e se concluiu, fechando o circulo, encarcerando os fantasmas, violentando as ilusões e deprimindo todo e qualquer ressentimento de uma vida bonita, feliz e tranqüila. Convergência imediata para a tragédia grotesca, como não poderia deixar de ser: a avó não suportou ver o sangue e tombou ali mesmo, no final do corredor das classes ginasiais.
Dias melhores.
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